Odete Jubilado – Olhares cruzados sobre a cegueira: dos Ensaios ao filme

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO3

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Cartel de la versión española de Blindness de Fernando Meirelles según la novela de José Saramago, Ensayo sobre la ceguera.

ODETE JUBILADO

AUTUN (FRANÇA), 1971


OLHARES CRUZADOS SOBRE A CEGUEIRA: DOS ENSAIOS AO FILME

A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.
J
OSÉ SARAMAGO

Não é preciso visitar um asilo de homens para encontrar mentes perturbadas; o nosso
planeta é o manicómio do universo.
JOHANN VON GOETHE

      Ao definir a Literatura Comparada como “a arte de aproximar a literatura de outros domínios de expressão”, como o cinema, “ou dos factos e dos textos literários entre si com o objectivo de melhor os descrever, os compreender e os apreciar”, Jeanne-Marie Clerc1 confere às relações entre literatura e cinema um lugar de relevo na reflexão comparatista que nos importa aqui convocar para a nossa leitura.

[...] l’art [...] de rapprocher la littérature des autres domaines de l’expression ou de la connais- sance, ou bien les faits et les textes littéraires entre eux [...] afin de mieux les décrire, les compren- dre et les goûter, on ne peut dénier au cinéma et aux images appartenant à la même famille tech- nologique – photographie, télévision, affiches publicitaires – le droit à occuper une place non négli- geable dans la réflexion comparatiste.

Na verdade, esta proposta de leitura situa-se, justamente, na linha desta afirmação, procurando estabelecer, numa primeira fase, uma comparação entre os dois ensaios de José Saramago: Ensaio sobre a Cegueira2 e Ensaio sobre a Lucidez.3 Numa segunda fase, centrar-nos-emos, mormente, sobre alguns dos aspectos que se nos afiguraram mais relevantes na adaptação cinematográfica de Fernando Meirelles.4 Referimo-nos a aspectos já presentes nos dois ensaios saramaguianos e que, por isso, adquirem, na adaptação do texto literário ao cinema, um especial interesse tais como o título, a importância do branco e a ironia.

1 Jeanne-Marie Clerc: “La Littérature Comparée devant les images modernes: cinéma, photographies, télévision”, Pierre Brunel et Yves Chevrel, Org. Précis de Littérature Comparée, (Paris, PUF,1989), p. 263.
2 José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira (Lisboa, Caminho, 1995).
3 José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez (Lisboa, Caminho, 2004).
4 Fernando Meirelles, Ensaio sobre a Cegueira, (O2 Filmes/Rhombus Media/Bee Vine Pictures, 2008).

1. ENSAIOS SOBRE A CEGUEIRA

      Em Ensaio sobre a Lucidez, à semelhança, aliás, de Ensaio sobre a Cegueira, romance com o qual tece relações e na continuação do qual surge, José Saramago apresenta, mais uma vez, um fenómeno estranho associado ao branco. Ambos os romances colocam ao leitor uma interrogação centrada no branco, quer reportado à cegueira, quer à votação, assumindo um carácter universal. O branco surge assim como um núcleo potenciador do estabelecimento de uma relação possível (e quem sabe até desejável) entre os dois ensaios.
      Comecemos pela titulação dos romances: em Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, o leitor depara com duas indicações genéricas, um aspecto característico da produção romanesca saramaguiana, que constituem uma feliz combinação entre o romance (ficção) e o ensaio. Assim, a leitura do título conduzirá o leitor a esperar do romance, mais do que uma reflexão sobre uma matéria (a cegueira do poder instituído e/ou a lucidez dos votantes), uma “atitude”, que é considerada, de acordo com Helena Buescu,5 como o seu traço principal e definidor: “[...] Trata- se de, no sentido próprio do termo, «ensaiar», i.e., «pesar», «experimentar pelo confronto» e, através desse procedimento, afastar qualquer intuito sistemático, exaustivo e dogmático (apriorístico) [...]”.
     
