Vítor Aguiar e Silva – Dicionário de Luís de Camões

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO3

António cándido franco

DICIONÁRIO DE LUÍS CAMÕES
Coordenação de Vítor Aguiar e Silva

Lisboa, Editorial Caminho, 2011, págs. 1008.

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      Comentámos no número anterior desta revista, a propósito da civilizacionais da época, com particular atenção à singular obra de António Telmo, a camonologia de Vítor Aguiar e Silva, apontando-lhe as muitas qualidades e percebendo-lhe as insuficiências, também elas pesadas. O interesse deste estudioso pelos problemas da obra camonina é antigo e vem da época em que se consagrou ao estudo do maneirismo na poesia lírica portuguesa (1971). Dedicou depois disso estudos diversos a aspectos parcelares da obra de Camões, que reuniu em duas colectâneas, Camões: Labirintos e Fascínios (1994) e A Tuba Canora e a Lira Dourada: novos estudos camonianos (2008). Chegou agora a vez de conceber, coordenar e concretizar a publicação dum Dicionário de Luís de Camões, que merece aqui a nossa atenção. Se algum escritor português merece um dicionário esse é, pela vastidão dos problemas que a sua obra suscita, pelo número e pela qualidade dos estudiosos implicados, que tocam quase todas as línguas cultas do mundo, Camões. Esse merecido volume é porém mais imaginal do que sensível. O dicionário imaginado, que tem interesse como bitola ideal, é uma colecção completa, alfabetando de forma exaustiva todos os excursos, todos os pontos, todos os termos, todas as matérias que dizem respeito a Camões ou aos estudiosos dele, enquanto o real é só uma parcela deste todo. O sucesso ou o insucesso dum dicionário dedicado ao épico português medir-se-á todavia pela capacidade de ficar a mais ou a menos distância do termo ideal. Que se passa com o dicionário organizado por Aguiar e Silva? Está ele próximo ou distante do termo ideal e do dicionário que é possível sonhar para Camões? Vamos devagar. Este dicionário, no domínio em que trabalha, é o primeiro a surgir. Só por isso a obra merece uma indulgência, que doutro modo não se justificava. Depois, já sabemos que o camonismo de Aguiar e Silva, temperado nas lides da universidade portuguesa, de que o autor é decano, tem as virtudes e os defeitos dessa instituição. Aguiar e Silva nos seus estudos sobre a obra de Camões deu um avanço notável no conhecimento das fontes, das variantes, das edições e dos predecessores. É pois natural que sob esses aspectos o dicionário se mostre um contributo digno de nota. Ao invés, os estudos de Aguiar e Silva no domínio da hermenêutica simbólica, e até das delicadas relações do texto com os contextos culturais e situação ibérica da altura, são manifestamente pobres e insuficientes. A sua leitura do episódio da Ilha do Amor (pp. 437- 444), mau grado o rigor e a erudição que ostenta, é paradigmática destas limitações. Falta-lhe aí imaginação para acompanhar o exercício do Poeta. Era pois de esperar que nestes campos as deficiências do volume saltassem de imediato aos olhos, o que de feito se confirma. É impossível continuar a aceitar leituras da Ilha como prémio da “dilatação da fé cristã e do império lusíada” ou de Baco como simples opositor destes mesmos valores (p. 61). A qualidade do poema, a magnificência da sua construção e a inteligência labiríntica do seu todo merecem da nossa parte saltos hermenêuticos mais ousados e imprevistos. Também no domínio das relações culturais e contextuais o volume se ressente desta estreiteza de perspectivas. Como conceber um dicionário sobre Camões sem um verbete sobre Inquisição portuguesa e sem outro sobre judaísmo e cristãos-novos? É porém o que sucede neste dicionário. E o verbete de Artur Anselmo, duas magras páginas (261-63), sobre “censura inquisitorial na época de Camões” é de todo insuficiente para cobrir esta riquíssima problemática. Nada disto seria grave como é, se o esoterismo não tivesse já prestado valioso socorro na interpretação do poema, e tal sucede desde o comento castelhano de Faria e Sousa (1639), que está muito longe de merecer neste dicionário a abordagem que a sua riqueza hermenêutica justificaria, e o judaísmo não tivesse provado já pertinência biográfica no caso do Poeta, silenciado, sem justificação, por Maria Vitalina Leal de Matos no verbete consagrado à biografia dele. (pp. 80-94). É importante que se compreenda duma vez por todas que o modelo de leitura de Camões não pode ser hoje nem o de Teófilo, nem o de José Maria Rodrigues, nem o de Epifânio da Silva Dias, nem mesmo o de Jorge de Sena a ler a canção VII. Importa hoje algo mais – esse que se topa em Jorge Luis Borges a ler Dante, sobretudo o passo do “Castelo” (c. IV, Inferno) ou o discurso de Ulisses (c. XXVI, Inferno), onde o comentador chega a tocar a viagem de Vasco da Gama, num passo que merecia ser incorporado, se para tanto houvesse consciência da nossa habitual falta dela, na leitura de Camões.