STEFFEN DIX
Miguel de Unamuno e Antero de Quental: A indecisão trágica entre religião e racionalidade
Estudou Filosofia e Ciências Comparadas da Religião em Tübingen, Berlim e Lisboa. É doutorado pela Universidade de Tübingen com uma tese sobre o neopaganismo em Fernando Pessoa. Traduziu vários textos deste poeta, sobretudo relacionados com a religião e a filosofia, bem como estudos sobre as suas concepções filosóficas. Publicou também um estudo sobre Antero de Quental e Miguel de Unamuno. É investigador associado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
“Algures na província castelhana”
Em 1992, o realizador espanhol Fernando Trueba celebrou um enorme sucesso cinematográfico com o seu filme Belle Époque relatando, de uma forma bastante divertida e irónica, os acontecimentos trágico-cómicos no Inverno de 1931, apenas algumas semanas antes da proclamação da Segunda República em Espanha. O filme ganhou em 1994 o “Óscar” para a melhor película estrangeira, e a acção principal pode ser esboçada em poucas palavras. O protagonista do filme é o jovem Fernando que desertou do exército monárquico, mostrando ligeiras inclinações para com os republicanos e procurando agora um refúgio “algures na província castelhana”. Depois de uma pequena odisseia, Fernando encontra o intelectual e republicano Don Manolo que lhe oferece, na sua quinta idílica, durante algum tempo abrigo em troca de conversas cultas. Porém, os tempos sossegados mudam quando as quartas filhas de Don Manolo anunciam a sua chegada para passar as férias naquele local provincial. Nesse momento, Don Manolo sente alguma necessidade paternal em despedir-se de Fernando, tentando evitar assim os automatismos do destino. Afinal, a chegada das filhas de Madrid e a partida de Fernando cruzam-se, e Don Manolo já não tem argumentos nem a possibilidade de impedir as inevitáveis aventuras eróticas entre o jovem desertor e as filhas encantadoras. Depois de várias situações voluptuosas e sensuais, o filme termina com um happy end e Fernando torna-se o genro de Don Manolo depois do seu casamento com a filha mais jovem. O atractivo do filme baseia-se sobretudo no facto de Fernando Trueba conseguir narrar, de uma maneira leve e despreocupada, uma história de seduções femininas no limiar de uma Guerra Civil sangrenta e absurda que já se esboça claramente no horizonte espanhol. Por outro lado, Fernando Trueba conseguiu introduzir, discretamente, algumas problemáticas intelectuais, políticas e existenciais que são hoje consideradas como as mais distintivas naquela época. Embora o filme não mostre propriamente as tendências anticlericais da época, as pequenas confrontações entre as ideias republicanas e as convicções monárquicas (católicos) são sempre frequentes. As simpatias do realizador encontram-se claramente ao lado de Don Manolo que representa um espírito cosmopolita e mundano. Em contraposição a este intelectual temos o Juanito e a Dona Asun que desempenham o papel dos seguidores do rei Afonso XIII e da Igreja católica. Embora os dois tenham um aspecto algo simplório e provinciano, não aparecem propriamente antipáticos e ainda estão longe dos discípulos violentos de Caudillo Franco. Todavia, ao longo deste filme inteligente e divertido há apenas um momento verdadeiramente trágico quando alguns membros da comunidade local encontram o cadáver do padre Don Luis enforcado na igreja. Não há a mínima dúvida de que o sacerdote se suicidou, e para além disso, o cenário do suicídio ganha uma enorme dimensão simbólica através de um pequeno detalhe. Durante um curto momento, o espectador repara que o padre, pendurado numa corda, tem na sua mão esquerda ainda um livro intitulado Del Sentimiento Trágico de la Vida. En los Hombres y en los Pueblos. O autor do livro, o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, é uma referência constante no filme; e de facto existe um rumor dizendo que o mesmo livro já esteve na origem de vários suicídios. Olhando para a situação política e cultural da Espanha no princípio do século XX e reflectindo, ao mesmo tempo, sobre o conteúdo deste livro, entendemos logo a razão para este suicídio: trata-se da complicada experiência existencial de uma perda religiosa, e é exactamente esta perda religiosa que está inteiramente ligada ao “sentimento trágico da vida” cujos representantes mais típicos são, para Unamuno, Marco Aurélio, Santo Agostinho, Pascal, Rousseau, Amiel, ou Kierkegaard. E este “sentimento trágico” é particularmente visível no escritor português Antero de Quental (Unamuno, 2001 [1913]: 19) que representa para Unamuno “a maior figura trágica da nossa literatura ibérica, na qual está incluída a castelhana, a portuguesa, a catalã e a galega” (in Dios, 1985: 207). Mas antes de questionarmos concretamente a razão pela qual Unamuno considerou especialmente Antero de Quental a “maior figura trágica” da literatura ibérica, valerá a pena folhear mais um pouco este livro que um padre “algures na província castelhana” leu um pouco antes de pôr termo à vida.
