Maria Gabriela Llansol – Numerosas linhas

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO4

miguel filipe mochila

NUMEROSA LINHAS- LIVRO DE HORAS III
Maria Gabriela Llansol

Lisboa, Assíro & Alvim, 2013.

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Prossegue a publicação dos diários manuscritos de Maria Gabriela Llansol, seleccionados e transcritos por João Barrento e Maria Etelvina Santos, com este terceiro Livro de Horas em que se registam os anos de 1979 e 1980, os quais coincidem com o exílio belga da autora que preparava à época o volume Causa Amante, e que acompanha a sua mudança de Jodoigne para Herbais.
A dimensão intimista e averbativa do diário de Llansol não prescinde de uma relação de continuidade com a sua obra ficcio- nal, criando um hibridismo genológico que lhe é caro e que confir- ma, com Pachet, que o produto da escrita do diário é uma enun- ciação histórica que recria – e que, portanto, não replica – o tempo histórico. A questão temporal constitui, com efeito, a matéria sobre a qual o texto diarístico llansoliano trabalha, aqui associada a um conjunto de pretextos de auto-reflexão e de excursos pela génese da própria escrita, ligados às dificuldades e contingências da sua vida na Bélgica, do ponto de vista material, geradores de um certo desalento, de um certo tom geral de crise intercalado com a habitu- al dimensão solar, epifânica, inscrita no quotidiano revelacional de uma ordem biunívoca eu-universo própria da sua escrita.
Face à evidência da crise de uns dias desprovidos de sentido imediato e que dificultam o próprio processo da escrita, pela escassez de tempo e de recursos financeiros, encontra aquela, a escrita, a sua primeira qualidade, a de constituir um simulacro de fixação do próprio tempo, numa ilusão de perpetuidade gerida a partir de uma cristalização de um agora enunciativo que recusa o conteúdo precário daquilo que as palavras afirmam. Não é assim de estra- nhar que se encontrem nestes escritos, como é aliás costume em Llansol, diversas páginas sobre o acto da escrita como um modo de desprendimento da contingência exterior ao processo mesmo de es- crever, com os seus episódios institucionais (os pares, a História da Literatura, as academias, os prémios, os circuitos editorias), como uma inscrição da escritora no lado da língua, gozando de uma outra espécie de temporalidade, à maneira de Parrett, que entra no vórtice da repetição espiralar que o discurso do e sobre o eu constrói como modo de sobrevivência, de resgate do próprio, às malhas do tempo.
Assim, o texto diarístico llansoliano é desses que se podem ler (como as suas ficções que o são e não são tanto, ou quase, quanto os seus diários) sem uma ordem específica, numa absoluta rasura da ordem do tempo linear e de uma afirmação do instantâneo e do disperso, do casuístico como manifestação de uma recusa de su- jeição à cronologia. Este casuístico transporta-nos para um registo do rotineiro, dos gestos que justamente pressupõem aquela espécie de afecto pelos seres e pelas coisas que apenas a repetição, o serem todos os dias os mesmos e novos a um tempo, ocasiona. A vida animal e vegetal, a vida da natureza, que encontra no olhar do eu enunciador uma evidente simpatia, que decorrerá precisamente do seu carácter a-cultural, não civilizacional e, como tal, ciclica- mente reprodutível, porque não demarcada por uma categorização associada a centros discursivos estabelecidos exteriormente aos próprios fenómenos, esta vida, dizíamos, serve frequentemente, não por acaso, de ignição à escrita, à vocação da língua.
Parece ser assim possível dar razão a Blanchot quando afirmava que a escrita de um diário é ainda um modo de colocar o eu sob a protecção dos dias comuns e a própria escrita ao abrigo da aparen- te aleatoriedade associada à banalidade dos motivos desses dias, gerando uma regularidade discursiva que torna coincidentes o viver e o escrever, porque o escritor do diário é aquele que vive em pose discursiva e escreve revivendo. Llansol vai-nos dando por isso conta de uma procura de uma radicalidade (de inscrição de raízes no seu próprio tempo) como quem funda pela escrita o espaço que o tempo da vida real – da vida sem ela, sem a escrita – não deixa fixar. A relação ambígua, uterina, com Portugal, a mãe desejada e fantas- mática que não deixa que o sujeito verdadeiramente se inicie na sua maturidade sem ela, na sua orfandade adulta, é aqui revisitada outra vez. Portugal e a sua língua estão constantemente no horizonte do texto, mesmo quando a Casa começa a ser Herbais e se regista a maravilha da constatação da transposição de uma relação de perten- ça-exílio que a autora-protagonista mantinha já com a terra-mãe, e que faz desta uma autêntica figura geográfica substituta do país de origem, motivo que obsessivamente revisitará ao longo da sua obra.
Esta contínua deslocação do espaço de radicação do eu tem con- sequências ao nível da própria disposição do olhar do mesmo, que é o olhar de uma nómada que vive permanentemente num entre-lugar (a que sente, a um tempo, pertencer e não) para a qual a escrita, e outra vez a escrita, serve de paliativo, de espaço que abriga uma regularida- de que anula essa espécie de dualidade delirante, terreno da estética moderna, que Deleuze e Guattari adjudicam à experiência da esqui- zofrenia e que exige uma esquizoescrita libertadora, finalidade da li- teratura de Llansol. Nela começamos assim a compreender melhor a dimensão autocentrada da proliferação de ecos, de relações entre os distintos textos que compôs, da migração de figuras, motivos, actores e fragmentos entre diários e ficções, da criação de duplos e de substi- tutos que procuram preencher de palavras o espaço permanentemente esvaziado pela escassez do tempo que assinala a existência humana.