miguel felipe mochila
Corpo Santo / 75 poemas
Ruy Cinatti
Lisboa, Averno, 2014.
Não é a primeira vez que a obra poética de Ruy Cinatti (1915-1986) merece um empreendimento antológico. Foi o caso de Poemas Escolhidos (Lisboa, Cadernos de Poesia, 1951), com selecção e prefácio de Alberto de Lacerda, e de Ruy Cinatti – Antologia Poética (Lisboa, Presença, 1986), organizada e prefaciada por Joaquim Manuel Magalhães. Entretanto, em 1992, proceder-se-ia à publicação da Obra Poética do autor, com organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral, em edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, obra poética essa que três volumes póstumos integrariam, vindos a lume pela mão de Peter Stilwell e pela editora Presença (Corpo-Alma [1994], Tempo da Cidade [1996] e Archeologia ad Usum Animae [2000]). Chegam agora, em 2014, duas antologias que se convertem, por razões diversas, em momentos fundamentais na recuperação de uma voz singular no panorama literário português, por iniciativa da editora Averno e muito em particular pela mão de Manuel de Freitas. Do esforço antológico de que os dois volumes participam, destaca-se evidentemente Corpo Santo, por nos oferecer um conjunto de 58 poemas quase todos inéditos até à data, ignorando a versão policopiada em que se achavam dispersos, ao passo que 75 poemas resulta de uma selecção pessoal da produção do autor.
Compreende-se, só por isso, a decisão de repartir a edição em dois volumes, embora seja de ressalvar a evidente unidade que uma produção como a de Ruy Cinatti pressupõe, unidade essa que resulta desde logo de uma honestidade existencial na relação com a poesia que faz dela um caso de fulgor pouco comum no âmbito das nossas letras. Talvez disso redunde a inoperância de uma leitura literária da sua inserção na história da literatura portuguesa. Em Ruy Cinatti, aquilo que importa não é mesmo a literatura, pois a sua produção decorre directamente de uma experiência vital ancorada em preocupações políticas e teológicas fundamente vividas. A honestidade vital a que faço alusão está alicerçada numa escrita fundamentalmente patética, na qual a autenticidade da sua voz não é mero rótulo literário, mas a pulsação de uma força verbal expansiva e de uma inusitada juventude, que reverbera numa certa imediatez composicional que lhe oferece um fôlego concreto que raras vezes encontramos nos nossos poetas e que talvez justifique o desprendimento, a ousadia que nem ousadia se chama, de se lançar numa torrente imagética e associativa que lhe permitiu, quiçá por isso mesmo, medir o pulso de uma desancoragem pátria que hoje nos grita com uma desarmante actualidade, como já observaram alguns a propósito de um poema como “Alfaiataria”, escrito a 5 de Dezembro de 1974: “O perigoso ofício do governo / quando imoral conduz à catástrofe. / O meu país anda à beira do abismo, / replica em vão com voz lamentável. // (...) As leis dos homens nada podem / contra a vontade de um cidadão livre. // - Esse que quando despe o uniforme / já outro veste, que o justifica / homem, insecto, passando por ave, / metamorfose, ficção científica.”
Nestes e noutros versos de Cinatti respira também o paisagista, o geógrafo de uma geografia humana, numa urgência de fisicalidade na relação com o espaço e seus componentes, quer seja rural, quer seja urbano, que radica numa intransitividade religiosa, em sentido lato, conforme sustenta Manuel de Freitas em posfácio a 75 poemas. Se o seu radar é evidentemente de uma invulgar afinação para os pressentimentos das metamorfoses comportamentais humanas, radicadas num espaço e num tempo convulsivos e repulsivos, a procura de uma pacificação –“Eu rio-me e choro e arquejo fundo / com os meus citadinos, ditos desgraçados, / e prometo-lhes um visto para o Paraíso / entre pombas, meretrizes e monges- -soldados”– agudiza a assertividade do rasgo de um desalento que nunca é aqui sinónimo de inércia, mas de uma paixão exacerbada pelo esplendor dos possíveis que o real renega. A sua imersão profunda numa urbe em cujo mapeamento humano se aplicou, desenhando o que é a nossa modernidade das relações mediadas, podres e pobres, revela-nos o rosto de uma solidão –que é sua por direito na nossa literatura– onde o botânico que nele habita encontra a ignição de uma memória vegetal que povoa os seus poemas.
