Sara Afonso Ferreira – Almada e Ramón Gómez de la Serna, Marginálias a quatro mãos

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO7

sara afonso ferreira

almada e ramón gómez de la serna, marginalias a quatro mãos

Entre 1927 e 1930 Almada trabalha em estreita colaboração com Ramón Gómez de la Serna, ambos vivendo, então, em Madrid. Cria cenários para a peça de teatro ramoniana intitulada Los medios seres (apresentada em 1929), ilustra dois livros do escritor espanhol: a capa e dez desenhos para La hiperestésica (Madrid, La Novela Mundial, 1928) e a sobrecapa de Dueño del átomo (Madrid, Historia Nueva, 1928) – e inúmeros textos seus nas páginas de revistas várias. Dentro desta obra vasta, que testemunha dos laços que unem os dois artistas, destaca-se, pela sua dimensão, continuidade e coerência, o conjunto de desenhos que Almada compõe para acompanhar os textos de Ramón na imprensa periódica madrilena, sobretudo em Nuevo Mundo e La Esfera, que constituem o grosso desta produção.

     O que então se conhecia deste núcleo – 18 colaborações nas páginas de La Esfera (entre 12.11.27 e 25.10.30), e 40 em Nuevo Mundo (entre 27.7.28 e 29.8.30) – foi publicado em 2004, no âmbito da exposição El alma de Almada el impar: obra gráfica 1926-1931 (Lisboa, Galeria Palácio Galveias), num volume intitulado Marginálias (Lisboa, Bedeteca – Assírio & Alvim). Entretanto, no contexto de outra exposição – Suroeste: relações literárias e artísticas entre Portugal e Espanha, 1890-1936 (Badajoz, MEIAC, 2010) – puderam ser localizadas mais 11 páginas de Ramón ilustradas por Almada em Nuevo Mundo : “Angulos” (6.5.27); “Botones” (22.7.27); “La sed de Verano” (2.9.27); “Nuevos y antiguos sagitários” (7.10.27); “La rebelion de los ciervos” (4.11.27); “Avionismo” (18.11.27); “La soledad del café cantante” (25.11.27); “Tambores” (9.12.27); “La casa de té exótica” (16.12.27); “Guantes” (30.12.27); e “Chimeneas nocturnas” (3.1.1930).

     São estas as obras que aqui se apresentam. Apenas parcialmente reproduzidas no catálogo da exposição Suroeste e impressas no catálogo da recente exposição José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017), sem ter em conta a parte ramoniana da colaboração – seis ilustrações por página não permitem a leitura do texto dando apenas a ver os desenhos de Almada, que é o que se pretende no quadro de uma exposição antológica – agora se mostram completas, finalmente visíveis e legíveis na íntegra.

     O que, no âmbito dos estudos das relações entre Almada e Ramón, geralmente se entende por marginálias (desde a publicação do referido volume assim intitulado), obras realizadas em conjunto entre Ramón, autor do texto, e Almada, autor dos desenhos, em Nuevo Mundo e La Esfera, congrega curtas ficções de facto nomeadas assim e contos que não estão directamente identificados desta forma.

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     Mas foi feliz a escolha deste título. Pois que uma “marginália” é um termo que designa, simultaneamente, as notas e comentários feitos (literalmente ou não) à margem de um livro ou de um texto e as iluminuras dos manuscritos medievais. Assim, o termo que encabeça grande parte destes textos ramonianos (a quase totalidade dos publicados em Nuevo Mundo) e que enquadra, por extensão, o vasto conjunto das suas obras ilustradas por Almada na imprensa, parece englobar as glosas escritas (por Ramón) – palavra que se refere a uma “interpretação breve de algum texto”, a uma “anotação”, a um “comentário” ou “observação”, a uma “crítica” ou “opinião” – e as desenhadas (por Almada): essas ilustrações que são, também, por definição, “explicações”, “esclarecimentos” ou “comentários aditados a uma obra”.

     Note-se que partindo deste significado abrangente (e artificial, mas tão a propósito) de marginália, no quadro embora restrito da colaboração entre Almada e Ramón na imprensa periódica, deveríamos referir também os desenhos realizados pelo português para ilustrar dois dos cinco textos que o espanhol apresenta na revista Mundo Ibérico – «La colección de bigotes» (12.10.27) e «Ensayo del corral» (Janeiro de 1928) – divulgados pela primeira vez por Marçal Font i Espí (aquí), num artigo que documenta a correspondência entre Ramón Gómez de la Serna e Mario Verdaguer, director da revista dos anos vinte.

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     Mas voltemos ao que nos interessa. As 11 “novas” marginálias publicadas nas páginas de Nuevo Mundo, e acima mencionadas, podem ser vistas como obras verdadeiramente conjuntas. Há, aliás, uma tendência de Almada em assumir, visualmente, a co-paternidade dos títulos – desenhando-os – que passam, assim, a designar ao mesmo tempo o texto e as ilustrações. As linguagens das palavras e das linhas aparecem como meios diferentes de uma mesma obra co-assinada por dois autores, de uma obra dupla escrita por Ramón e desenhada por Almada. Na marginália intitulada “Botones” (cronologicamente a segunda, no âmbito geral das colaborações entre os dois criadores), Almada parece, aliás, enunciar as bases desta relação artística profícua e duradoura. Do título não consta a preposição “por” que o une ao nome de Ramón. O nome do escritor surge, em vez disso, graficamente ligado ao de Almada, cuja assinatura espelha as linhas desenhadas da imagem-título associando-se manifestamente à obra no seu conjunto, à obra como narrativa gráfica. Os retratos de ambos os autores, representados por Almada em duas páginas diferentes das marginálias – em “Fruterias” (29.3.29) surge a conhecida silhueta de Ramón, e em “Avionismo”, que aqui se reproduz, julgamos reconhecer o perfil almadiano – parecem-nos ser mais uma forma, simbólica e espirituosa, de assumir a co-autoria das marginálias.

