Planície de Espelhos – Gabriel Magalhães

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO1

PERFECTO E. CUADRADO

PLANÍCIE DE ESPELHOS
Gabriel Magalhães

Lisboa, Difel, 2010.

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Antes desta Planície de Espelhos, Gabriel Magalhães (Luanda, Angola, 1965), tinha publicado, na mesma editorial, o romance Não tenhas medo do escuro (Prémio de Revelação APE/DGLB). Digamos já que entre os dois romances existem vasos comunicantes que, entre outras coisas, têm a ver com o mistério, com o poder criador da palavra e com objectos-personagens que nos servem como fio de Ariadne no labirinto da sua pessoalíssima narrativa.

Como é o primeiro que se nos oferece aos olhos, e pelo que tem de aviso e de incitação para navegantes, reparemos no título: Planície de Espelhos. A planície é o mar alentejano e o seu porto de Alexandría, Évora, ponto de chegada e de partida da protagonista viva-morta e depois morta-viva. Quanto aos espelhos, podemos entendê-los pelo menos desde três perspectivas diferentes mas Inter-relacionadas: a) a que nos remete para a estrutura especular do romance; b) a que tem a ver com a presença do espelho no romance como personagem principal em relação ao itinerário físico e psicológico e filosófico da protagonista; c) uma última direcção, a que nos defronta com a questão da identidade, e aí todo um universo de referências literárias que o autor conhece bem, mas que tem a ver também com o olhar inocente e cruel das crianças que, como o espelho, denunciam uma realidade –aqui, a da morte – que nos negamos a aceitar – e aqui a referência ao conto tradicional – lembro, por exemplo, “O Rei vai Nu”- e à oralidade em geral de que é devedora a narrativa deste autor instalado preferentemente nos arredores do silêncio e do escuro para melhor olhar, ver, dizer e rir.

Temos primeiro um preâmbulo, prefácio, apresentação ou pórtico onde o autor nos situa poeticamente na geografia do ponto de partida (Covilhã), nos apresenta a personagem central da narrativa (Marta), e nos anuncia, à maneira da epopeia clássica ou dos romances dos séculos XVI e XVII, a acção principal – uma viagem, exterior e interior, como todas as viagens.

Segue-se ao preâmbulo uma 1ª parte em duas partes dividida e com uma coda final, uma 1ª parte que encerra a história que se nos anunciava no pórtico e que bem poderia ter sido a verdadeira 3ª parte se o autor se tivesse guiado pela razão lógica ou pela lógica da razão – coisa que felizmente não fez.

E é que a história aqui não acaba quando acaba a história. Porque vem depois uma outra parte, a que o autor chama “conclusão”, como nas teses académicas (e esse era o motivo da viagem). Mas esta “conclusão” deveria ter sido a 1ª parte, e nela o Gabriel Magalhães digamos ortónimo nos explica a pré-história da história (e há aqui uma outra história) ou como personagens e factos da vida real (ou assim comummente chamada) do autor acabaram por se projectar nos factos e nas personagens da ficção romanesca. Ou não.

Mas tudo isto seria ainda muito simples, em termos de estrutura, e por isso depois da conclusão – ou melhor, da não conclusãoo romance encerra definitivamente com o que talvez podia ou devia ter sido a 2ª parte: o conto “O morto” da professora Mariana Valadares que teria inspirado parcialmente a história do seu aluno e mestrando Gabriel Magalhães.

Falei de personagens, e para além do ortónimo do autor e seus disfarces ou multiplicações, destaquei o papel dos objectos-personagens. Se no seu primeiro romance uma misteriosa japoneira nos servia de intermitente e dinâmica referência para nos orientar pelo labirinto da narrativa, aqui serão os espelhos, e, sobretudo, o Chrysler PT Cruiser da protagonista. E aqui, mais uma vez, o centro da narrativa, a viagem com um fantasma na estrada entre a vida e a morte (a do fantasma e a da protagonista).

A viagem levar-nos-á da Covilhã até Évora – viagem descendente, ad inferos – onde a Professora Marta faz parte da banca que deverá julgar uma tese de mestrado. E já aqui, um possível ponto de fuga no quadro: a profissão (não sei se ainda a paixão) universitária do autor e o seu amor pela palavra. Se a palavra poética foi motivo de canto e celebração no seu primeiro romance, é agora a palavra como criadora de vida (de realidade), à boa maneira do evangelho de S. João, a que é lembrada e reivindicada como instrumento (o único possível) para vencer a morte. A palavra que conseguiu recuperar a pureza que para ela reclamava Mallarmé, a palavra que, bem e justamente usada, pode deter o curso da morte, rectificar a vida, reinventá-la, como acontece no caso da Marta. Quanto à Universidade, em certa maneira causa acidental (ou não) da vida aborrecida e causa fatal (simbólica e real) da morte da protagonista, acaba por ser o cenário do momento mais divertido e crítico do romance com o nascimento miraculoso de uma nova ciência – a Semiótica Transposicional – como epicentro da acção. Mistério, labirinto, crítica e riso, uma renda de bilros magnífica para melhor enfeitar os dias e para aprender com proveito e deleite que, apesar dos programadores do silêncio, só a palavra é que pode finalmente salvar-nos da queda na barragem que alta noite nos espera e convida para a última viagem.