Carlos Quiroga – Tintas de mesa

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO4

CARLOS QUIROGA

TINTAS DE MESA

As variedades inéditas que se servem a seguir foram oferecidas para cata há poucos dias, no festival das Correntes d’ Escritas. A número 1, chamada ‘Cada livro é a antologia corrente da existência’, mais afrutada, elétrica e chispeante, na Mesa 5, sexta-feira, dia 21 de Fevereiro, 22h00, na Póvoa de Varzim (na companhia de Joana Bértholo, Manuel da Silva Ramos, Manuel Jorge Marmelo, Miguel Sousa Tavares, Ondjaki e Rui Zink, moderados por Michael Kegler). A número 2, chamada ‘São sempre correntes as palavras’, de tinta algo mais amadurecida e certo pouso, na Mesa 8, segunda-feira, dia 24 de Fevereiro, 19h00, no Centro do Instituto Cervantes de Lisboa (na companhia de Ana Margarida de Carvalho, Carmo Neto e Michel Laub, mediação de Sara Figueiredo Costa). Foram só experimentadas por via oral e a temperatura ambiente. Recomenda-se agora, para consumo imoderado, ler unicamente devagar.


1
CADA LIVRO É A ANTOLOGIA CORRENTE DA EXISTÊNCIA 

      As mentes preclaras deste encontro sempre se lembram de propostas engenhosas. De todos os modos sempre avisam também que a gente pode rumar por onde goste. E a gente ruma. Mas eu sou bastante comportadinho e já que abro mesa vou-me ater de início ao ditado. Nele há várias palavras sedutoras cujo epicentro podia ser ‘Antologia’, uma palavra que já para os gregos era tratado acerca de flores. Pegar nela daria pé a divagações, a perguntar até se contam os livros onde a gente guarda folhas e flores esmagadas. Mas é esse modo de tratar flores, tratado de flores, não falamos já e mais bem de intratado ou destratado? Ou elas, as flores, são os trechos de prosa ou verso que se juntam em Coleção? Ahh, é logo metáfora? E então todos os trechos de cada livro merecem a comparação de ser flores...? Enfim, à partida parece que não, mas eu até entendo por onde vai a frase. E há ainda nela um ‘corrente’ e um ‘existência’, por não voltar ao mágico ‘livro’. Intui-se portanto que daria para ensaio de 38 páginas ou mais. E eu desta não quero abusar.
      Não querendo abusar, preferi fazer apenas um simples estudo de campo. Fui numa livraria em Santiago testar. Como a Palavra Perduda foi à falência, como na Couceiro e Pedreira e até Follas Novas conhecem, fui anônimo ao Corte Inglês. Nele tenho visto o cartaz “Si no encuentra su libro solicítelo”. E eu, que lá nunca encontrei um meu livro qualquer, pensei que eles mereciam o crédito de perguntar. Portanto fui, solícito, à entrada de Santiago, e lá no andar dos livros pedi,
–Queria uma Antologia Corrente da Existência. Uma menina com cara de susto respondeu que,
–Antologia temos alguma, mas... é um título concreto...?
–Não, queria apenas uma Antologia Corrente da Existência.
–Corrente como, da existência de quem...?, é Filosofia, Biografia...?
–Também podia. Se eu lhe pedir assim, uma Antologia Corrente da Existência, o que é que me dá...?