O sentido inexplicável da existência
Já alguns anos depois da Guerra Civil e muito tempo depois do lançamento do Del Sentimiento Trágico de la Vida circulou, exactamente em 1953, em Espanha uma Carta Pastoral na qual o Bispo das Ilhas Canárias, Don Antonio de Pildain y Zapiain, verificou com alguma estupefacção que a Universidade de Salamanca tinha decidido, por ocasião das celebrações dos seus 700 anos de existência, homenagear Don Miguel de Unamuno com a fundação de uma Casa-Museu. Lembrando que a Universidade de Salamanca é uma das mais antigas instituições académicas da Igreja católica onde já estudaram vários corifeus eclesiásticos como, por exemplo, Inácio de Loyola e São João da Cruz, a indignação do Bispo não foi propriamente pequena. Já no título desta Carta Pastoral, o antigo professor de filosofia é designado como “Hereje Máximo y Maestro de Herejías” (Pildain y Zapiain, 1953), e Don Antonio de Pildain y Zapiain chama a atenção para o facto do livro Del Sentimiento Trágico de la Vida contrariar todos os dogmas mais importantes da Igreja católica. Esta contradição começa com a negação da divindade de Jesus e acaba com dúvidas filosóficas acerca da existência do inferno. Tendo em consideração que há no livro cerca de 45 pontos em oposição às doutrinas católicas, o Bispo das Canárias exigiu uma proibição imediata desta obra herética (Ibid.: 14).1 A questão seria a de saber agora qual o conteúdo de um livro que provocou tantas reacções excessivas?
Este livro relativamente curto precisou de 14 anos para nascer2 e começou com um intuito pouco modesto, tentando chegar sociológica, ética e filosoficamente a uma compreensão mais profunda sobre o sentido da vida. Embora Unamuno tenha reconhecido que algumas das suas reflexões podiam parecer um pouco mórbidas, ele insinua que não há muito sentido na existência humana. Contudo, um reconhecimento claro e evidente deste absurdo trágico da existência tornaria a vida humana psicologicamente numa missão impossível ou num desespero irremediável. Ele afirma que há na vida sempre uma espécie de remédio como protecção contra este abismo existencial.
Depois de um breve percurso dentro da filosofia mundial, o professor de Salamanca chega a um “judeu português desterrado na Holanda”. Com a referência frequente à Ética de Espinosa, Unamuno assevera que cada existência se esforça em manter-se indefinidamente no ser (Unamuno, 1982 [1913]: 54). A origem deste “anhelo de inmortalidad” consiste na substância própria da alma (Ibid.: 62), e a situação trágica começa no entendimento lúcido de que este anseio irrealizável se dirige sempre para o vazio. Porém, na história humana houve principalmente duas grandes tentativas em resolver esta questão que é para Unamuno o único problema vital. Um esforço para resolver o enigma da imortalidade da alma encontra-se na fé religiosa, ou concretamente na religião católica que nasceu para Unamuno de duas correntes espirituais distintas, uma judaica e a outra helénica, que se juntaram socialmente no Império Romano. Nesta linha de pensamento, Unamuno relaciona, de uma forma historicamente bastante interessante, a descoberta da morte com a cultura helénica de onde surgiu, por outro lado, a fome de imortalidade. Assim, o cristianismo nasceu na tentativa de satisfazer esta fome, prometendo uma vida eterna através da ressurreição de Jesus.3 Por outras palavras, o dogma “da ressurreição e imortalidade de Cristo garantia a ressurreição e imortalidade de cada crente” (Ibid.: 74). Todavia, a solução cristã ou católica só pode satisfazer a emoção ou a sensibilidade. Tentando consolar as exigências da razão ou do pensamento racional, o dogma do ressurgimento falhará. Neste sentido, Unamuno interroga a infalibilidade dos dogmas católicos e põe em causa a sua credibilidade. A convicção religiosa perante a imortalidade da alma não tem fundamentos empíricos ou racionais capazes de sustentar a mesma.4 Tendo em consideração que uma discussão sobre esta temática não ia ultrapassar um alinhamento de banalidades, e verificando que a racionalidade pura também não oferece nenhuma resolução nesta questão vital, o filósofo de Salamanca mostra uma atenção lúcida para com os problemas intelectuais da sua época e refere-se ao pragmatismo de William James. Este filósofo e psicólogo americano foi um dos primeiros pensadores modernos que chamou categoricamente