É manifestamente a repetição da fórmula “ensaio sobre” e o par de opostos, que consta dos títulos: Ensaio Sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, que permite ao leitor estabelecer uma relação entre os dois romances. Esta relação é, aliás, fortemente sugerida ao leitor pelas várias remissões intratextuais para Ensaio sobre a Cegueira, disseminadas no segundo romance. Referimo-nos à recuperação e à disseminação, no segundo ensaio, de elementos como: a mulher do oftalmologista, as medidas absurdas do governo, o estabelecimento de um estado de sítio e o branco. Existem também outras remissões intratextuais para outros romances saramaguianos como Levantado do Chão6 (por exemplo, pela referência ao provérbio “o sol quando nasce é para todos”),7 ou ainda, A História do Cerco de Lisboa8 pela referência aos sitiados e aos sitiantes.
     
De facto, tanto Ensaio sobre a Cegueira como Ensaio sobre a Lucidez dão conta de uma cegueira generalizada dos seres que o povoam, funcionando como metáfora da cegueira humana. Ensaio sobre a Lucidez apresenta o cenário de uma cegueira acentuada do poder político que contrasta com a lucidez dos votantes. Tal como o primeiro romance, o segundo romance saramaguiano cultiva uma reflexão sobre o branco associado à lucidez, por oposição à cegueira que vai sendo sucessivamente descoberta, ensaiada e testada perante o leitor.
     
Nos dois ensaios saramaguianos, o leitor depara com a metáfora da epidemia que se inscreve numa larga tradição literária em que já vários historiadores e romancistas escreveram sobre a peste. Desde Sófocles que evoca este flagelo no Rei Édipo, passando por Tucídides, o cronista da peste de Atenas, ou ainda o escritor medieval Froissart que evoca a peste negra nas suas Chroniques. Também, no Decameron, Boccacio começa por narrar a chegada da peste a Florença enquanto Daniel Defoe relata a peste de Londres no seu A Journal of the Plague Year. E, claro, La Peste de Camus. Em Ensaio sobre a Cegueira, mais do que um mal ou uma doença, a epidemia aparece ligada a um corpo social, político e ideológico contaminado. A pandemia do branco (cegueira) de que padeciam as personagens de Ensaio sobre a Cegueira, que fora temporariamente controlada, assume agora novos contornos em Ensaio sobre a Lucidez. Assemelhando-se a um vírus, de que padece a sociedade, o ‘mal branco’ sofre uma espécie de mutação, materializando-se agora no voto em branco. A relação entre os dois romances é, aliás, claramente estabelecida neste excerto:

A cegueira desses dias regressou sob uma nova forma, chamaremos a atenção da gente para o paralelo entre a brancura da cegueira de há quatro anos e o voto em branco de agora [...] que se perguntem diante do espelho se não estarão outra vez cegas, se esta cegueira, ainda mais vergonhosa que a outra, não os estará a desviar da direcção correcta, a empurrar para o desastre extremo [...] a luta será longa e trabalhosa, reduzir a nova peste branca à impotência exigirá tempo e custará muitos esforços.9

      Note-se que o elo estabelecido entre os dois romances se baseia, precisamente, no branco, quer da cegueira, quer do voto que é comparado a uma “peste branca”. Desta vez, o branco aparece associado a um acto de lucidez que se corporiza no acto de “firmeza moral da população”10 de votar em branco como forma de protesto contra uma democracia doente. Votar em branco é, assim, tomar posição, exercendo o direito de voto, ou seja, é fazer uma escolha, o que, de certo modo, permite configurar um cenário de esperança contra a abstenção pautada pela indiferença.
      Tal como em Ensaio sobre a Cegueira, o ‘mal branco’ aparece ligado a uma cidade e a ruas sem nome, a personagens sem nome (exceptuando o cão Constante/cão das lágrimas).11 Denuncia-se um corpo político doente e sem nenhuma credibilidade junto dos eleitores que, num acto de lucidez, resolveram votar em branco. Este acto de lucidez do povo contrasta com a cegueira desenfreada, isto é, a irracionalidade vigente que caracteriza um poder político instituído contaminado pela falta de ética, de valores, de bom senso e de visão.
     
