Vasco Rosa – Almada e a Exposição de Sevilha de 1929

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO4

VASCO ROSA

Almada e a Exposição de Sevilha de 1929

«José Almada é um cérebro de Paris arrastando pelo Chiado o seu exílio mental». Assim, sem meias tintas, começa João de Meira o elogio rasgado do «mais moderno de todos os homens», publicado no Portugal. Diário da Tarde lisboeta, a 13 de Setembro de 1926. Este texto, esquecido num jornal de curta duração,que fala Picasso, Apollinaire e Jean Cocteau e parece invocar a recente conferência «Modernismo» de Almada Negreiros, é um retrato cru da solidão do homem de Orfeu, do Portugal Futurista e da Contemporânea que, em 1925, confiara ao seu querido irmão António, dentro de uma caixa de sapatos, o original de Nome de Guerra (só editado treze anos depois, para então revolucionar o romance português), e prevê um segundo exílio do artista, que em Madrid viverá de Março de 1927 a Abril de 1932.
Uma temporada em Paris, entre Janeiro de 1919 e Abril do ano seguinte, e uma ida em 1925, permitiram a Almada proclamar que «a Arte não vive sem a Pátria do artista». A esplendorosa Exposição das Artes Decorativas, que de visitar na capital francesa, e da qual Portugal, numa grave conjuntura político-financeira, estivera ausente, fê- lo antever muito distintamente que a já anunciada exposição ibero-americana a realizar em Sevilha em 1929 haveria de ser uma ocasião de afirmação nacionalista a não perder.
O artista que em 1923 respondera a um inquérito sobre as relações Arte e Estado afirmando que «saber esperar quer dizer preparar-se convenientemente para ser bem recebido», antecipou-se ao debate sobre a participação portuguesa nesse certame internacional, visitando, «no caminho» para Madrid, a cidade andaluza e os estaleiros da Exposição, com o intuito de escrever crónicas capazes de «acordar a opinião pública e torná-la favorável à nossa representação». Esta estadia de onze dias é desconhecida até dos seus biógrafos José-Augusto França, António Pedro Vicente, Joaquim Vieira e Sara Afonso Ferreira.
A 17 de Março de 1927, Fernando Pessoa, Jorge Barradas, António Soares e muitos outros estiveram na Estação de Sul e Sueste a despedir-se do «entusiasta soldado nacionalista» (as palavras são do próprio). Não se sabe por que razão preferiu Almada publicar essas crónicas sevilhanas no Portugal de Pestana de Vasconcelos, em vez de no Diário de Lisboa de Joaquim Manso, onde mantinha colaboração habitual, ou até ao jornal A Ideia Nacional, a que igualmente estava ligado. Talvez tenham sido afinidades políticas de momento. Seja como for, logo a 28 de Março, após a segunda crónica (v. anexo), das dez anunciadas, o jornal suspende a sua publicação «por alguns dias», mas Portugal não voltará a ser um brado de pequenos ardinas descalços. Almada não colocou noutro órgão de imprensa essa reportagem serial, e os originais das restantes crónicas «ditirâmbicas» (sic) têm ainda hoje paradeiro desconhecido ou perderam-se de vez.