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    Se Almada se afirma, desta forma, como um colaborador por inteiro, desenhador das ideias descritas por palavras por Ramón, seu companheiro de viagem na glosa do quotidiano e do espaço da cidade (Madrid é o leitmotiv de inúmeras marginálias), o escritor espanhol disse-o com todas as letras.

     Ramón refere pela primeira vez Almada no final de 1922, numa carta endereçada a José Pacheco e preservada no espólio do arquitecto (Lisboa, Centro Nacional de Cultura): «le envio la reseña del discurso que leere en su banquete y el articulo que quisiera ilustrasse el admirado, extraordinario Almada». O desejo de Ramón de ser ilustrado por Almada, não concretizado na Contemporânea, terá dado azo a outro projecto, gorado também, de ver a sua novela A Ruiva (publicada em Julho de 1923 em Lisboa, na Novela Sucesso, com prefácio de António Ferro) acompanhada dos desenhos do artista português (segundo nos informou Vasco Medeiros Rosa). Por volta de Outubro-Dezembro de 1927, nas cartas que envia a Mario Verdaguer (e que acima referimos), também está patente a admiração do escritor pelo artista português. Ramón escreve: “¿Van más artículos? ¿Con ilustraciones de Almada que tanta modernidad da a las cosas?”. E em Janeiro de 1928: “Usted que está como un ser providente y lleno espíritu junto a los queridos editores, haga que se acuerden con continuidad de la colaboración [de Almada] y más cuando yo y Almada nos sentimos tan enrolados en el mismo barco”. Este empenho de Ramón em fazer acompanhar os seus textos dos desenhos do português surge também nas cartas que envia a Guillermo de Torre entre 1928 e 1929 – divulgadas por Carlos García na primavera de 2004 (no Boletín Ramón) – com vista a uma colaboração no diário La Nación, de Buenos Aires. Numa carta datada de 21 de Julho de 1928, Ramón escreve estas linhas: “¿Ilustraciones? Eso es más difícil para que acompañen a artículos completamente modernos. Sólo sabría colaborar con artistas del tipo de Almada y que pusieren alma gráfica al augurismo o a la suposición novedosa”.

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A colaboração de Almada com Ramón Gómez de la Serna não se limita porém à ilustração. A 7 de Dezembro de 1929, no Teatro Alkázar de Madrid, estreia a peça Los medios seres de Ramón, com “cenários do pintor português José de Almada Negreiros, chamado [pelo escritor] a colaborar na bizarria que a crítica espanhola aprecia e o público não entendeu” (segundo um recorte de imprensa não identificado guardado por Almada ao longo dos anos). Desta colaboração, de que pouco ou nada se sabia até ao momento da exposição Suroeste, em 2010, ficaram duas fotografias de cena, da autoria do célebre fotógrafo espanhol Alfonso, e um estudo para o cenário do I Acto de Los medios seres. Resta-nos também o testemunho significativo do próprio Ramón Gómez de la Serna (ABC, 5.12.29) que reitera as suas palavras de apreciação evocando, mais uma vez, a comunhão artística que o liga ao desenhador luso: «Acompañado del gran artista portugués Almada, que ha puesto fondo de poema en colores a mi comedia, sólo espero que resulte algo más que medio éxito o que un medio fracaso».

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     Admirador de Almada desde o início dos anos vinte, e manifestamente admirado por ele também, Ramón parece estar nos bastidores da ida de Almada para Madrid (onde o artista permanece de Março de 1927 a Abril de 1932). Tendo-o apresentado aos leitores da recém-fundada Gaceta Literaria a 1 de Fevereiro desse ano, preparando já a chegada de Almada, – com um texto revelador de um conhecimento e de uma admiração profunda da obra daquele que, “ser impar en medio de la pintura y de la literatura portuguesa”, “resume la delicadeza, la inquietud y el dilettantismo de Lisboa” – Ramón surge como o impulsionador da exposição de desenhos que o português realiza sob o patrocínio da Gaceta Literaria, em Junho de 1927, na Unión Ibero-Americana. Este evento, no âmbito do qual Almada profere também uma conferência (O Desenho) e que conta com cerca de 200 obras, de uma importância capital para um pintor que poucas vezes expusera individualmente, denota a forma calorosa com que Madrid recebe o português, que, desde logo, se insinua no meio intelectual e artístico espanhol. Almada é, aliás, simbolicamente recebido no Pombo por Ramón, protagonista da célebre tertúlia madrilena, que “levantándose de su trono popular o de su taburete imperial, abrió los brazos y la voz, en una entusiasta y cordialíssima bienvenída” (como lembra António Espina).

     De comuns raízes simbolistas, ambos interessados pelo futurismo (e por todos os outros ismos), ambos picassianos, ambos convencidos de que o humor é a coisa mais séria da vida e ambos sobretudo polifacetados, capazes de dominar simultaneamente a escrita e o desenho (como nos diz Juan Manuel Bonet), Almada e Ramón foram verdadeiros companheiros de arte que nos deixaram, em testamento, as marginálias.

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