A Mão do Oleiro RUI NUNES

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO2

miguel filipe m.

A Mão do Oleiro
RUI NUNES

Lisboa, Relógio d’Água.

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Uma confessionalidade autocatártica, mediada por um exercício de silêncios (espaços brancos, versos), dá o tom de um texto que indecide a autobiografia através da questionação das normas dum real gerador de um persistente clima de medo, concretizando em perversão ou em denúncia um discurso marcado pela khrisis. Num mundo em que «todos os lugares são desencontros», uma série de figurações do mal, dada fundamentalmente pela memória, que «é um animal que não pode morrer», determina um generalizado pressentimento apocalíptico, criando o espaço para a angústia. Este «exercício do medo» desenvolve-se em diversas séries: familiar, dirigida às figuras parentais e à violência da relação amorosa; social, à representação de diversas lutas quotidianas, à degradação e à incomunicabilidade; civilizacional, pelas alusões aos momentos críticos em torno de referências como Auschwitz, Dresden, Totenkopf; metafísica, pela tematização «do silêncio de Deus»; e ontológica, pela impossibilidade de realização do eu.

A história familiar constitui um sentido fabulatório como matéria unitiva de um universo figurativo não factual, de pendor lírico, que arrasta uma tendência para a fulguração imagética, para a anotação de instantes que pressagiam um percurso de uma queda, associada a uma fuga que a contrafaz em resposta criativa. Contaminando a narrativa através dos sintomas de um período de sombra, a história familiar é fonte de desejo e de receio e desloca o sujeito para uma orfandade espiritual que o incita à viagem, porque os homens «enquanto fogem, descansam». A ideia de que «um sítio está sempre proposto ao esquecimento» e, por isso, «o melhor é não parar» relata uma sugestão iniciática da revelação do eu, através de uma descida aos infernos interiores, em que os espectros o definem, sob os signos da animalidade, do instinto, da precariedade e do desejo, a que Rui Nunes chama fome, espécie de conatus essendi, «para que a fome não desapareça./ E alimente o caminho/ até à queda.»

A crise que o enredo desenvolve associa-se à perda de um sentido que a linguagem (a literatura) poderia conquistar, como suporte axiológico, vencido pelo despojamento semântico e referencial da realidade na relação com os nomes que a (não) substancializam. A experiência da erosão linguística – da «violência de um nome» - traduz-se no entanto no desejo de possuir um nome, alicerce dum caminho através das sombras dispersivas e omissivas do universo narrativo, de «um mundo/ que esconde os seus nomes», configurando uma hybris contra as diversas impossibilidades sugeridas.

A procura das palavras revelacionais, que «desembocam quase sempre em lugares que julgávamos perdidos», é a matriz do movimento de uma criança em fuga, experiência máxima dum anonimato que constitui, na verdade, uma forma de desejo de regressão, de volta ao nome certo entretanto esquecido, obsessivamente revisitado, num percurso que configura uma experiência da incomunicabilidade ou da persistência do silêncio e da solidão, núcleos de um despojamento das essências que inaugura o apelo da viagem. No momento em que «todos os pontos são de fuga», ela redescobre um sentido de encontro (das essências perdidas, a começar pelo eu) e de fuga (das memórias dolorosas, momentos de perda), uma viagem que é uma vertigem, progredindo por diversos graus de alienação do eu, da sua loucura.

Uma relação desconfortável com o corpo, porque ele «é um sítio precário», como facto limitante, constitui um pretexto para o desejo do excesso, que o grotesco, como prolongamento/exagero dos limites físicos, conquista ao desespero. Assim, através duma depuração formal, da fragmentação e do hibridismo genérico, o destino individual vê-se submetido a uma lógica da destruição cuja superação depende da obsessão criativa, da arte do Oleiro, matéria da «violência dos desesperados ». Uma retórica da perseverança constitui assim uma resposta ao agonismo, via de conhecimento, na tradição da queda ou da descida aos infernos como motivos de uma implosão epifânica, dada fundamentalmente pela memória afectiva.

O plano circular, próprio do modo lírico, gera uma experiência da intensidade como núcleo fundamental desta poética, como a sua sublimidade. Um apelo à vigilância traduz-se no desejo de encontrar nos diversos momentos de composição duma história afectiva pessoal um fundamento aparicional de enquadramento estético, que observa a experiência criativa como forma de resistência. Contra a evidência de que «tudo o que se fazia era a morte», a arte do Oleiro constitui uma resposta aos momentos críticos, como experiência da ilimitação, da indecisão do horizonte do homem desejante de um recomeço. Sucessão de dois pontos, ausência de ponto final, amplificação e redundância são modos de prolongação do espaço da escrita como viagem inacabada, que não se decide, não se deixa limitar.

«Escreve. Na terra (…) O recomeço», eis o fundamento de A Mão do Oleiro, posto que «a eternidade é uma longa conversa/ que alimentamos com fúria». Dada pelo percurso de um eu que se humaniza, crescendo em diversas geografias, desindividualizado pelo anonimato, imagem de um percurso comum que revela pouco a pouco o Oleiro, eis o nome que resta, aquele que faz e desfaz, ligado à terra, ao pó e ao excremento, como sinónimo do fim, como resto, e do princípio, como adubo. Há ainda, por isso, «quem diga: faça-se.» Apesar de tudo. E, no fim, «os dedos reaprendem».