antóno apolinário lourenço
Antologia poética
LUIS DE GÓNGORA
(selecção, tradução, prólogo e notas de JOSÉ BENTO)
Lisboa, Assírio & Alvim, 2011.
De uma assentada, o poeta e incansável tradutor José Bento acaba de dar a lume dois novos volumes de tradução de poetas espanhóis do Século de Ouro, Lope de Vega e Luis de Góngora. Talvez por ser mais controverso e, sem dúvida, um desafio mais complicado para o tradutor, prefiro centrar a minha atenção na antologia gongorina. A dificuldade principal que coloca a leitura de Góngora advém do seu carácter obsessivamente cerebral e lógico, ainda que desenvolvido num discurso sintáctico-imagético extremamente complexo que dificulta a apreensão do seu sentido. Por isso o poeta sevilhano foi amado pela geração de 27 e detestado por Antonio Machado, que não suportava o seu raciocínio quase silogístico e a escassa emotividade dos seus poemas.
Mais difícil ainda do que ler Góngora é traduzi-lo, e sobretudo traduzi-lo à maneira de Bento, isto é, procurando sempre manter o ritmo, a rima (quando existe) e o sentido dos versos. Sublinhe-se que, na escolha dos poemas, José Bento não faz qualquer concessão à comodidade. O Góngora “popular” e o Góngora “obscuro” estão presentes na antologia sempre em função da qualidade dos versos e nunca da facilidade da tradução.
É claro que nem todas as soluções encontradas por José Bento me parecem completamente ajustadas. No início da “Soledade Primeira”, custa a entender, no verso “em que o raptor disfarçado de Europa”, a referência ao mito do rapto da princesa Europa por Júpiter, disfarçado de touro. Creio que seria preferível manter a anteposição do adjectivo ao substantivo, como acontecia no original, e traduzir “mentido robador” por “disfarçado raptor”. Mas parece-me particularmente muito pouco feliz a tradução do último terceto do soneto “Suspiros tristes, lágrimas cansadas”. Ou seja: “que esse anjo ferozmente humano então / não cria minha dor, e é pois meu fruto / chorar sem prémio e suspirar em vão”. No original, encontramos o verbo “creer” e não o verbo “crear”: “porque aquel ángel fieramente humano / no crea mi dolor”.
Na verdade, o que o poeta lamenta no soneto (através do recurso estilístico da correlação, que o tradutor transpõe fielmente para o idioma português) é a impossibilidade radical de expressar a dor provocada pela rejeição do seu amor, devido à conspiração conjugada do vento e do álamo, que lhe abafavam os gritos e lhe absorviam rapidamente as lágrimas vertidas, “para que aquele anjo feramente humano” não se apercebesse sequer da profundidade da sua dor.
Mas numa tão ampla recolha poética, que se espraia por 447 páginas, não é a discordância pontual por alguma opção concreta que diminui ou deslustra o reconhecimento da relevância e da oportunidade do trabalho.
E precisamente porque a minha opinião geral sobre a qualidade da selecção e da tradução é bastante positiva, prefiro terminar com a transcrição de um outro poema famoso, no qual se tematiza, à maneira barroca, a precaução necessária contra os perigos e armadilhas do amor:
A doce boca que a provar convida um humor entre pérolas brotado, ?sem invejar esse licor sagrado
que a Júpiter ministra o moço de Ida,
amantes, não toqueis, se quereis vida; pois, entre um lábio e outro purpurado, Amor está, de seu veneno armado,
qual entre flor e flor serpe escondida.
Não vos mintam as rosas, que à Aurora direis que, aljofaradas e olorosas, tombaram do purpúreo seio pleno;
são as maçãs de Tântalo, não rosas,
que irão fugir do que incitam agora;
e somente do Amor fica o veneno.