Helder Macedo – Camões e a viagem iniciática

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO4

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

CAMOES E A VIAGEM INICIÁTICA
Helder Macedo

Lisboa, Abysmo, 2013.

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Acaba Helder Macedo de reeditar livro seu, Camões e a Viagem Iniciática (1980), onde em duas partes, uma dedicada à lírica e outra à épica, a primeira resultante dum estudo de 1976 vindo a lume em Inglaterra e a segunda fruto de dois estudos posteriores, recolheu o trabalho, ou ao menos o que nele lhe sur- gia como mais representativo, até então consagrado à leitura da obra de Camões. A reedição traz uma nova secção, uma aborda- gem das cartas do épico, resultado de intervenção mais recente. O novo livro complementa-se com uma chamada de atenção para o incisivo exercício de leitura que Macedo fez da mais importante empresa camoniana dos últimos 25 anos, o Dicionário de Luís de Camões (2011; org. Vítor Aguiar e Silva), dado na revista Colóquio-Letras (n.o 182, Janeiro/Março, 2013) e que não desme- rece ser incluído em reedição futura desta colectânea.
Das três partes que hoje fazem o livro, não hesitamos em escolher como a mais relevante, a boa distância das duas res- tantes, a segunda, devotada à leitura d’ Os Lusíadas. Julgar que a escolha pouco representa é erro, pois reputamos o estu- do de Macedo, não obstante a curta extensão, como um dos melhores de sempre. É trabalho denso, compacto, fruto duma vasta anotação anterior, além duma genealogia informativa que remonta a Faria e Sousa. Tem um ponto de partida invulgar mas nada desprezível: a viagem, fio das intenções do poema, é iniciática; logo o discurso tem segundas intenções e o poema uma natureza simbólica. Com tal ponto de arranque, que se ins- titui como a pedra de toque da resistência geral do estudo, ou dos diversos ensaios que nele coexistem, pode Macedo partir para uma hermenêutica de excelente envergadura que toca com fluente e sereno à-vontade nos mais enovelados e embaraçosos episódios e nas mais espessas figuras da intriga (o lugar do Gama, a identidade do Adamastor, o papel de Vénus, o signifi- cado de Baco, o valor da Ilha do Amor). É a forma inteligente e inovadora com que trabalha estes pontos que legitima o cimeiro lugar que acima lhe indicámos e reservámos.
Para compreender o sentido iniciático do poema parece-nos de grande relevo a sugestão, sustentada pelas abundantes in- tervenções pessoais do narrador, de que a aventura do poema é mais pertinente do que a da viagem. O poeta substitui-se assim ao Gama. Sem poema não há expressão e sem expressão não há sentido iniciático para a viagem; o sentido iniciático da via- gem supõe pois o do poema. O verdadeiro centro regenerador de todo o sentido textual e humano, a Ilha divina, só existe por causa do poema. É por tal curso, e não pelo suporte da histo- riografia do tempo, João de Barros incluído, que se entende em Camões a valorização da História, ou do sentido messiânico e escatológico desta, que o levou a inscrever o poema dentro do género épico e a escolher para centro dele a Ilha angélica e pintada. Certeira pois a observação do autor sobre a influência joaquimista em Camões (p.71), que cruza observação sua an- terior sobre a correspondência entre milenarismo historicista e cabalismo messiânico em Bernardim Ribeiro e no Renascimen- to hispânico (v. Do Significado Oculto da Menina e Moça). A aproximação merecia porém novo e mais amplo excurso a pro- pósito da situação religiosa do épico; classificá-lo como cristão e humanista de vanguarda (p. 98), categorias que cerzem ainda a costura do primeiro estudo dedicado ao lírico, parece pouco. Se há verdades ficticiamente representadas, se realidade há no poema que apele ao disfarce da fábula, a religião é decerto, no quadro histórico-cultural do século XVI peninsular, a primeira delas. Reside aí porventura o núcleo mais velado, mas também mais decisivo, do poema, aquele sem o qual nunca será possí- vel nele explorar qualquer sentido iniciático.
Não esquecemos que foi Helder Macedo, autor do mais ad- mirável estudo sobre Bernardim, que citou, a propósito da aber- tura de Menina e Moça, o Hino da Peróla. Trata-se de passo do evangelho apócrifo de Tomé, texto seminal da religião fundada por Mani na Pérsia, século III, base dos dualismos gnósticos ulteriores e que tocou franjas importantes da cultura hispânica, a começar por Prisciliano, logo no século IV, que se tornou substrato obrigatório de muitas heterodoxias peninsulares ulte- riores, e não apenas cristãs. Ora ao apóstolo do Indo dedicou Camões trecho de 12 oitavas no Canto X, que fecha com o solto, mas deixemos esta matéria perigosa. Se falha apontamos ao estudo de Macedo é a de não tomar em mãos o passo, tiran- do dele as conclusões que se impõem, alargando-as ao lírico. Comprovam elas afinal uma velha intuição do autor – a Menina e Moça não é anomalia, nem excepção, mas elo fecundo duma tradição contínua. Dos vivos, depois da partida de Fiama e de António Telmo, ninguém como Helder Macedo está habilitado a mostrar-nos como Camões, que citou Bernardim, é um dos altos picos deste contínuo cultural.