a atenção para o antagonismo entre a racionalidade moderna e a crença religiosa. A racionalidade ajuda na vida quotidiana de um indivíduo moderno, mas revela-se completamente incapaz de resolver o mais profundo enigma da existência humana. Pelo contrário, a racionalidade tem a forte tendência em agravar o problema, tornando o homem facilmente prisioneiro da lógica. Unamuno apoia-se ironicamente em Hegel e evidencia na racionalidade uma tendência anti-vital: “Tudo o que é vital é irracional, e tudo o que é racional é anti-vital, porque a razão é essencialmente céptica.” (Ibid.: 95). Assim, o homem moderno na viragem entre os séculos XIX e XX encontra-se numa situação trágica. Este homem moderno de Unamuno perdeu, através da sua racionalidade moderna, toda a sua capacidade em crer nos dogmas religiosos (e especialmente os católicos) da imortalidade da alma, não conseguindo viver porém sem uma consolação suprema. A pura racionalidade significa para Unamuno uma repetição eterna de um memento mori insuportável, e conduz para o fundo do abismo existencial, podendo ter como consequência o suicídio (Ibid.: 114). Ao apresentá-la como típica alternativa espanhola, Unamuno desenvolveu a sua versão própria do quixotismo, entendido por ele como uma espécie de fé que se baseia na incerteza ou na dúvida: “Nosso Senhor Don Quixote é o exemplo do vitalista, cuja fé se baseia na incerteza, e Sancho é-o do racionalismo, que duvida da sua razão.” (Ibid.: 118). Reconhecendo que nem todos os indivíduos têm a capacidade de viver uma fé baseada na incerteza, Unamuno entendeu este quixotismo como a forma típica espanhola da religião5 na qual o homem consegue viver a sua própria existência e salvar a sua própria individualidade, eternizá-la. Todavia, tal como muito provavelmente o padre Don Luis no filme Belle Époque, o leitor honesto admitirá no fim da leitura que o quixotismo unamuniano não tem muita força de persuasão. Mesmo depois da leitura de Unamumo, a indecisão entre religião e racionalidade continua a ser um fenómeno trágico.
O porta-voz de um “pueblo suicida”
Trata-se de um facto bastante curioso que alguns autores atribuam aos seus livros um subtítulo que é muitas vezes esquecido (mesmo em bibliografias científicas) ou ignorado pelos leitores. Todavia, o subtítulo do livro de Unamuno é “En los Hombres y en los Pueblos” e faz algum sentido se repararmos que este filósofo lusófilo6 considerou especialmente os portugueses como um povo muito caracterizado pelo sentimento trágico. Na visão de Unamuno, este sentimento culminou em Antero de Quental que representa uma espécie de porta-voz de um povo inteiro. Numa carta ao seu amigo Manuel Laranjeira, o filósofo escreve o seguinte: “Às vezes creio que vocês, sem o saberem, por um acto de sabedoria colectiva subconsciente, chegaram ao mais triste fundo da verdade humana, à vaidade de todo o esforço, ao final fracasso de toda a vida individual e nacional, e então Antero me aparece como um terrível profeta, porta-voz de todo um povo.” (in Medina, 2004: 81). E de facto, os vocábulos para descrever o traço existencial dos portugueses parecem em muitos casos quase iguais à terminologia da sua obra-prima filosófica. O “mais triste fundo da verdade humana” corresponde ao “fundo do abismo” do sexto capítulo desta obra onde já é aludida indirectamente a incerteza de todas as promessas a uma consolação transcendente. Para Unamuno, os portugueses são incapazes de ter qualquer crença, senão a da “morte libertadora” (in Dios, 1985: 173). Citando logo duas vezes um texto que “aquele trágico suicida português” escreveu a propósito do Ultimato inglês em 1890 e que foi publicado em 1912 na revista A Águia, Unamuno sublinha o destino quase inevitavelmente trágico dos portugueses: “(…) a vida é uma tragédia para os que sentem e uma comédia para os que pensam. Pois bem; se nós, portugueses, que sentimos, temos de acabar tragicamente, prefiramos muito antes esse destino terrível, mas nobre, àquele que nos está reservado, e talvez num futuro, não muito longínquo, a Inglaterra que pensa e calcula, veja que destino é o acabar miserável e comicamente” (Unamuno, 1982 [1913]: 261; e in Dios, 1985: 206). A questão mais interessante seria a de saber quais foram os pontos concretos que permitiram a declaração unamuniana a partir da qual Antero de Quental se torna porta-voz de um “pueblo suicida”.