Sublinhe-se que a doença não é o tema fundamental de Ensaio sobre a Cegueira, é antes um meio para reflectir sobre as grandes interrogações do mundo, a partir do manicómio (locus horrendus) que se configura como um microcosmo da cidade e dos seus acontecimentos. O leitor assiste à tragédia da cidade através do seu isolamento e da sua desumanização que o manicómio espelha. Na verdade, o mal de que padece a cidade sem nome de Ensaio sobre a Cegueira não se afigura muito diferente daquele que assola Ensaio sobre a Lucidez.
     
Podemos, aliás, estabelecer um paralelismo entre as reacções do poder instituído à epidemia do branco nos dois romances, o que de certa forma evidencia formas de actuação e de comportamento padrão do poder político perante a crise. Com efeito, nas duas narrativas, a epidemia do branco é vista como um ataque, logo, uma ameaça ao poder instituído. Em ambos os ensaios, situações anómalas como a cegueira branca e o voto em branco são combatidas com uma galeria de medidas absurdas pautadas pelo medo e pelo pânico. Coloca-se a cidade em estado de sítio, vigia-se e controla-se tudo e todos; inicia-se uma verdadeira caça aos cegos, aos eleitores do branco, “os brancosos”, e à “intenção de voto do eleitor caçado”.12 Em ambos os romances, o leitor depara com a cegueira do poder instituído que faz emergir o pior da natureza humana, evidenciando as várias tensões existentes no tecido social, político e ideológico.
     
Em Saramago, o branco materializa-se através de uma representação ficcional da epidemia como cegueira branca (e não preta como seria de esperar) e como voto em branco. O fascínio pelo branco surge nos dois “ensaios” saramaguianos e ultrapassa a mera representação ficcional da epidemia. De certo modo, o branco funciona como uma alegoria da irracionalidade, da incapacidade de ver e de entender do ser humano como principal causa do caos social, político, ideológico e ético. A ausência de nomes das personagens, das ruas, da cidade tende precisamente para um sentido universal, na medida em que a história poderia ter acontecido em qualquer cidade do mundo e a qualquer cidadão.13
     
De acordo com o Dictionnaire des Symboles,14 o branco, que designa a ausência ou a soma das cores e cuja contra-cor é o preto, pode assumir uma multiplicidade de significados.

Comme sa contre-couleur, le noir, le blanc peut se situer aux deux extrémités de la gamme chromatique. Absolu et n’ayant d’autres variations que celles qui vont de la matité à la brillance, il signifie tantôt l’absence, tantôt la somme des couleurs. Il se place ainsi tantôt au départ tantôt à l’aboutissement de la vie diurne et du monde manifesté, ce qui lui confère une valeur idéale, asymptotique. Mais l’aboutissement de la vie – le moment de la mort – est aussi un moment transitoire, à la charnière du visible et de l’invisible, et donc un autre départ.

      A simbologia do branco traduz assim a paz, a pureza, a luz, a sabedoria, o silêncio, a liberdade, o bem e o recomeço. Mas também remete para a verdade por oposição à guerra, à corrupção, à sombra, à cegueira, ao caos, ao mal, à mentira. Nos dois ensaios, a simbologia do branco manifesta-se ainda no percurso iniciático que o leitor empreende (não fosse o branco uma cor iniciadora) em busca da revelação, da luz e da sabedoria, que só poderá ser alcançada através de uma (re)leitura da interrogação do branco. Tanto em Ensaio sobre a Cegueira como em Ensaio sobre a Lucidez, ler o branco implica, então, para o leitor, ter a capacidade de interrogar o mundo, a vida, o homem e o tempo.  
      Em relação à ironia, em Ensaio sobre a Cegueira, ela manifesta-se na descrição e na designação das personagens que povoam o universo textual. De facto, as personagens não possuem nome próprio, isto é, uma identidade psicológica, tradicionalmente assinalada pelo nome. Todas as personagens são, ironicamente, designadas pelos acessórios (metonímias visuais: os óculos escuros, os produtos para os olhos, a venda preta) inúteis à sua condição de cegas. Designam-se as personagens através de expressões como: “o rapaz estrábico, a rapariga dos óculos escuros, a mulher do médico, o velho da venda preta, o oftalmologista e o cão das lágrimas”. A presença destes nomes descritivos, oriundos do campo lexical da visão, evidencia a subjectividade do sujeito, ser observador e comentador, que declina o que vê e lhe atribui um sentido.
     
