miguel filipe m.
As Raízes Diferentes
FERNANDO GUIMARÃES
Lisboa, Relógio d’Água.
Origor e a discrição desta poesia, na ausência de exaltação, prefiguram uma vivência da pacificação dos limites (silêncio, dúvida, dor, velhice, morte), frequentemente anexada a um regresso ao corpo como primeiro e derradeiro lugar da convivência do Homem com o mundo, o qual reverbera e antecipa a experiência dessas condições limitantes, perfilada por um horizonte de sensibilidade ou de intimismo meditativo. Uma interiorização do real – «É essa interioridade/ e não a flor que se deve pintar» –, sem subjectivação do meio, através de uma espécie de dispersão elocutória (Verlaine), que objectiva uma voz cuja comoção é mediada por um intenso perfil reflexivo, conquista na obra de Fernando Guimarães uma possível serenação dos instantes, por uma substantivação do mundo (vento, cidade, chuva, rosto, jardim, flor, rio, canal…), anexada a uma experiência da transparência (luz, água, ar) que apoliniza a realidade.
Há pois um sentido da metamorfose dos objectos, através da prevalência do olhar, matizada por uma tematização existencial, que fundamenta o influxo narrativo num lirismo des-subjectivante, sem obliterar, ainda assim, a presença dum eu objectivado pelo pendor meditativo destes poemas, uma consciência que dá forma ao mundo e que universaliza as interrogações mais íntimas, por uma espécie de comunidade de sofrimento, que tem um perfil esperançado, «para que de novo os braços se unissem a outros braços, não com terror/ mas amorosamente», criando «uma aliança que era a do sofrimento, esta escuridão dividida/ por todos.» Esse pendor reflexivo justifica a permanência descritiva e narrativa que estes poemas configuram, seccionada por uma ligação ao silêncio que o artesanato do verso, dos efeitos de uma prosódia semantizada, cauciona. As Raízes Diferentes constitui, portanto, mais um capítulo nessa espécie de tratado – objectivação - de harmonia - pressentimento de uma transrealidade que une todas as coisas, por uma visão moderadamente lírica –, para usarmos um título anterior do autor.
Há, com efeito, uma série de pressentimentos mais ou menos fantasmáticos que configuram essoutro grau de realidade, associado a «qualquer coisa», a «alguém», numa «suspeita» ou «ameaça» que os «vultos» carregam como «uma espécie de segredo», sob o signo da indefinição. Um constante sentido de observação da realidade, uma visão alerta na procura das raízes faz prevalecer na poesia de Fernando Guimarães um horizonte imagético que devolve ao olhar uma importância matricial, porque «uma flor pode nascer dentro dos olhos». Trata-se, pois, de uma poética funcional, desprovida de grandes palavras, conhecedora da permanência do espanto que o reconhecimento, a familiarização com os objectos, mudados por via de um olhar que os desconstrói, antecipa como experiência do estranhamento, ou da fecundidade da imagem com referentes bem definidos, formando indícios que uma renovada relação dos seus componentes ajuda a revelar à luz de novos sentidos. O olhar assim comedido, original e originário, funda um universo de palavras comuns que, com esse mínimo referente, ganha modos de prefiguração de um modelo arquetípico/cósmico, que deseja as ligações, desvela as raízes diferentes que abraçam uma mesma transrealidade, uma alteridade habitada por um olhar poético. Esse olhar é, assim, de regime especular – «São diferentes, porque aparecem sempre reflectidas/ na água»; «imagens reflectidas, no que era/ uma outra cidade. É por ela que caminhamos»; «Os quatro cavalos são oito» – e associa-se à forma circular como forma de eternização pela possessão ou intensificação do real (Durand): «As cúpulas/ unem-se às que estão reflectidas e de repente formam/ uma esfera».
Uma retórica da levitação ou do alto (aves, ramos, cúpulas, colunas, nuvens, telhados), associa-se assim à descoberta de uma aura, de um sinal de suspensão (subliminar) libertado dos objectos e dado pela prevalência da expressão sibilina, de advérbios como «talvez», formas que interpõem um intervalo de silêncio no que regista um sentido de perda regenerante, através duma consciência poética que liberta os momentos disfóricos e os prolonga em presenças, através da memória, da contemplação e da reflexão, como motivos de suspensões ou iluminações: «A luz que chega pode explicar-nos/ melhor o que se passa»; «A imobilidade permite encontrar outros caminhos»; «Pode/ a nitidez do que está escrito fazer agora com que deixemos/ de existir?»
Um mundo de pequenas disforias, embora intensas (os animais mortos, as ruínas de Pompeia, terramotos, tempestades, palavras como «destruição» ou «ferrugem»), gera uma atmosfera de dissipação das formas – «As armas foram/ finalmente esquecidas; mais seca a terra estende-se à sua volta/ para que ficasse apenas a imagem do abandono»; «o que existe/ principia a ganhar uma fragilidade que se torna maior»; «talvez sejam apenas/ as nossas rugas, porque envelhecemos» –, para o que uma poesia inspirada nas mais diversas respostas àqueles limites radicais do eu e do mundo (pictóricas, arquitectónicas, escultóricas, musicais, literárias – sem reduções ekphrásicas), que têm na sensibilidade estética como experiência da intensidade uma série de raízes diferentes, funda, não obstante, ainda um mesmo sentido, que nos diz que é preciso seguir «outros caminhos para que se descubra/ um novo segredo» e que por ele há-de vir «ao nosso encontro esta harmonia que tínhamos esperado», uma harmonia que nasce onde «a vegetação procura o interior das cinzas», para «ornamentar a morte», para iludi-la.