O sentimento trágico da vida em Antero de Quental
Embora não existam indícios nítidos que possam certificar uma relação directa entre o caso clínico7 de Antero de Quental e o seu suicídio trágico, estamos longe de sugerir, com as seguintes reflexões, que o seu desabrigo metafísico foi a única razão para o fim calamitoso do poeta.8 Porém, analisando as expressões da angústia na poesia metafísica de Quental, podíamos de facto acreditar que ele foi, tal como Unamuno sublinhou, o porta-voz de uma nação com inclinações para o suicídio. E de facto, um pequeno olhar para o seu curriculum parece corroborar a argumentação unamuniana. Depois de uma educação bastante religiosa pelo lado da mãe, Quental viveu já muito cedo, e sobretudo a partir da conhecida Questão Coimbrã, uma queda de valores antiquados. O jovem poeta caracteriza-se por uma consciência positiva, convicto de um futuro progressivo onde desaparecerão desigualdades sociais e antiquadas orientações religiosas: “O que temos de eterno e sem enganos, / Deus – não pode durar mais que alguns anos! / Tronos, religiões, impérios, usos… / Oh que nuvens de pó alevantadas! / (…) / E os cultos, as crenças, as verdades / Ali crescem, lá têm seu fundamento… / (…) / Sobre os pés do gigante que se eleva… / E era d’ar essa base… e o vento a leva!” (Quental, 2001a: 347). Em 1866, apenas alguns meses depois de escrever este poema, Quental tenta alistarse no exército voluntário de Guiseppe Garibaldi durante a terceira guerra italiana para a independência. Os anos seguintes são marcados por influências revolucionárias e anti-religiosas, e Quental revela-se cada vez mais herdeiro das ideias de Proudhon e de Lassalle, da poesia de Heine, e muito provavelmente de alguns escritos de Ludwig Büchner e Ludwig Feuerbach considerados, hoje em dia, como os evangelistas do ateísmo moderno.9 Em 1867, Quental vive durante alguns meses em Paris onde tomou conhecimento do historiador anticlerical Jules Michelet.10 A sua ruptura oficial com os antigos valores religiosos de Portugal aconteceu em 1871 através da realização da sua célebre conferência sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três Séculos na qual Quental acusou o catolicismo ibérico do atraso intelectual, político e económico na Espanha e em Portugal. Este texto merece uma atenção especial principalmente por duas razões. Chamando a atenção para a proximidade entre as concepções de Lutero, de Zwingli ou de Calvino e os desenvolvimentos intelectuais, morais e materiais nos países protestantes, Quental antecipou neste ensaio já um dos temas principais da sociologia da religião de Max Weber.11 Por outro lado, neste texto há uma acusação radical contra o catolicismo que se encontra nas raízes da decadência da Península Ibérica dos últimos séculos (Quental, 2001b [1871]). É muito provavelmente a data destas Conferências do Casino que marcou uma certa viragem na vida mental do Quental, aparecendo a partir de então cada vez mais sob o efeito de um tédio universal ou de um desassossego metafísico.12 E de facto, Quental aproxima-se com os anos 70 cada vez mais da figura trágica que foi descrita por Unamuno, verificando o desaparecimento lento da capacidade em crer na religião católica e confirmando poeticamente a “morte de Deus”: “Já provámos os frutos da verdade… / Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrível, / Não passas duma vã banalidade!