Ângela Fernandes – A Idea de Humanidade na literatura do Inicio do Século XX: Huxley, Malreux, Gómez de la Serna

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO4

GABRIEL MAGALHÄES

A IDEA DE HUMANIDADE DO INICIO DO SÉCULO XX: HUXLEY, MALRAUX,GÓMEZ DE LA SERNA

Ângela Fernandes

Lisboa, Tinta-da-China, 2013.

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ngela Fernandes tem desenvolvido um trabalho brilhante como coordenadora da linha de investigação DIIA (Diálogos Ibéricos e Ibero-americanos) do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O seu comparatismo, porém, não se limita ao âmbito peninsular ou latino-americano, alastrando para o mundo anglófono e ainda para outras áreas culturais. Esta multiplicidade de interesses é bem visível em A Ideia de Humanidade na Literatura do Início do Século XX: Huxley, Malraux, Gómez de la Serna, uma obra que constitui a sua tese de doutoramento.
No início, Ângela Fernandes percorre o labirinto dos conceitos de “humano” e de “humanidade”: fá-lo sem se perder pelos corredores que a biologia, a cultura e as tecnologias oferecem para se pensar esta questão. Particular interesse lhe merece o humanismo clássico greco-latino, que deriva- rá para uma versão cristã e depois laica – desembocando, enfim, paradoxalmente, no anti-humanismo de algumas pro- postas mais contemporâneas. Entretanto, a literatura parece ser, pela sua ambiguidade e pelo seu desejo de mimese, já sublinhado por Aristóteles, um lugar privilegiado de mani- festação do humano. Deste dédalo teórico inicial, ficarão muitas ideias para a reflexão do leitor.
E é só a seguir que se penetra na análise de três obras literárias: em primeiro lugar, Admirável Mundo Novo – um li- vro de Aldous Huxley, aparecido em 1932, que vai permitir à autora modular melhor as suas concepções sobre as relações entre ciência e humanidade. De facto, o romance de Huxley situa-se nesse género literário intermédio entre Apolo e Mi- nerva que é a ficção científica. Encenando uma sociedade futura, esta obra aponta para problemas do seu tempo, mas também de hoje, como sejam os perigos da engenharia gené- tica e do controlo da mente humana através de mecanismos de manipulação. Prestando uma homenagem a Shakespeare, que começa no título, Huxley aponta para a linguagem, e sobretudo para o seu uso pleno, como principal mecanismo de libertação perante estas ameaças. Contudo, Admirável Mundo Novo mergulha num certo cepticismo, em que cada possível solução constitui também um novo problema.
A questão do uso da linguagem e da literatura como liber- dade – e, por isso mesmo, como condição de um verdadeiro humanismo – aparece também em A Condição Humana, de André Malraux, o segundo livro analisado pela autora. Ângela Fernandes percorre um novo labirinto, o do subgénero a que pertence esta conhecida obra: romance filosófico, romance histórico, romance-reportagem, roman engagé, narrativa de aventuras ou ainda romance psicológico? A resposta não pode ser definitiva. Analisando algumas das personagens do livro, a autora chega à conclusão de que aquilo que está em causa nesta narrativa é a condição humana das personagens, essa “estranha condição” de que já falou o camoniano Velho do Restelo. Mas, note-se, no romance de Malraux o sentido trá- gico da finitude vê-se substituído pela possibilidade maravilho- sa, dada pela arte – e também, portanto, pela literatura –, de que cada um acabe por encontrar a sua voz interior.
Esta pesquisa conclui-se com uma análise das Seis Falsas Novelas, de Ramón Gómez de la Serna, precedida por uma reflexão sobre a ideia de desumanização da arte, tal como foi postulada por Ortega y Gasset no seu célebre ensaio com este título. A autora conclui que tal desumanização constitui afinal um repensar da inevitável dimensão humana do fazer literário: enfim, uma tentativa de humanizar a literatura de um modo novo. De idêntica maneira, as falsas novelas de Gómez de la Serna obrigam-nos a reflectir, por causa da sua afirmada mentira, sobre a verdade humana do fazer literário, tantas vezes travestido pela imaginação, mas sempre limita- do pelo muro real da morte.
Ainda que aligeirado do peso erudito nesta sua versão para o público, estamos, sem dúvida, perante um volume académico, escrito com muita elegância e revelando grande capacidade de análise e problematização. A aparição deste estudo torna-se particularmente interessante porque, embo- ra a autora se refugie numa certa prudência científica, não deixa de constituir a sua obra uma afirmação da humani- dade da literatura, num tempo que a própria estudiosa, ci- tando fontes, considera como passível de ser considerado pós-humano. Humana será sempre, porém, a arte literária: problematicamente humana.