Compreende-se por isso o modo como uma solidão assim agudizada promove uma volúpia do apagamento –“Sou no meu retrato / um homem a menos”–, para usarmos os termos do antologiador, volúpia essa que, sustentando uma concepção da radicação na vida semelhante à de um Pascal, que afirmava que se morre sempre sozinho, revela o lastro ético dessa condição como consubstanciação de uma ancoragem moral na relação com essa mesma vida, onde a verbalização do fracasso é um modo de desprezá-lo e de engendrar formas resistivas de estar no mundo, das quais a poesia é apenas uma síntese, a possível fixação contra a inexorabilidade da passagem do tempo. É por isso que esta voz é imensamente expansiva, numa denúncia que é tão política quanto íntima, dirigida a uma Lisboa servil de uma “Europa medrosa”, que se tornaria “fecunda / em filhos da mãe”. Esta denúncia não denota um olhar teórico, como muita da má literatura engajada da nossa história produziu, mas uma visão de um poeta para o qual a poesia foi de facto um modus vivendi, superando em muito o exemplo tutelar de Rimbaud, no seu contacto com São Tomé e Príncipe e mais ainda com Timor, vivendo a expatriação como uma condição de operatividade judicativa de uma integridade que lhe permitiria afirmar que “Se não fosse português matava-me / e acabava de uma vez com a raça.”
Foi para dizer coisas destas aos passantes que Cinatti copiava folhas volantes que distribuía pelas ruas da baixa lisboeta, ou entre amigos, numa actualização sem par de uma certa concepção romântica do poeta como líder espiritual dos povos, através do cultivo quer de uma percepção muito subjectiva da realidade, quer de uma voz embriagada de uma notação sentimental dessa realidade, desmesurada, grandiloquente, quer ainda da assumpção da responsabilidade de uma intervenção social, política, religiosa, as quais nunca dispensaram o cuidado da linguagem de uma tensão rítmica e de uma prosódia determinantes na vivacidade do seu verbo. A sua voz só nos poderia chegar em poemas assim, nos quais encontramos, fundamentalmente após Sete Septetos (1967), o ajuste de contas (a expressão é do poeta) de si para consigo, para com o mundo e o universo ético e metafísico, justificando um certo tom angustiado que pontua esta produção e que, levado ao extremo, se verte febrilmente naquela ironia que nutre um riso trágico, um rir de si mesmo que é muito um modo de Cinatti se nos oferecer integralmente. E é por isso que encontramos a mesma expressividade na descrição de um pássaro encontrado em Príncipe ou no diálogo com uma Europa dita culta, de Rimbaud a Pound, passando por Eliot, na preservação de uma certa adolescência tonal que resulta, conforme observaram já alguns críticos, de uma sagacidade no olhar de inquietação nunca diluída em disforia. Só a partir da compreensão da premência deste olhar e desta implicação existencial podemos entender cabalmente a convivência na sua poesia do exercício narcísico e da inclinação quantas vezes desmesurada para os outros, de um eros desbragado e pagão associado a uma religiosidade católica.
É nesta multiplicidade que encontramos hoje a força desta poesia. Nela se achavam já, sem a parangona das instituições pró ou contra-fascistas que determinava uma posição no nosso polissistema literário, a violência satírica, a coloquialidade, o apelo do real ou o aprofundamento da transcendência numa imanência verdadeira, que entretanto fizeram escola entre nós. Haverá decerto quem paternalmente o queira resgatar como tal, mas Ruy Cinatti, por tudo isto, precisamente, e a sua poesia aí está para desenganá-los, não se deixará tomar por saloio e póstumo fundador das equipas distritais das nossas literaturas.