-“ (Quental, 2001a: 276). Em consequência da ausência de uma tradicional consolação religiosa, Quental torna-se quase representante máximo daquela crença na “morte libertadora” que o filósofo espanhol declarou a crença preferida do povo português. Quase como uma afirmação desta tese unamuniana, Quental escreveu neste período um soneto com o título emblemático Mors liberatix, onde lemos por exemplo os seguintes versos: “Firo mas salvo… Prostro e desbarato, / Mas consolo… Subverto, mas resgato… / E, sendo a Morte, sou a liberdade.” (Ibid.: 278). A força libertadora da morte em Quental torna-se quase uma ideia obsessiva ao lermos o soneto intitulado Elogio da morte: “Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal / Morte libertadora e inviolável!” (Ibid.: 302). Genericamente, a poesia de Quental pode ser entendida como uma forma diarista da sua vida sentimental e intelectual, ou seja como uma espécie de autobiografia do pensamento. Não há dúvida de que na obra poética dos anos 60 já aparecem claras incertezas sobre questões religiosas, embora ainda tenham um claro toque sarcástico e irónico. Porém, a partir dos anos 70 torna-se cada vez mais visível que Quental tende para um niilismo filosófico, para uma inquietação existencial, para um anarquismo político, para um tédio doloroso, e finalmente para um misticismo religioso. Sem querendo ligar esta dimensão trágica directamente com o seu suicídio num dia húmido de Novembro no Campo de São Francisco de Ponta Delgada, podemos dizer que Quental mostrou nos seus sonetos já um típico estado de alma moderna que foi descrito brilhantemente, uma geração mais tarde, pelo heterónimo pessoano Bernardo Soares:
“Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã (…) Mas os criticismo frustre dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos (…) Nós herdámos a destruição e os resultados” (Pessoa, 1998: 187-188).
E, de facto, Antero de Quental foi um dos primeiros representantes portugueses de uma experiência que será uma das mais emblemáticas na vida intelectual da Europa moderna. Embora Portugal no século XIX tenha sido atingido apenas ligeiramente pelas tendências da modernização, Quental confrontou-se bastante cedo com uma perda religiosa que se tornou tema das discussões sociológicas ou filosóficas apenas a partir da segunda metade do século XX. O sentimento trágico da vida em Quental consiste nesta queda dramática dos tradicionais valores religiosos (e metafísicos) que abriu perante os olhos deste poeta um impressionante abismo existencial.13 Ou seja, enquanto a religião (cristã/católica) tem a capacidade de camuflar a irracionalidade do cosmo,14 a mesma volta imediatamente com a trágica perda religiosa.
“Um helenismo coroado por um budismo como consolação?
Num texto de Eça de Queirós podemos ler uma descrição viva e colorida da vida intelectual dos anos 60 do século XIX em Coimbra, homenageando o seu amigo da Geração de 70. O pormenor mais interessante nesta homenagem talvez consista no estabelecimento de uma ligação clara entre os primeiros sinais da modernização industrial e as metamorfoses do estado mental dentro de uma nação, ou pelo menos numa geração estudantil que será mais tarde a elite intelectual desta mesma nação:
“Foi isto, creio eu, em 1862 ou 1863. (…) Coimbra vivia n’uma grande actividade, ou antes n’um grande tumulto mental. Pelos Caminhos de Ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Allemanha (através da França) torrentes de coisas novas, ideias, systemas, estheticas, formas, sentimentos, interesses humanitarios… Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. (…) N’aquella geração nervosa, sensivel e pallida, (…) todas estas maravilhas cahiam á maneira d’achas n’uma fogueira, fazendo uma vasta crepitação e uma vasta fumaraça! (…) E outro bom signal do despertar do espirito philosophico era a nossa preoccupação anciosa das Origens. Conhecer os principios das civilizações primitivas constituia então, em Coimbra, um distintivo de superioridade e elegancia intellectual. Os Veddas, o Mahabaratta, o Zend-Avesta, os Eddas, os Niebelungen, eram os livros sobre que nos precipitávamos com a gula tumultuosa da mocidade (…)” (Queirós, 1993 [1913]: 485-486).