Ao contrário do planeado, regressou de imediato a Lisboa dando uma entrevista no dia 30. Veio por dois dias apenas, para dar «todas as provas da razão de ser» do seu «entusiasmo»: «Vim para pessoalmente dar ânimo aos meus compatriotas. Mas uma vez chegado a Lisboa, a triste realidade fez-me constatar que os portugueses ignoram as suas verdadeiras qualidades em relação aos outros povos e que, por falta de conhecimento do que se passa no resto do mundo, eles se condenam à ridícula situação de... olharem uns para os outros»; «Portugal precisa, para se valorizar e avaliar-se, ir aprender lá fora o sentimento nacionalista.» Para o autor de Histoire du Portugal par cœur, illustrée aux couleurs nationales (Paris, 1919; Contemporânea, n.o 2, Junho de 1922, pp. 25-35), «Se os portugueses soubessem avaliar-se, [...] verificariam que são possuidores de condições únicas, que lhes garantem todas as possibilidades de vida e de progresso», sem contudo pormenorizar quais. Almada defendia ainda que era «absolutamente fundamental» que Portugal se acompanhasse do Brasil na exposição ibero-americana de 1929, vinculando a especificidade da civilização portuguesa, que «individualiza», não engloba. Uma semana depois, a 9 de Abril, publica no Diário de Lisboa um breve manifesto político: «A nova geração é contra Azuis e contra Encarnados» (v. Textos de Intervenção, incm, 1988, pp. 65-66). Não faz referências à Exposição, mas o dístico «carta de Sevilha» é um remissivo implacável e o discurso está carregado das mesmas tintas, também auto-reflexivas: «os novos valores [...] desde o momento que verifiquem estarem divorciados da competência oficial, na impossibilidade de a combater ou modificar, ficam reduzidos ao grito de não se deixarem morrer asfixiados na própria Pátria»; «O problema da nação não é apenas o da ordem pública, mas sobretudo o desenvolvimento da índole portuguesa». Conclui pedindo «um gesto colectivo de abnegação, de inteligência e de valor». Aos 30 anos, já tinha visto bastante...
Almada não era um desconhecido em Madrid, onde já estivera em 1923 ou 1924. A sua integração nos meios literários e artísticos da capital espanhola foi um fácil prolongamento de relações pessoais criadas em Lisboa ou a partir de Lisboa desde o início da década. Três meses depois de chegar, fez na Unión Iberoamericana a sua primeira exposição individual, promovida por amigos da novíssima Gaceta Literaria. Quem pense que, na busca de uma rápida consagração madrilena, Almada logo virou as costas a Portugal e à Exposição de Sevilha, ficará supreendido com a leitura de uma longa entrevista que, no final desse mesmo ano, ele deu a Joaquim Novaes Teixeira (em cuja casa, aliás, residia), então correspondente de O Comércio do Porto em Madrid. Publicada a 22 de Novembro, trata-se de um documento ainda inédito mas fundamental para conhecer o entendimento do artista acerca do que denomina «o sentido cultural» da nossa representação em Sevilha e, o que é mais, para avaliar o vanguardismo modernista da sua concepção de arquitectura e de cenografia: «Lá vamos ter o fatal manuelino ou o joanino [trasladação dos pavilhões da exposição do Rio de Janeiro de 1922]. Era aqui a verdadeira vitória das tendências modernistas. [...] Nenhum dos dois estilos consente interiores iluminados e espaçosos. Ao passo que a arquitectura moderna tem conhecimentos e materiais para improvisar definitivamente um local harmonioso e justamente adequado ao que se destina [...] Qualquer arquitecto moderno, com o preço da desmontagem, trasladação e nova montagem, construía um novo e defendendo-se habilmente da monumental arquitectura com que os espanhóis fabricaram a sua estupenda Plaza de España em Sevilha. Só por uma questão de gosto pode, acaso, o nosso pavilhão deixar de ficar esmagado pelo colosso edificado pela Espanha.» Almada Negreiros também advoga outra colaboração modernista e precursora: «Na vida actual há uma nova categoria de artista, autêntico produto da época e a qual não existia antes: o artista-director, o metteur- en-scène», o qual, «com uma autoridade ditatorial para a harmonia final do que se pretende atingir, [...] veria o que há dos vários séculos de Portugal até hoje e separaria esses séculos por secções, formando um conjunto sólido e elegante, de acordo com a atenção e gosto actuais do mundo e também da educação dos portugueses de hoje».
Não é apenas quanto à concepção formal do pavilhão português que denota um pensamento amadurecido. Entendendo que «nem no antigo nem no moderno Portugal há uma personalidade criadora e racial nas artes plásticas sobretudo capaz de suportar a presença da Espanha», Almada conclui que «o verdadeiro valor português da pintura deixa de ser uma ciência da Arte para ser uma ilustração viva da História». Nesta perspectiva, a autoria portuguesa das obras de arte torna-se uma questão «secundária», pois, como diz, no retrato de Isabel de Portugal por Ticiano e no de Damião de Góis por Dürer (obras do Museu de Arte Antiga) aprendeu ele próprio «mais de Portugal do que no compêndio oficial que nos ensina a nossa História». Almada Negreiros não poderia deixar de juntar-lhes os Painéis de São Vicente — que, de resto, continuara a estudar em Madrid, fixando a célebre relação geométrica 9/10 —, avançando com a sugestão de que sejam mostrados em Sevilha a par das extraordinárias Tapeçarias de Pastrana, o que viria a acontecer por «gentileza fidalga» da Espanha (José de Figueiredo). A historiadora da arte Dalila Rodrigues (2010) reconheceu na associação expositiva destas duas obras-primas «o expoente máximo» da memória simbólica do reinado de D. Afonso V; deduzo que gostará muito de saber a quem ela se deveu, afinal.
Nesta entrevista a Novaes Teixeira, Almada é também muito surpreeendente na referência ao Grande Códice de Desenhos de Francisco de Holanda pertencente à Biblioteca do Escorial, cuja exibição também recomenda, e cuja existência, à data, parece ter sido apenas revelada, e sumariamente, num livro de Joaquim de Vasconcelos de 1918.
«Não conheço que mais legitimamente ensinasse a altura da mentalidade portuguesa nesses cheios anos de 1500!» Esta proclamação permite supor que o havia estudado, entre Março e Novembro de 1927.