      Pela cara vi que ela daria é bofetada, mas por enquanto educada disse que Nada, que não entendia, e que se tal chamava o chefe. Eu disse –Sim, por favor, não ia de primeiras recuar. E ela foi com um fulano mais velho de fato e gravata segredar. Ambos na distância me olharam como para um marciano –e eu duvidei se seria capaz de acabar, a pesquisa de campo.
Buenos dias, me dice mi compañera que quería un libro raro.
–Raro não, uma Antologia Corrente da Existência.
Si me indica, por favor, algo más concreto, um ISBN, autor, el título aproximado, podremos buscar en la base de datos y encargárselo.
–Verá, é uma encomenda para já, e de Portugal, gente que sabe muito de livros mas que indicou apenas isso, e que há muitos que respondam a isso, pilhas, todos os livros, qualquer um.
–Mire, nosotros livros portugueses no tenemos..., pero puede haber traducción. Si sus amigos portugueses sabem tanto de libros seguro que pueden ser algo más precisos.
–Sim sim, mas se lhe digo apenas Antologia Corrente da Existência não tem um livro para vender, qualquer...?
Hombre, se parece a una Antología de Textos Filosóficos, pero ya le digo, no hay nada específico en la base de datos...
      Começando a irritar-se, o homem recomenda de sorriso falso passar-me pelos livros eletrônicos ali ao lado. Ainda o escuto num desabafo rouco articular algo para a menina toda vermelha –sobre perdas de tempo e clientes cretinos. E eu também aliviado fui perseverar ao lado na ferragem digital, onde a coisa se colocou ainda mais difícil. O fulano que me calha quer vender-me um aparelho no que antologar tudo o que eu queira para ler de existir, mas assegura que nada do que lá possa inserir será corrente, salvo nos bits. Quando piro, de mãos vazias, mais cansado que o pessoal impacientado, posso concluir o que já sabia,
      a) no Corte Inglês nem todo o mundo fala galego;
      b) o Corte Inglês não tem livros portugas;
      c) para o Corte Inglês, que vende livros, cada um deles não é Antologia Corrente da Existência nenhuma.
      A experiência é pouco significativa para o caso, ainda que sociologicamente prove o secular preconceito espá sobre a coisa portuga. Se fosse nalguma das outras reais livrarias melhor recolha seria possível. Talvez até metafísica. Mas não estou arrependido porque da conversa com o último fulano veio a idéia do cruzamento com a propaganda que há uns tempos recebi a iluminar este assunto. Trata-se do anúncio de um revolucionário conceito de tecnologia da informação, chamado de Local de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas (ele-i-vê-erre-ó), um avanço fantástico. Sem fios nem circuitos elétricos nem pilhas. Não se requer conectado ou ligado a nada. E tão fácil de usar que até uma criança pode. Basta abri-lo.
     Cada unidade é formada por uma sequência de páginas numeradas, feitas de papel reciclável e capazes de conter milhares de informações. As páginas são unidas por um sistema chamado lombada, que as mantém automaticamente na sequência correta.
     O recurso TPA ou Tecnologia do Papel Opaco permite que os fabricantes usem as duas faces da folha de papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e reduzir os seus custos pela metade. Enfim, cada página do aparelho deve ser escaneada opticamente, e as informações transferem diretamente para a CPU do usuário no cérebro. Quanto maior e mais complexa a informação a ser transmitida, maior deverá ser a capacidade de processamento do usuário.
     Outra vantagem do sistema é que, quando em uso, um simples movimento de dedo permite o acesso instantâneo à próxima página. O aparelho nunca apresenta “ERRO GERAL DE PROTEÇÃO” nem precisa ser reinicializado, embora se torne inutilizável caso caia no mar, por exemplo. O comando “browse” permite acessar qualquer página instantaneamente e avançar ou retroceder com muita facilidade. A maioria dos modelos à venda já vem com o equipamento “índice” instalado, o qual indica a localização exata de grupos de dados selecionados.
      Ah, e um acessório opcional, o marca-páginas, permite que acesse o aparelho exatamente no local em que ficou na última utilização mesmo que ele esteja fechado. A compatibilidade dos marcadores de página é total, permitindo que funcionem em qualquer modelo ou marca sem necessidade de configuração. Além disso, qualquer unidade suporta o uso simultâneo de vários marcadores de página, caso seu usuário deseje manter selecionados vários trechos ao mesmo tempo. A capacidade máxima para uso de marcadores coincide com o número de páginas.

      Ah, e pode-se ainda personalizar o conteúdo da unidade, através de anotações nas margens. Para isso, deve-se utilizar um periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação Simplificada, siglas L.A.P.I.S., lápis.
      Portátil, durável e barato, o L.I.V.R.O. vem sendo apontado como o instrumento de entretenimento e cultura do futuro. Milhares de programadores desse sistema já disponibilizaram vários títulos e atualizações usando a plataforma. Neste encontro das Correntes d’Escritas se acha um número significativo. É nesse sentido que cada unidade que nós vos oferecemos é corrente e até elétrica. Corre, o LIVRO, de mão em mão elétrico, porque se a existência é um relâmpago de luz no meio de duas eternidades de sombra, em cada um vos inserimos uma síntese de lampejos. Um tratado das flores dela, a eternidade. Às vezes com os seus espinhos.

2
SAO SEMPRE CORRENTE AS PALAVRAS

      Nos tempos que correm, que as palavras sejam correntes no sentido de atar, de firmar cimentar radicar o dito, garantir o acontecer como um prelúdio, e que as palavras sejam de ficar, porque a sua efemeridade nas bocas ou no papel garantem de qualquer modo que o dito vai ser, talvez seja mais impossível como nunca de defender –nos tempos que correm.