Esta agitação racional ou sede mental é, hoje em dia, um fenómeno desejável para cada ambiente académico, e podemos imaginar que esta excitação também tenha produzido, sem dúvida, efeitos positivos nos jovens intelectuais em torno de Eça de Queirós, de Antero de Quental ou de Oliveira Martins. Por outro lado, Portugal era ainda nesta altura um país fortemente caracterizado por valores tradicionais, e um conflito entre velhas e novas concepções da vida era neste caso bastante previsível. Este ambiente cultural abalou algumas estruturas da sociedade portuguesa, o entusiasmo racional e a confrontação com outras orientações religiosas mais exóticas afastaram a geração de Antero de Quental “dedicadamente e conscientemente da velha estrada da tradição” (Quental, 1989b: 834). Toda a antiga educação católica, inclusive as suas consolações existenciais, perdeu para Quental a sua credibilidade, levando este “espírito naturalmente religioso” (Ibid.) para aquela experiência trágica onde toda a existência humana se pode revelar absurda. Em suma, podemos dizer que os anos em Coimbra funcionaram como um incentivador do sentimento trágico que se revela em Quental já a partir dos anos 70, e muito claramente nos últimos sonetos que representam “simbólica e sentimentalmente (…) as actuais ideias sobre o mundo e a vida humana.” Tendo em conta que eles desempenham o papel de um “diário íntimo” ou “uma espécie de autobiografia de um pensamento” (Ibid.: 839), podemos verificar que um vocabulário bastante pesado e tenebroso dominou a criação poética e muito provavelmente também a vida mental de Antero de Quental.
Todavia, enquanto Miguel de Unamuno descobriu, sob a designação do quixotismo, uma fé baseada na incerteza e na dúvida como uma espécie de protecção perante o sentimento trágico da vida, o nosso poeta português procurou uma solução individual com várias alternativas filosóficas ou religiosas, desenvolvendo assim uma espécie de mundividência ou de religiosidade à la carte.15 Esta forma de religiosidade em Quental dispõe de alguns elementos do misticismo budista e tem algo de moderno, reparando que o Budismo ganhou importância dentro da paisagem religiosa da Europa apenas a partir do século XIX. Considerando que há em Quental também alguns survivals da mundividência e da religião dos gregos antigos, podemos partilhar a explicação de Oliveira Martins que descreveu, na sua introdução para os sonetos, a orientação religiosa de Antero Quental como uma espécie de budismo ocidental ou de um “helenismo coroado por um budismo”16 (in Quental, 2001a: 209-210). Por outro lado, existe a probabilidade de que este “helenismo” esteja ligado a uma forma de naturalismo que Quental já encontrou antes em Goethe ou Hegel, mas que não passa a ser, para o nosso poeta trágico, o “struggle for life, o horror duma luta universal no meio da cegueira universal” (Quental, 1989b: 839). Antero de Quental encontrou temporariamente também outros lenitivos para a sua desorientação mental, ou indecisão trágica entre religião e racionalidade, no mundo do pensamento alemão, tal como na monadologia de Gottfried Leibniz e sobretudo na filosofia de Karl-Robert-Eduard von Hartmann que defendeu uma incorporação completa do indivíduo em todo universo para anular integralmente a “dor da existência” (die Qual des Daseins). E, para além desta impressionante combinação entre textos budistas e filosofia alemã estão ainda presentes em Quental leituras de “moralistas e místicos antigos e modernos” e da “Teologia Germânica” (Ibid.). Por outras palavras, Antero de Quental caiu nos últimos anos numa amálgama complicada e semi-mística de convicções religiosas e ideias filosóficas que tiveram, na sua maioria, origem na Alemanha. Com um tom algo irónico, ele escreve para Wilhelm Storck que estas “inoculações do Germanismo, no espírito não preparado dum meridional, descendente dos navegadores católicos do século XVI” devem ser pelo menos “interessante” para os críticos alemães (Ibid.).
Embora tenham como resultado alguns dos sonetos mais impressionantes da língua portuguesa, as tentativas de Antero de Quental em curar-se da sua inquietação metafísica não são mais do que um fracasso contínuo em resolver a sua incapacidade religiosa ou a sua insatisfação racional. Contudo, as suas mesclas semi-religiosas de um budismo místico ou com elementos da filosofia alemã não têm mais força de persuasão do que o quixotismo do filósofo espanhol. Tal como o padre espanhol que viveu “algures na província castelhana”, o poeta português é um testemunho verdadeiro e vítima de uma hesitação entre fé e razão, ou seja deste sentimento tormentoso e tenebroso que Miguel de Unamuno apelidou de “trágico”.
