Lira – Manuel Silva Terra

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO1

ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO

LIRA
Manuel Silva-Terra

Évora, Editora Licorne, 2010.

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Oponto de partida dos trinta e um textos que constituem o livro Lira de Manuel Silva-Terra é a palavra livro. Esta constatação obriga-nos a considerar uma equivalência entre o livro e a lira, de resto suportada pela nota do autor aposta no frontispício (lira: parte fixa duma prensa manual, assim chamada por apresentar a forma duma lira).

Há uma excepção, o vigésimo quinto texto, que abre com uma asserção sobre o palimpsesto (O palimpsesto é um livro ainda inexistente). Esse texto parece funcionar como um momento de paragem, reflexivo, quase especular, que trava por um lado a aceleração verbal dos textos anteriores, todos eles marcados por um galope torrencial, e por outro os reordena em função dum sentido sempre futuro. Na verdade o livro nunca está escrito; sobra sempre nele um lugar em branco. O espaço em falta é o do próprio mundo.

Lira de Manuel Silva-Terra é pois um livro sobre os livros, que evolui, na aparência e na cadência, como um exercício de linguagem. Há o livro-casa, o livro-cobra, o livro-água, o livro-ave, o livro-fiama, o livro-espectro, o livro-eugénio, o livro-animal, o livrolinguagem, o livro-abrigo, o livro-de-ervas, o livro-cão (este, por exemplo, é patético) e por aí fora, num processo alucinante de formação de palavras novas, que nascem para a língua portuguesa pela justaposição de dois substantivos autónomos (em vinte e dois casos), pela justaposição dum substantivo e dum adjectivo (um único caso), pela justaposição de dois substantivos ligados por preposição (em seis casos) e ainda, no caso final, pela justaposição dum substantivo a um substantivo justaposto (o livro gata-gato).

Não se trata tanto dum dispositivo formal, capaz de gerar como uma máquina combinatória uma infinitude de palavras novas, mas dum caso semântico com tradução lexical, quer dizer, duma delicada operação cirúrgica nos centros vitais das significações. No fundo aquilo que se procura com este procedimento é alargar a noção de livro ao espaço do próprio mundo. Ao mesmo tempo que o léxico canibaliza a língua, o livro alarga o seu espaço aos elementos do universo.

É por isso que o livro-cão tem alguma coisa de aterrador (O livro-cão foi encontrado abandonado ferido esfomeado (…). É um apátrida – um clandestino. Ladra durante a noite. De monte para monte. De casa para casa. De estante para estante.), enquanto o livro-ave tem algo de inefável ou de sublime (Nesta dança caligráfica os pés das letras mal tocam a superfície da página. Portadas abertas pelo vento. A paisagem ondula. Olhos límpidos – duas aves.). E por aí fora, até ao infinito, até ao livro-livro impossível. Estamos assim diante dum livro que tem o tamanho do mundo.

Manuel Silva-Terra, além de poeta e tradutor (acabou de verter para linguagem portuguesa uma antologia pessoal do poeta espanhol José Luís Puerto), é editor de livros. Sabedores deste facto, percebemos que esta Lira é o resultado dum cruzamento, um livro-mundo por assim dizer, mas é outrossim a procura do livro absoluto, o livro-sonho de todo o editor, que tanto pode ser o livro sem espaços em branco, cuja reescrita encontrou o seu termo, como o livro por escrever, o livro-eterno, o quinto Evangelho, cujas páginas estão para sempre em branco.