      As palavras correm e leva o vento como nunca, e até aquelas maiores da gente alta, aqueles senhores e senhoras das promessas eleitorais, que em modo algum sentem pudores de hemerotecas e noticiários guardar provas contrárias. Na Espanha como em Portugal as públicas palavras do passado imediato não acorrentam nada ao presente. E ainda bem se por aí fica a coisa, porque o mais habitual é que nas bocas onde nascem essas palavras aconteça algo que um antigo livro portuga explicava ao detalhe. Refiro-me à Arte de Furtar e o seu assegurar que há ladrões com unhas na língua. Pois é. E assim muito menos que beijos é só arranhar que dessas bocas decorre. Se houver palavras por descontado que são de incumprir e ir furtar.

      Mas não só em palavras maiores da gente alta. No rés-do-chão do outro dia fui ao teatro com um amigo em Santiago, e outro colega que tinha prometido (de palavra) aparecer com os bilhetes à porta nem sem eles apareceu. Lembrei-me da frase à chuva, diante do Teatro Principal, onde já não havia bilhetes para a peça do Cadaval, e disse ao cúmplice na desdita se então as palavras não eram correntes de acorrentar.

     –Correntes de correr, amigo, correm que ninguém acredita!

      Respondeu o tal camarada de infortúnio, e fomos corridos à chuva tomar um copo, tratando de desculpar o promitente dos bilhetes –que nem telefonou nem se lembrou da coisa até dois dias depois.

      Portanto em signo de consciência aflita por estes tempos, com saudades dos tempos dos meus pais onde as palavras atavam, despacho essa possibilidade dizendo com Florbela Espanca que

      “...ligo bem maior importância aos factos do que às palavras por bonitas que sejam. Palavras são como as cantigas que leva o vento...”

      E assim espancado e vendo como elas correm de só correr me parto para outra possibilidade de abordagem, mais isenta dos tempos corridos, num mais universal sentido de gente da escrita –ainda que não nos enganemos, também em gente da escrita a palavra dada é muita garantia de nada.

       Reparando bem e esquecendo essa outra orientação possível, a frase já parece feita como nenhuma para a título individual sossegar escritores, poetas. Gente para quem cada palavra é um vapor e um pavor. Prodígio. Gente a quem é lícito pedir Qual é a tua palavra favorita, como já fez a falecida editora Quasi. E nós entrámos. E nós jogámos. Somos gente que joga porque nisso nos vai a vida, porque sentimos que entre nós e as palavras há metal fundente, hélices que andam, e entre nós e as palavras há o nosso dever falar. Por isso se tu dizes ao Cesariny, por exemplo, São sempre correntes as palavras, amigo, ele lá no Inferno a tomar cerveja com certeza não entende nada jurídico, não entende que as palavras atem e acorrentem, como costumavam oradas ou ditadas ao escrito assinado, entende com certeza um sossego.

      As palavras são radiosas e podem causar pânico. Mas chega um tempo de serenidade sobre elas, um tempo em que mesmo usadas contra-corrente tu sabes que são correntes sempre, as palavras, porque a vida toda é.

      Portanto frase para sossegar escritores, poetas, gente para quem cada palavra é um vapor e um pavor. Mas como até nem sei se sou escritor ainda que de sempre escreva, como o pão me vem pelas palavras no professorar, vou-me lembrar antes como a frase também pode nesse campo sossegar.

Lembro-me agora nesta cidade de um pânico precisamente por palavras na vertente dita. Pessoal pânico pessoano. Porque era sobre palavras de Pessoa, que podem causar isso em qualquer jovem estudioso que ouse transformar sedução em estudo. E eu era-o há mais de 20 anos em volta de um doutoramento, temendo-me o corvo da fábula de Esopo que a querer imitar a águia fica com as garras presas na lã do carneiro que pretendia levantar. Pessoa não é certamente carneiro, em todo o caso rebanho, e esteve sempre guardado por legião de pastores vigilantes. Os guardadores do rebanho, que não são precisamente simples Caeiros, avaliaram tudo sobre as ovelhas que dão por suas, e faziam já na altura tal círculo à volta que quase não deixavam fenda para poder espreitar. Portanto mais difícil levantar. Portanto a certeza de acabar entre os cadáveres de águias ousadas que pendem como corvos nos lombos dos carneiros de Pessoa.