NOTAS
1 Para além do estudo La Agonía del Cristianismo (1924) e da novela San Manuel Bueno, Mártir (1930), também a obra-prima filosófica de Unamuno foi registada, até ao Concílio Vaticano II, no mal afamado Index Librorum Prohibitorum.
2 Antes do lançamento do livro em 1913, os capítulos foram já publicados separadamente na revista La España Moderna.
3 Nesta construção intelectual encontramos já um primeiro ponto em comum entre Miguel de Unamuno e Antero de Quental. Trata-se da nítida influência da filosofia, psicologia e teologia alemãs na obra dos dois pensadores, tendo em conta que as referências de Unamuno às obras de Friedrich Nietzsche, Erwin Rhode, Ernst Troeltsch ou Adolf von Harnack são frequentes nos primeiros capítulos da sua obra-prima e revelam uma certa familiaridade com o actual método histórico-crítico nas tentativas de entender os textos da bíblia.
4 A resolução cristã ou teológica é também um assunto com o qual Antero de Quental teve alguma familiaridade, tal como podemos ver num texto publicado em 1865 sob o título O Sentimento da Imortalidade (Carta ao Sr. Anselmo de A[ndrade]) (Quental, 1989a: 27-35).
5 Neste contexto encontramos quase no fim do livro uma definição interessante da religião que é para Unamuno uma economia transcendente ou metafísica (Ibid.: 264).
6 Algumas anotações clarificadoras sobre a relação entre Unamuno e os portugueses encontram-se em João Medina (2004: 73-90).
7 Sobre os diferentes diagnósticos psicóticos, veja-se Pizarro (2003).
8 Acerca desta discussão há várias reflexões por exemplo em Moita (1991) ou Carreiro (1981).
9 Antero de Quental conheceu, numa tradução francesa, sobretudo a obra A Essência do Cristianismo de Feuerbach. Sobre a influência da cultura alemã na obra de Antero de Quental veja-se C.M. Vasconcelos (1993 [1896]: 385-425).
10 Do contacto com este pensador francês resultou também a primeira tentativa filosófica do jovem Antero de Quental que foi publicada como “Ensaio crítico” sobre o livro Bible de l’Humanité (Paris 1864) de Michelet.
11 Algumas reflexões notáveis sobre esta antecipação de Weber em Quental encontram-se sobretudo em Almeida (1993a e 1993b).
12 Neste ponto podemos confirmar que existe um certo paralelismo entre o agravamento deste desassossego metafísico e entre o aparecimento dos problemas de saúde. Quental sofre a partir 1874 cada vez mais de crises nervosas que o obrigam a consultar médicos de reputação nacional e internacional, tal como Sousa Martins e Curry Cabral, ou em 1877 o francês Jean-Martin Charcot que lhe diagnosticou um “nervosismo proteiforme” (Pizarro, 2003: 57). Numa carta ao seu tradutor alemão Wilhelm Storck, Quental escreve: “Nesse mesmo ano de 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inacção, a perspectiva da morte vizinha, a ruína de muitos projectos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, próprio da nevrose, puseram-me novamente e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema da existência. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível.” (Quental, 1989b: 837).
13 Um famoso contemporâneo de Quental, Friedrich Nietzsche, designou esta situação com a conhecida fórmula do “niilismo ocidental”, declarando o mesmo como a mais típica experiência vital para a Europa no início do século XX. Também a concepção do “trágico” em Nietzsche tem elementos que se encontram juntamente em Unamuno e Quental.
14 Neste sentido, o entendimento da religião de Unamuno corresponde exactamente a uma explicação célebre de Max Weber que entendeu a origem de uma religião da seguinte forma: “… a experiência da irracionalidade do mundo foi a força impulsora de toda a evolução religiosa” (Weber, 2002 [1919]: 548).
15 A terminologia “religiosidade à la carte” é um conceito da sociologia da religião para descrever a tendência contemporânea em misturar elementos religiosos que são culturalmente diferentes ou até antagonistas. Neste sentido, Antero de Quental precipitou uma típica maneira moderna de viver.
16 Neste contexto, é elucidativa uma observação de Eça de Queirós que se refere à “renovação religiosa” de Quental da maneira seguinte: “Anthero tendia para uma mistura do Platonismo e do Budhismo.” (Queirós, 1993[1913]: 520).
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