GABRIEL MAGALHÄES
NOCTURN DE SANT FELIP NERI
Sebastiá Bennasar
Barcelona, Meteora, 2013.
Os livros de Sebastià Bennasar têm muitos livros dentro. Estamos perante uma obra literária fascinada pela própria literatura. Na narrativa Nocturn de Sant Felip Neri, o autor seduz-nos com um belo puzzle cultural formado por duas bibliotecas, um alfarrabista catalão, uma jovem cega de sangue azul, um violinista paraplégico bósnio que toca nas ruas e um escritor em início de carreira, a fazer de jovem Hemingway em Paris quando, na realidade, vive em Barcelona. A história oscila entre a cidade condal e Sarajevo, entre o presente da Catalunya e o passado da guerra na ex-Jugoslávia. Encontramo-nos, pois, perante um livro triste como um violino tocado muito tristemente.
Com Nocturn de Sant Felip Neri, Bennasar atinge a mestria técnica pela qual qualquer narrador anseia: esta obra funciona, assim, como um doutoramento criativo. Citemos algumas das brilhantes carambolas literárias deste trabalho: a beleza do esquema básico de narradores, em que uma voz desconhecida (para este leitor, a de Marina, uma personagem falecida) se dirige ao jovem escritor; o entrançado das histórias, que se misturam umas com as outras sem se perderem no seu abraço, à maneira da mú- sica de jazz ou da colectânea das Mil e Uma Noites; uma capacidade brilhante, enfim, de nos fazer mergulhar numa irrealidade fosforescente, vagamente decadentista, que nos deixa embriagados de beleza.
Neste livro ecoam temas e questões de uma obra ante- rior de Bennasar, Connie Island (Barcelona, Viena Edicions, 2007), como sejam, por exemplo, um intenso diálogo mul- ticultural, que constitui um dos territórios de preferência do escritor. Sebastià Bennasar, de facto, assume a sua raiz bale- ar e catalã como algo que acaba por se tornar uma frondosa árvore de muitas culturas. E deve dizer-se que Connie Island configura uma das mais completas e interessantes aproxima- ções a Portugal levadas a cabo por um autor que escreve em catalão. Outro dos temas comuns a estes dois trabalhos narrativos: a defesa radical da cultura como bem precioso, um tesouro posto em perigo pela deriva contemporânea.
No entanto, enquanto Connie Island era um livro que sorria com a luz de Lisboa, este Nocturn de Sant Felip Neri pertence mais ao reino das trevas da melancolia – é, como os poemas de Nobre, um texto que nos pode fazer mal. De vez em quando a obra dedica-nos, quando muito, um sorriso lunar, de quarto minguante. A caligrafia da escrita de Ben- nasar baseia-se também num narrador bastante interventivo, à maneira de Saramago, que com frequência devaneia umas reflexões tétricas sobre a guerra e a Europa considerada como “el principal dipòsit de cadàvers de la història de la humanitat” (p. 74). Os velhos ideais de esquerda são hoje em dia, porventura infelizmente, uma múmia cultural e, neste livro, em certos momentos é essa múmia que fala connosco.
O livro escreve-se num catalão belíssimo, de uma ele- gância e transparência notáveis. Quando fazemos literatura num idioma que não seja dominante, devemos ser irrepre- ensíveis no seu uso para que a força do preconceito linguís- tico ceda perante a energia da beleza artística. Isto, que é bem sabido pelos autores portugueses, não é ignorado por Sebastià Bennasar.
Uma nota final: que uma obra passada em Barcelona – girando à volta da praceta antiga de Sant Felip Neri – e escrita em catalão tenha como pano de fundo a sangrenta cidade de Sarajevo da guerra da Bósnia mostra-nos bem o terreno minado que a Península Ibérica e toda a Europa pisam neste nosso tempo. Este livro constitui também, por conseguinte, um aviso tocado pelas profecias do coração e pelos fantasmas da memória. Por isso e pela sua grande qualidade literária, Nocturn de Sant Felip Neri merece dar o salto da tradução da língua catalã para outros idiomas europeus.