        Como chegou o sossego e a certeza de que São sempre correntes as palavras mesmo em Pessoa e sobre ele? Eu era muito jovem para ousar mas já adulto de fazê-lo só com rede de cientifismos, ainda não de frases metafísicas. A obra do autor português andava tão manuseada, ora provando o céu, ora provando o inferno, que meter-se no meio das suas palavras era loucura. Assim que imaginei um voo isento de pavores por meio de matemática e computadores. Uma bolsa da Gulbenkian obrigou-me depois a encaminhar os passos a esta cidade, e começou também o mergulho na “explosão ensaística” e bibliográfica, menos obrigada porque eu pensava desbravar caminho inédito. E aí descubro uma tese de doutoramento realizada na USP que tinha feito o mesmo! (de Maria Tereza Camargo Biderman, Análise Computacional de Fernando Pessoa, em São Paulo, 1969). Ao pavor das palavras de Pessoa juntava-se agora o pavor das palavras já feitas sobre ele...!

       Como chegou o sossego, a certeza de que São sempre correntes as palavras, mesmo tratando-se de Pessoa e sobre Pessoa, no caso...? Ainda não com da parte de frases metafísicas. Quando consegui cópia da tese brasuca vi que no trabalho nem estava toda a obra pessoana nem havia o apuramento estatístico completo e até sofisticado como eu pretendia. E a metade do estudo era gasta em definir e reduzir precisamente a unidade de estudo, a palavra, isso que aqui tratamos...! Delimitar aquilo sobre o qual se ia aplicar a análise em trabalhos do tipo teria sido um dia imprescindível, mas a discussão filológica à volta da “palavra” não era já o meu propósito naquela época. De novo o amparo do novo espírito científico/tecnológico salvava: o pessoal do ramo já tinha acordado entretanto que bastava definir a norma lexicológica e em todo o caso ‘palavra’ seria aquilo que ficasse entre dois brancos no computador!

       As palavras são sempre correntes, ia ficando evidente, mas na altura e no campo universitário mal se poderia esgrimir o argumento metafísico da frase. Ainda. Hoje e passada a experiência posso aqui pretender, e sossegar para qualquer tipo de escrita com esse mantra por dentro –por muito que guiado por ele talvez fosse igualmente difícil fazer hoje uma tese sobre Pessoa. Felizmente ninguém a exige e posso aqui brincar com o sossego que me dá a frase. Posso dizer aqui que as palavras, vulgares ou luminosas, de poetas ou mendigos e até professore, são sempre radiosas e podem causar pânicos. Mas chega um tempo de serenidade sobre elas, um tempo em que mesmo usadas contra-corrente tu sabes que são correntes sempre, as palavras, porque a vida toda é. Naquele tempo da tese sossegava temores e receios delas, próprias e alheias, com subterfúgios e bibliografias. E, no entanto, teria bastado procurar na memória e parar-me a pensar. Bastaria uma recordação, essa que agora vou invocar.

       Recordo que quando rapaz havia na aldeia do meu avô onde eu me criara um canteiro velho com fama de bom na arte dele. Nada de requinte ou maçonaria. O prestígio do génio vinha de resolver honesto e rápido obra pragmática, lavrando e acomodando pedra. Trabalhava sempre longe, mas numa ocasião foi chamado pelo meu pai para levantar uma parede em Escairom, a vila ao lado para onde nos mudamos aos meus 5 anos, e durante alguns dias o homem entregou-se ao trabalho. E eu nas horas vagas ia lá olhar e até queria ajudar. E reparando como ele fazia e seleccionava pedras, tratava de levar-lhe alguma e escolhia, uma lisa, bela, grande, falando,

       –Olhe-olhe, está que boa!
E ele, cansado da criança aprendiz, respondeu finalmente assim,

       –Menino, nem boa nem má, as pedras servem todas, tens é de encontrar para cada uma o sítio.

E pegou numa feia e rota e pequena, e encaixou num espaço entre outras grandes belas lisas, que sem a feia rota pequena, teriam ficado sem assentar a abrir vazios, hesitantes na parede. Escolheu uma pedra como uma palavra entre dois brancos no computador e achou apenas o sítio certo.

São sempre correntes, as pedras, sossega, assegurava o velho canteiro, que com a idade já tinha achado a paciência da frase que encerrava metafísicas. E agora que eu vou tendo a idade, a paciência, entendo que a máxima também se refere às palavras –que são sempre boas e correntes. Portanto São sempre correntes as palavras, amigo, sossega, porque a vida toda é.