1 O FORMIDÁVEL ESFORÇO DE CULTURA DA NAÇÃO VIZINHA

Por mais preparado que se esteja para receber uma bela impressão do estado actual dos trabalhos para a Exposição Ibero-Americana de Sevilha, a impressão recebida vai incomparavelmente além do que o mais valoroso dos optimistas saiba antecipar. Simplesmente formidável. É a surpresa do inesperado espectáculo durante a primeira volta ao recinto da Exposição. Tudo quanto possa dizer-se não é nunca um favor ao que já está construído.
Uma vontade feliz realizou nas margens do Guadalquivir qualquer coisa de importante e que nós Portugueses não podemos deixar de ser forçados a meditar.
Apesar de vir expressamente a Sevilha no intuito de verificar o andamento da Exposição e preparado para, uma vez aqui, encorajar os meus compatriotas a interessarem-se devidamente por este nosso legítimo assunto de ibero-americanismo, apesar do meu entusiasmo neste sentido não ter encontrado até agora o mais pequeno desfalecimento e, pelo contrário, tendo a realidade excedido a minha expectativa de artista e de peninsular, devo confessar que senti, como português, uma grande mágoa que só a pode ter quem venha asssitir ao que a Espanha está realizando em Sevilha, em comparação com a maneira como em Portugal decorrem as combinações oficiais para a nossa representação.
Julgando eu que fosse agradável e honrosa a missão de vir até aqui para dar largas à minha alegria e ao meu entusiasmo, e animar e insistir com os meus compatriotas para que não faltassem com o Pavilhão de Portugal na Exposição de Sevilha, confesso que estava muito longe de ter de começar por dizer a minha confusão diante do que acabo de assistir.
Pergunto: Avaliarão por ventura os meus compatriotas (oficiais e não oficiais) o que significa actualmente a representação de Portugal para a Exposição de Sevilha? É uma responsabilidade que quem a não souber tomar inteira é imediatamente criminoso.
A minha confusão veio precisamente quando pude verificar que todo o meu sincero entusiasmo de patriota, pela representação do nosso país na Exposição de Sevilha, estava afinal, imprudentemente, a ser uma leviandade. Esta constatação foi feita em face do que a Espanha já hoje aqui apresenta aos olhos dos turistas. Ora nós, por uma questão de honra, de significação, de direito e de necessidade, não podemos deixar de concorrer. Simplesmente, também não podemos deixar de concorrer, como é devido ao nome de Portugal. Não se trata apenas de vir, trata-se de vir e bem. Assim nos exige este admirável conjunto dos trabalhos actuais, através dos quais os vários países ibero-americanos, e mais alto que todos juntos, a Espanha, pergunta nitidamente quem vive aqui na península.
É por isto mesmo que, dirigindo-me aos meus compatriotas, cheio de coragem e palavras animadoras
pela feliz representação de Portugal nesta exposição, desejo frisantemente juntar-lhes este grito de alarme: os trabalhos actuais da Exposição de Sevilha já exigem de nós uma competência na nossa representação que não pode de maneira alguma deixar de ser encarada de frente e a sério.

