CRISTINA ALMEIDA SERÕIDO
O CONFESSIONÁRIO
Às quintas, à hora do estudo, a pedido, podiam as mais velhas ir sozinhas à confissão. O Sr. Padre lá estaria na igreja esperando as mais zelosas. Chegavam à entrada da grande igreja, persignavam-se, ajoelhando-se um pouco e punham-se na fila que se formava à esquerda para a confissão do padre peludo e escuro na sombra.
Era preciso que houvesse pelo menos quatro ou cinco meninas à espera de ouvirem as sibilantes da sua voz cava. Paradas na fila, o embuste era esperar as amigas que a pouco e pouco chegariam e deixar as recém-chegadas sempre passar à frente, «Podes ir na minha vez», e as mais novas ou apressadas agradeciam e avançavam para o confessionário onde se ajoelhavam de cabeça baixa, o corpo encolhido com o peso dos pecados e quando se levantavam, penitentes, iam cumprir a pena de rezar, os joelhos despidos nas tábuas de madeira escura, enquanto as outras se iam esquecendo do lugar onde estavam e o tempo era passado a falar baixinho.
Por vezes, no meio da conversa proibida e desejada — pedidos de namoro, telefonemas esperados no fim-de-semana que aí viria, risos represados, desprendidos — lá pensavam no que poderiam ter de dizer, os pecados a sério que seriam confessados. E haveria um castigo, orações punitivas: cinco ave-marias, quatro pais-nossos, um credo para se sentirem limpas outra vez e poderem comungar no dia da missa com um ar seriíssimo, as mãos postas, a humildade pura, o corpo de Cristo a chegar sem se tocar com os dentes, Jesus ali, dentro da alma, a alma.
Sem pensar na alma, as quintas à tarde eram feitas de animação. Conversar era sempre um pecado, mas uma infracção menor a Deus, sentia-se. Até ao fim da tarde no sagrado lugar podia-se brincar e rir baixinho enquanto as outras se exibiam íntimas ao padre mal disposto. A espera de vez era estendida, a vez demorava a ser e era o tempo de pecar venialmente, não era mortal a falta, só pequena. A dizer, no fim, sem explicar muito, ao padre escondido: «Conversei demais, Senhor padre, e ri quando não devia.»
Muito diferentes eram as quintas de visita do Sr. Padre Gregório. Sentava-se numa cadeira à vista de todos. Dizia logo às meninas os pecados que tinham feito numa ladainha decorada, uma síntese benévola mal percebida — pequenas mentiras, omissões, um ou outro pensamento menos bom e chegava. «És uma Santinha!», dizia a cada uma. Perguntava se havia alguma prova em breve e, numa bênção meiga, punha-lhes as mãos magrinhas na cabeça, deixava-as ir com uma ave-maria só.
Vinha de branco, o cabelinho branco curto, os olhos azuis muito caridosos, envelhecido.
Com ele nenhuma fila se formava, nem conversa havia.
Ao pé de quem tudo nos perdoa, quem pode deixar de ser bom?
OS DIAS DO RETIRO
No princípio do primeiro retiro, lembra-se, estava sentada nos degraus quentes do anfiteatro com lugares vazios. Havia um padre vindo de fora e uma senhora gentil, de saia rodada, blusa branca, sapatos rasos nos pés. Era uma freira sem hábito, soube depois, por isso tinha os cabelos pelo queixo, lisos, com uma bandolete preta rente à testa. Disse antes da primeira palestra que o retiro ia fazer crescer o amor pela Nossa Senhora e desenhou na lousa escura do quadro uns socalcos sobrepostos que iam diminuindo numa pirâmide curta de seis degraus, se tanto. Pedia às meninas que copiassem a figura para o caderno, trazido de propósito para a sessão, e que assinalassem o lugar da sua devoção pela Virgem pondo uma cruz num dos rectângulos. Não podiam pensar muito, nem deviam olhar para ali nos dias mais próximos. Depois de o retiro acabar, num desenho igual fariam o mesmo e veriam até que ponto a devoção de cada uma tinha crescido. O retiro durou três dias. Era Maio e as meninas foram dispensadas das aulas. Muitas das sessões se passavam ao ar livre e estavam muito soltas para rezar na relva, deitadas entre as árvores pequenas dos jardins. Havia livros finos, santinhos e medalhas a vender e do que melhor se lembra foi do escapulário que comprou no claustro principal, numa banca que lá se pôs para mostrar essas relíquias. A D. Conceição já lhes tinha dito que deviam andar sempre com aqueles dois quadrados de feltro de duas faces, castanha e branca, com uma Nossa Senhora estampada, presos por duas fitas de algodão, por dentro da roupa. Uma das figuras a proteger o peito e outra as costas. Que depois de benzido pelo senhor padre, o escapulário não devia tirar-se nem de noite. Era miraculoso. Quem o usasse nunca iria para o inferno, mesmo em pecado. Deus não permitiria que um portador daquele sinal fosse condenado para sempre. E como ninguém sabia a hora da morte, assim o deviam usar sempre, sempre.
Havia outras exigências ainda: se se rompessem os fios não se poderiam atar com um nó forte, porque o escapulário perdia a sua força. Tinha de se comprar e fazer benzer outro. Depois, não chegava trazê-lo, era preciso rezar todos os dias à Nossa Senhora, do Carmo, julga, pedindo-lhe ajuda para poder levar com devoção aquele sinal, seguir Jesus e alcançar a vida eterna. «Dizer sim a Deus» foi a expressão que sintetizava tudo. E mais: que não pensassem que se podiam livrar de frequentar os sacramentos, de ir à missa, à confissão, à comunhão, que podiam comportar-se de qualquer maneira.
Depois de ter e usar sempre o escapulário, de só o tirar no banho para que se não molhasse, achava mesmo que não haveria um terramoto nos poucos minutos que durava o duche, brevíssimo — gelado às vezes — porque muitas meninas esperavam em fila a sua vez. O pior, contudo, era que tinha frequentemente de o lavar e pensar que ficava longe de si, nos lavatórios em cima da toalha de mãos a secar durante uma noite inteira, sabendo dos tremores de terra que poderiam vir. Tinha havido um há tão pouco tempo que nem sempre dormia bem, por estar apavorada com o Céu, o Inferno, a vida eterna. Das cheias, recentes também, não era tão grande o medo, porque se anunciariam logo com as fortes chuvas, mas sentia-se egoísta por pensar só na sua salvação e não na vida eterna da mãe e do pai e dos manos e de todas as outras pessoas, coitadas, que poderiam perder-se para sempre sem aquele objecto de devoção.
Durou um ano, o escapulário, se tanto. Cansou-se de pensar no futuro, na salvação, no pecado, subestimou as faltas, os maus pensamentos, as maledicências, as más palavras sobre as vigilantes, as professoras, alguma crueldade com as amigas.
Deixou de ser tão criteriosa com a alma. A pouco e pouco foi-se esquecendo que existia.