Frederico Pedreira – Um bárbaro em casa

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO5

miguel felipe mochila

Um bárbaro em casa

Frederico Pedreira

Lisboa, Língua Morta, 2014.

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Os sete contos que compõem Um bárbaro em casa, de Frederico Pedreira, resolvem-se na verdade como capítulos de um pequeno romance, sem cuja percepção de uma unidade narrativa, a qual tem na focalização narrativa o seu esteio, dificilmente faríamos justiça ao seu fulgor. Sejam então sete capítulos, numa sucessão de episódios vinculados a sete mulheres –Tota, Hanna, Jasmine, Ivanna, Martina, Mel e Filipa–, dissecadas às vezes com uma assertiva ferocidade raramente vista no tratamento da figura feminina na narrativa portuguesa, através de um olhar que faz do masculino um estilo, no qual não apenas encontramos os ecos de um Lobo Antunes, de um Céline, de um certo Junot Díaz, com menos teor irónico, exclamativo ou rocambolesco, mas ainda uma acidez e um despudor perspectivo que rasura as marcas de uma doçura contemplativa só raras vezes –e significativas– adoptada.

Este é um discurso de uma errância existencial no seu sentido mais exacto, isto é, no sentido em que dispensa o predicado da alienação que faria com que o não fora, e descobre uma ideia aventureira da narrativa numa base de um estar projectivo que desbobina sempre um fracasso. A voz masculina, pertença de um narrador autodiegético e profundamente subjectivo, encontra-se guiada por este malestar provocado por um ser numa deriva engasgada de uma realidade que o atropela velozmente, fracasso após fracasso, porque “o corpo já não nos atira as bóias da salvação moral, optando antes pela deriva”, nos intentos da conexão erótica sempre só momentaneamente redentora, ou já nem isso, com uma figura feminina que se desdobra em frustrantes hipóstases até à própria anulação da expectativa.

Começando pela trilogia islandesa dos capítulos iniciais, radicada num bar onde um narrador tolhido pelo entorpecimento alcoólico encontra a frouxa euforia do engate, pontuada de laivos de consciência de uma auto-comiseração que orquestra aqui uma honestidade existencial flagrante e eivada de nostalgia –“o ar tristonho de quem não entende a duvidosa arte de beber até à exaustão, de quem pede uma garrafa de água porque já não sabe como pôr a dançar os cornos alucinados entre os fantasmas que a memória travestida nos traz”–, o romance passa ainda por Londres ou por Lisboa, entre a congénita resistência –nunca moral, nunca patológica nem política– ao negócio de se ser ao modo de um empregado de loja de roupa, por uma pontada de ócio onde a libido oscila entre o nojo e o encanto sub-nutrido, e a intersecção violenta da notícia da morte do avô na nauseada narrativa de um engate acidulado. Culmina-se finalmente com a ruína da projecção forçadamente salvífica da relação com a alteridade feminina congeminada pelo último capítulo, narrativa da dependência, da submissão e do desgaste do protagonista no seio de uma relação sem feedback e onde ele por uma vez primeira depositara de facto alguma energia, o que lhe permite concluir que “Romarias de bordel perdoam-se, o amor é que já não.”

São histórias de mulheres deterioradas por um olhar acentuadamente urbano, ébrias, drogadas, prostituídas, desesperadas, frustradas, enfadonhas, desleixadas, mulheres essas que são, na verdade, secundarizadas, interessando antes o conflito permanente em que se acham com o protagonista, que tem real primazia temática, o qual se resolve quase sempre na arena –entre o enjoo e a volúpia– do sexo degradado, que vai servindo de um cinto de segurança cada vez mais inerme para uma viagem vital anestesiada, à medida que a rotina destrói o seu efeito letárgico, até que o amor se converte na última e mortal saída, onde o fracasso erótico é total e descamba num abandono do espaço feminino como espaço de uma projecção salvífica.

Uma pretensa misoginia germinante no olhar do narrador não deixa de estar condicionada pela memória fundadora de uma narrativa selectiva que discrimina uma sucessão de eventos nos quais se originaria um eu humilhado e vazio de um sentido dado, para o qual a finalidade da vida é o in fieri e não um factum, das cruéis aleatoriedades de um balneário de adolescência ao vexame da calvície, passando por marasmos físicos copiosos na perpetuação da adolescência como processo onde o adolescere se confunde com o dolere. Encontrá-lo-emos por isso em viagem, num percurso que implica a anulação da familiaridade com um espaço originário do qual se terá alheado, vivendo em plena despertença, como um bárbaro que aprende a fazer dessa condição a sua casa, entre bebedeiras, engates fracassados, frustrações sexuais, o nojo dos dias ensaboados, ressacas, triunfos menores, fait divers de uma urbanização nos meios de uma intelligentsia juvenil grosseiramente incauta. Chega-nos tudo isto através de um escrita vertiginosa, torrencial, desbragada, angulosa, travada aqui e ali de um furtivo lirismo que é o do poeta que também há em Frederico Pedreira, o qual recusa ceder à tentação do colorido: “Não permitas que te fintem, não deixes escapar o teu livro negro.”

O que o livro de Frederico Pedreira nos oferece é assim fundamentalmente uma narrativa disposicional, radicada na perspectivação do acesso do protagonista à realidade mediado por um estado existencial que ora apresenta um pendor melancólico, ora é próprio do tédio. Aquele mal-estar profundo, uma espécie de tristeza congénita que entorpece a relação do sujeito com a vida, fazendo com que ele perca as coisas antes mesmo de as ter aprofundado, próprio da melancolia que assim espelha nas suas relações, vai-se convertendo, na sucessão desgastante das experiências sexuais sob o signo da frustração, no tédio profundo que Heidegger descrevia como uma névoa silenciosa que nivela todas as coisas, numa estranha indiferença. É difícil não nos espantarmos com a precisão dos relatos dessa indiferença, à medida que a projecção se vai gorando num aqui e agora cada vez mais anestesiantes na perda de um ensejo de saciação de uma sede que o é cada vez menos, num comportamento de predação sexual progressivamente mecanizado.

Às portas da angústia, onde se eclipsaria qualquer relação de causalidade com a frustração existencial, angústia essa que coroaria a expressão assombrosa, do unheimliche onde a condição da barbárie se ajustaria definitivamente, emerge ainda o último capítulo, “Filipa”, no qual uma inversão da relação com a figura feminina, que surge proprietária dos domínios da relação, faz com que o narrador descubra pela primeira vez o seu papel instrumental, objectual e não agencial no seio do erotismo, numa aguda consciencialização da ineficácia do amor. Aquilo que seria o pressuposto da sua liminar abertura para a angústia é no entanto travado pela descoberta de um papel inédito na sua vida, ao se ver confrontado com a urgência de tomar para si a responsabilidade do cuidado do filho órfão da amada toxicodependente, perante a qual se assume como educador: “não deixes que o amor te escangalhe o voo, as mulheres jogam em planos ínfimos para nos foderem a vida, cheira-lhes só o perfume e afasta-te, a tua mãe morreu e eu estou aqui contigo”. A lição que o protagonista assim oferece à criança abandonada é a lição da sua própria vida, onde o amor é tanático e o sexo um soporífero afinal incapaz, uma ilusão útil. O que ele lhe não diz é que, afinal, ao tomá-la pela mão, também ele a aceita como um esteio de uma vida que se não deixa mergulhar na angústia. Ao cuidar dele está também, evidentemente, a cuidar de si.