ALMADA NEGREIROS Portugal. Diário da Tarde, Lisboa, sexta-feira, 25 de Março de 1927, p. 1.

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2 O PAVILHÃO DE PORTUGAL E A NOSSA REPRESENTACÃO

Em verdade, o que mais me trouxe aqui foi o lugar onde Portugal vai ter o seu pavilhão. O guarda sabia perfeitamente onde era. Por detrás da Plaza de España, a um canto do grande Parque e do lado onde é costume ter lugar a feira, fica um grande quadrado, de uns oitenta metros de lado, aproximadamente. O guarda não soube dizer- me a superfície exacta. Informou-me, porém, que já tinha sido a cerimónia da entrega oficial, com a presença do próprio Rei, por excepção feita a Portugal.
À primeira vista pode parecer desagradável o lugar que nos destinaram, por causa de ficar nas traseiras da Plaza de España, do lado da fábrica de electricidade, mas, passada uma vez a falta de razão que nesta impressão nos assiste, logo ficamos felizes por estarmos de pé naquele quadrado de terra espanhola onde vai caber Portugal. A proporção de terreno ocupado pela Plaza de España é, como acontece na própria geografia peninsular, seis vezes maior do que a nossa. A Plaza de España forma um grandioso edifício em meia circunferência, como um abraço, dominando o formossíssimo parque, onde estão representadas as nações sul- americanas e Marrocos. No outro extremo do parque fica a Plaza de America, e entre as duas plazas tudo o que é de origem espanhola. De modo que o facto de Portugal ficar fora desse grande abraço comum entre os espanhóis da Ibéria e da América é, ou um acertado acaso ou, o que é mais provável, um assunto grandemente pensado e gentilmente resolvido.
Antes de mais nada desejo dizer que me informaram ter sido o Brasil instado para aqui comparecer e que as negociações nesse sentido se apresentam para um bom fim. E a ser verdade vir o Brasil até à Exposição, ser-lhe-á reservado no Parque um espaço equivalente ao de Portugal, também por detrás da Plaza de España.
Veja Portugal em que condições quer o destino que venhamos mostrar-nos aqui em Espanha ao mundo inteiro e ao lado do Brasil. Infelizmente parece-me que os portugueses ainda não deram a importância bastante a este formidável acontecimento da Exposição de Sevilha. Formidável também para nós portugueses, se quisermos cumprir com a nossa honra de Portugal.
Mas estou certo de que, se alguém aí dissesse que a nossa participação na Exposição de Sevilha tinha tanta importância como a nossa participação na guerra europeia, estou certo de que muitos incrédulos se ririam e ficavam curiosos por saber quem disse uma dessas. Mas a verdade é que ignoram que tendo havido, e recentemente, várias exposições internacionais na Europa, nós, Portugal, não concorremos a elas e por uma razão que muitos talvez não saibam. Pela mesma razão que nós hoje não podemos deixar de comparecer na Exposição de Sevilha. Mais do que outra qualquer coisa faltou-nos para concorrer, por exemplo, à Exposição das Artes Decorativas, uma significação que nos desse razão para estarmos em altura do nosso próprio nome de Portugal. Ao passo que aqui em Sevilha, seja qual for o valor real com que viermos apresentar-nos, estamos desde já por significado tradicional em condições iguais às de Espanha, e somos os dois únicos países do mundo que estamos nessa altura. Porém, não creiam os portugueses que se repetirão as vezes em que mesmo legitimamente como hoje nos concedam o primeiro lugar.

ALMADA NEGREIROS Portugal. Diário da tarde, Lisboa, sábado, 26 de Março de 1927, p. 1.

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