Manuel de Castro – Bonsoir, Madame

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO4

miguel filipe mochila

BONSOIR, MADAME
Manuel de Castro

Língua Morta / Alexandria, 2013.

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Com o virar do ano chega-nos uma das mais importantes publi- cações das últimas décadas em Portugal, selecção da poesia de Manuel de Castro, elemento precocemente desaparecido do anti-gru- po do Café Gelo pelo qual passaram com maior ou menor regulari- dade nomes como António Barahona, João Rodrigues, Saldanha da Gama, Raul Leal, Ernesto Sampaio e Herberto Helder, na sequência da dissidência surrealista e em torno da figura de Cesariny.
Encontramos aqui a reprodução de Paralelo W (1958) e Estre- la Rutilante (1960), bem como de uma série de textos dispersos em publicações diversas que se integraram num território editorial avulso e marginal. Os livros de Manuel de Castro aqui reunidos, publicados a expensas do autor, com tiragens limitadas, “dádivas à balda pelos cafés e tascas, publicidade nenhuma”, como a pro- pósito dos mesmos recordava Luiz Pacheco em número do jornal «República» de Outubro de 1972, recusam assim submeter-se ao mercado da literatralha proliferante, assumindo-se como autêntica poesia underground, condição que infeliz ou felizmente continua- rão a merecer mesmo após esta edição.
É na propensão tóxica do movimento de contra-cultura que o surrealismo afinal constitui que compreendemos a decisão des- ta atitude de permanente dinamitação dos discursos vigentes, de questionamento dos centros de emanação desse mesmo discurso relativo às linhas epistémicas de leituras estética e ideológica. São traços próprios daquilo a que com perdão dos próprios surrealistas designaríamos por carácter civilizacional da sua literatura, a qual postula decisivamente uma demarcação do locus de enunciação dominante: “este é o tempo em que morrem os príncipes/ao sol- -posto num final sereno/e se iniciam os ritos bárbaros/da Grande Velocidade”. Esta demarcação pressupõe, evidentemente, uma re- fundação do fazer poético por uma geração com pretensão, desde logo, de produzir uma simbiose da multiplicidade humana que concentre um esforço de relação primária com a existência, no cumprimento de um absoluto quotidianamente negado: “Sobre os cadáveres assim incorruptíveis/dos velhos príncipes desagregados no mar/passam os navios/e a geração angélica e terrível/talha o seu destino sobre-humano/onde a noite vai expulsar os astros/ iniciar-se, e ter um nome diferente”.
A conotação mística dos versos citados sublinha uma adesão a uma espécie de condição mágica da poesia e da palavra como pro- pulsoras de uma iniciação a um absoluto ou a uma supra-realidade que Manuel de Castro enuncia na sequência daquela “febre de Além” que afirma consumi-lo. O acesso ao supra-real justamente preconiza de novo uma relação total e primária do sujeito consigo mesmo, relação essa alicerçada numa concepção afim de um certo cratilismo constitutivo da linguagem, para cuja realização é urgente, de uma urgência moral, desbastar a palavra feita superficial pela sua subordinação aos sistemas de enunciação a que a mesma é votada diariamente: “Falo-vos exemplarmente do éter/nenhum homem será glorioso na morte/enquanto não se tornar total/e não possuir seu nome exactamente”. A relação com o eu total e gené- sico ancora numa inclinação para uma atenção aos elementos não meramente toleráveis do ser humano, numa prática ostensiva da recusa da normalidade como vício de um sistema de vida afina- do de acordo com os discursos da superficialidade da relação no domínio do espaço social, ecoando a concepção de um génio em rebeldia que exerce uma liderança espiritual de remanescência ro- mântica: “Nós os intocáveis, os imundos, recusamos/nossa vida à condição comum./Porque é imortal a rosa que nos leva/entre o dia e a noite./Nós os derrotados, impuros, oferecemos/nossa miséria a um significado/oculto e diferente/.../ Nós os últimos dos últimos coroamos/impérios e jardins”.
Não surpreende, por conseguinte, o hermetismo declarado des- ta poesia, de foro orientalizante, e que é estritamente técnico, fun- damentando uma prática do estranhamento literário que projecta uma estética da velocidade e da intensidade como mecanismos de irrupção da tencionada relação em profundidade do sujeito consigo mesmo. “Asteróide em fuga”, uma das composições mais explicitamente metapoéticas de Manuel de Castro, dá conta da posição técnica aqui enunciada: “Cada centímetro cúbico da noite/ se adquire no precipício do jogo/ com as palavras decompostas livres propulsoras/ lubrificadoras de ossos vorazes/ no ritmo largo das muralhas vencidas.// No tempo permanente/ o exercício de extremo limite/ amplifica os ângulos/ destrói as máquinas antigas/ propõe a celeridade como estilo/ no regresso possível à pureza dos nomes// Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado/ semeado de gotículas azuis que são as palavras/ umas a seguir às outras velozmente”. Eis a reincidência da defesa de um novo paradigma assente num certo cratilismo (a pureza dos nomes) reve- lacional do eu para o qual a estética da “celeridade” contribuirá na medida em que permitirá a libertação das relações profundas entre imagens e palavras contra o discurso das “máquinas antigas” que se cristalizaram numa superficialidade enunciativa que despoja as palavras da verdade que enunciariam. Uma aproximação a um êxtase verbal promoverá, assim, uma relação mais sensorial com o mundo (“nudez-carícia/ o corpo inclina luz sobre a cidade/ luz imó- vel/ extensa/ musical”), relação essa em que emerge pelo menos uma apropriação de um supra-real em que a convencionalidade é minimizada e em que o sujeito se revele em toda a sua ambígua na- tureza, em que contacte consigo mesmo a partir de uma comoção verbal que promova uma relação estésica com o mundo.