O Porco de Erimanto – A. M. Pires Cabral

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO1

fábulas, visitações e lágrimas

pedro serra

O PORCO DE ERIMANTO
A. M. Pires Cabral

Lisboa, Cotovia, 2010.

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Aprimeira frase d’ “O Porco de Erimanto Ou os perigos da especialização” é também a que clausura este conto de A. M. Pires Cabral: “Não estranhem as lágrimas nos olhos, venho de visitar o pai” (p. 87 e p. 99). A pequena narrativa integra um volume homónimo, onde se reúnem os contos – em rigor, fábulas, modeladas pela burla, o humor negro, o grotesco, o bizarro – “Os degraus da morte”, “O homem que vendeu a cabeça”, “Homens e sombras”, “Catarse”, “As visitas do senhor director”, “Desidério”, “Nunca fiando”, “Senhor da sua morte” e “O tio Florindo ou Os malefícios da poesia”. Como justifica Pires Cabral no antelóquio do conjunto ficcional, o livro agora dado a lume recupera o volume saído das prensas em 1985, nessa oportunidade com o título O Homem que Vendeu a Cabeça. Esta edição, contudo, tem o valor de uma nova obra, pois não apenas os textos foram, nalguns casos, reformulados – com diferentes graus de intervenção –, como também foi o ensejo para introduzir fábulas que não integravam o livro de meados dos anos 80: “Todos estes factores reunidos autorizam – diz-nos o autor – a considerar o presente volume como uma obra independente” (p. 9). Daí, ainda, o título do conjunto dado agora à estampa em 2010, precisamente colhido de uma das novas narrativas. ‘Fábulas’, pois, no sentido de factos imaginados, de histórias de heróis antigos, mas também com a acepção mais específica de narrações em que convive o animal e o homem. O narrador do conto que diz voltar de uma visita ao pai, regressa da visitação a um porco, o porco em que paulatinamente o progenitor se foi metamorfoseando; assim, como no antigo Esopo, a fábula como género define-se pela presença central que os animais ocupam na narrativa. De facto, não apenas na fábula em causa temos a comunidade com o animal, encarnado por essa figura de um especialista em História da Antiguidade que, perseguindo o conhecimento do mito do ‘javali de Erimanto’ – uma das provas de Hércules, recorde-se –, enredando-se na trama de uma pulsão epistémica cada vez mais ‘especializada’, acaba por cruzar a fronteira que discrimina sujeito e objecto, par estruturante de um acto de conhecer que respeitasse a discreção do binómio. Tornase, ele próprio, um porco, um sus scrofa. O animalário, real ou imaginado, inclui ainda, por exemplo, a ‘aranha’ que narrador de “Desidério” – autêntica maravilha da arte de contar deste magnífico livro de Pires Cabral – imagina, vê e sente invadir o corpo: “Pode não passar de uma aranha virtual, uma espécie de holograma, um ectoplasma maligno, um simulacro, um bluff contra natura. Quid juris, Leitor amigo?” (p. 177). E, ponto importante, é também a condição do homem como animal e que se define na diferença com os bichos a que podemos integrar no sistema da ‘fábula’. Assim, e como podemos ler nesta passagem, as fábulas encenam amplamente o problema do conhecimento do mundo. Basílio, protagonista d’ “Os degraus da mortes”, é um sujeito mesmerizado pelo que poderíamos chamar o objecto absoluto, um ‘buraco’ na parede do quarto de uma pensão portuense onde vive. No Portugal dos anos 60, enfim, no Portugal do Estado Novo, Basílio persegue a pista de um poeta genial cuja ‘obra desconhecida’ chega ao seu poder. Vive no mesmo quarto onde habitara o génio, lugar enconfrado em que um ‘buraco’ coloca em suspensão os limites do dentro e do fora, do privado e do público. O orifício obsidiante, signo que vai sendo sucessivamente semantizado e ressemantizado, é, enfim, um novo tropo do acto de conhecer em que Basílio – sujeito moderno – sucumbe ao enredo da auto-reflexividade: “Um buraco na parede de um quarto não se conserva assim aberto, senão para canalizar a morte e a devoração” (p. 77). Como o historiador que deveio animal, também Basílio ‘participa na devoração de si mesmo’ (cf. pp. 67-68). Fábulas modernas e do moderno – decerto na declinação portuguesa situada no tempo da Ditadura, dado por índices como o provincianismo, o Estado burocrático, a imigração –, estas histórias de A. M. Pires Cabral dizem-nos que a pulsão de conhecer – modulada por uma insaciável suspeição (veja-se, neste sentido, o detectivesco “Nunca fiando”; a curiosodade do detective, aliás, está presente noutras histórias), o conhecimento como interpretação, como produção de distinções e diferenças – tem um tropo maior na devoração autofágica. No consumo de tempo, a canalização da morte. As lágrimas nos olhos do narrador d’ “O Porco de Erimanto Ou os perigos da especialização” significam que ‘ir visitar o pai’ é expor-se à perda do pai. Visitar – um vocábulo que repercute em diferentes fábulas, registe-se –, é expor-se à finitude. As lágrimas do filho são, como diria Derrida, a essência do olho humano que faz devassa do mundo, entendendo ‘devassar’ tanto como ‘observar, conhecer ou investigar’, ora como ‘devastar ou vulgarizar’. O mundo é, assim, ‘sem emenda’.