Promessa – Vergílio Ferreira

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO1

miguel filipe m.

PROMESSA
Vergílio Ferreira

Lisboa, Quetzal, 2010.

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Escrito em 1947, entre Vagão J (1946) e Mudança (1949), Promessa, único romance inédito completo de Vergílio Ferreira, denota as influências das leituras filosóficas que então se iam traçando e definiriam o estilo e a ambição do autor de obras tão marcantes como Aparição ou Para Sempre. No momento em que se descobriam nele o rumor das interrogações fundamentais que o tornariam num caso excepcional no contexto da literatura portuguesa, o seu primeiro “romance de ideias” (estatuto que, até agora, atribuíamos a Mudança), não apresenta a maturidade de um regime da transição entre o diálogo polemizante e a isotopia problemática do eu que outras obras maiores lograriam até à mestria. Tudo o mais reside já nestas páginas cujo estilo dialógico, irónico e penetrante (ainda obviamente marcado por laivos de um queirosismo que nem sempre tem sido observado) presta jus à densidade do alarme que nos atiça.

A dimensão interrogativa que Promessa fermenta assinala a cisão – não tão brusca como em regra se julga – da visão neo-realista da poética vergiliana, na direcção do “romance-problema”, de temática filosófica, com incidência no questionamento existencial. Trata-se, portanto, de um romance de transição – momento de risco mais ou menos calculado, de um atrevimento formal contido e no entanto efectivo -, que observa o paradigma hegeliano que nunca abandonaria a poética do autor, sob o signo da consciência infeliz - «- Que está a fazer? – perguntei, com estupidez./- Nada. Estou a sofrer». Esta nasce fundamentalmente do que podemos designar por ironia trágica (tal como teorizada por Solger), segundo a qual o Homem pressente por fulgurações a discordância patética entre o plano do real em que se move e aqueloutro do ideal que projecta nas suas diversas experiências do mundo - «é talvez pelo menos duplo todo o homem normal.» A problemática do seu estar nele (em que mergulham as ambiguidades das temáticas artística, política, amorosa, religiosa ou familiar), no seu constituir, heideggerianamente, um ser-para-a-morte, constitui, nessa moeda irónica, o difícil esclarecimento entre uma poética da esperança na revelação de um sentido e de um encontro do Homem consigo mesmo, do seu caminhar desde a face real para a face ideal que o mobiliza, e a absoluta garantia do seu fracasso que lhe aponta directamente ao coração a voragem do nada: «- Enfim – disse ele, creio que a minha mentira (…) foi um desejo de vitória sobre a morte». A náusea absorve-o, então, desde uma sucessão de disjunções fundamentais, entre as quais ele se (não) decide (no sentido da decisão existencial a que se referia Jaspers).

Ainda que incipiente, a profundidade dessa relação trágica fundamental entre o Homem e o seu sonho já nestas páginas transparece a dimensão paradoxal que a enforma como espaço para a angústia. Porque, «como a realidade era um exclusivo de Sancho, os Quixotes ficavam no caminho, sovados e desiludidos.» A relação disfórica de uma face a outra é-nos dada por uma tipificação que presume o entramado discursivo entre dois limites que se interrogam e digladiam, representados por Sérgio, alheado intelectual sem voluntário comprometimento político ou social, e Flávio, herdeiro do espírito militante do seu pai entretanto desaparecido (motivo de um tema tão caro a Vergílio Ferreira). É de uma dialéctica entre ambos os planos que dificilmente se sintetiza que trata este romance, sobre a “aprendizagem” do imaginário interrogante e dilemático do Homem. Perante o seu próprio mistério e o absurdo do seu destino, ele descobre em si a interrogação existencial que o transforma no sofredor, em sucessivos momentos históricos (Sequência foi o primeiro título atribuído pelo autor a este romance) de uma consciência infeliz, produto da irresolução daquela (in)decisão.

Sem definitividade possível, esse ser-se estrangeiro em toda a parte é bem o sentimento de todo o sísifico herói vergiliano e é, possivelmente, o tema central desta Promessa. Em torno dele se organiza a constelação problemática dos conflitos ideia-acção e emoçãorazão. A permanente contradição em que o sujeito se acha, finalmente, consigo mesmo, abriga nele o fantasma de uma impossível ética, de um impossível amor, ou seja da impossibilidade de qualquer realização. Nasce nele aquilo a que Unamuno chamaria o sentimento trágico da vida, de perfil essencialmente metafísico. Assim despojado dos critérios da verdade ou da salvação, resta ao homem aqueloutros da justiça e da dignidade, ou seja da perseguição, pela camusiana revolta, de um ideal da sua injusta finitude. Através de uma «visão total e resistente do mundo.» ele persegue a sobrevivência, ainda, dos «sentimentos nobres do homem, (…), o milagre da «aventura», ideal do moderno quixotismo. (…) o esforço de uma dignificação humana», porque sobra ainda «um meio de lutar – até ao fim -, com os restos de dignidade que nem a morte vence, porque a justiça não morre». É, portanto, necessário fazer com que a morte seja uma injustiça. E é esse obsessivo chamamento dos limites aqui anunciado que faz de Promessa um magnífico pretexto para a redescoberta da obra de um dos mais importantes escritores do século XX português.