Este olhar oblíquo do sujeito não se limita à designação visual das personagens cegas, estende-se à descrição de todo o espaço interior e exterior do manicómio. O espaço interior (o manicómio) é, ironicamente, descrito, desde o início, como um espaço iluminado dia e noite, independentemente da cegueira generalizada dos seus habitantes.15 A ironia também se manifesta no exterior do manicómio através de uma descrição minuciosa de todas as afirmações e medidas absurdas tomadas por um governo cego, caracterizado pela ausência de bom senso e de competência, assim como por uma comunidade científica inútil perante a crise instalada. A ironia está aqui, estreitamente, associada à inadequação entre o espaço ocupado e o ocupante. De facto, no interior do manicómio (espaço destinado aos que sofrem de problemas mentais), estão fechados cegos (pessoas que só perderam a visão). O bom senso de alguns dos cegos manifesta-se pela sua capacidade de organização e de discernimento claramente superior à evidenciada pelo governo e pela comunidade científica (ironicamente situados fora do manicómio), que vêem mas, aparentemente, perderam a razão.
    
A ironia manifesta-se também na impossibilidade irónica e prática de ver. A mulher do oftalmologista (à partida o especialista do “ver”) é a única que conservou esta faculdade num mundo de cegos. Ela é a única capaz de descrever e apreender, dado que, ironicamente, o especialista do “ver” está cego, depois de ter observado e tentado compreender “este mal branco”. A mulher do médico será, assim, uma intrusa no mundo dos cegos, dado que vê mas se finge cega, pautando-se por estes dois comportamentos diferentes. A ironia resulta aqui de uma inversão irónica dos papéis entre a mulher do médico e o oftalmologista.

5 Helena Carvalhão Buescu, “Ensaio”, Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas da Língua Portuguesa, (Lisboa, Verbo, 1997), vol. 2, p. 282, pp. 282-290.
6 José Saramago, Levantado do Chão, (Lisboa, Caminho,1980).
7 José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 46.
8 José Saramago, A História do Cerco de Lisboa, (Lisboa, Caminho,1989).
9 José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., pp. 179-180. 10 Idem, p. 72.
11 Idem, p. 270.
12 Idem, p. 131 e p. 33.
13 José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, op. cit., p. 215.
14 Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles. Mythes, Rêves, Coutumes, Gestes, Formes, Figures, Couleurs, Nombres, (Paris: Robert Laffont, Édition revue et augmentée, 1982), pp. 125-128 e p. 125.
15 José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, op. cit., p. 50.

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2. DA PÁGINA À TELA

     Debruçar-nos-emos agora sobre a segunda fase desta proposta de leitura, onde reflectiremos sobre a forma como alguns destes aspectos, a saber o título, a importância do branco e a ironia foram equacionados no filme de Fernando Meirelles. Como vimos, em Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago ensaia um diálogo sobre a cegueira e as suas consequências. A ênfase, atribuída à voz que conta, é evidenciada pela presença alternada não só de um narrador (uma voz anacrónica e anónima) como também de personagens. A voz é, deste modo, diferentemente distribuída, o que permite aceder a outros pontos de vista da história contada. No filme, atribui-se ao narrador um olhar cinematográfico, associado a uma capacidade de visualizar em várias direcções e a vários ritmos. Este efeito é conseguido através da alternância e do movimento de câmaras, assim como da criação de um olhar cinematográfico, que se alimenta do cruzamento de imagens e de diferentes opções ópticas.    
      Carlos Jorge16 reflecte justamente sobre a focalização como narração no cinema, interrogando-se sobre “o que é narrar e como se faz”, sublinhando que “a voz narradora17 é facultativa no cinema, não existindo um narrar extradiegético, verbal, neste meio [...]”. É, precisamente, por esta razão, que segundo, Carlos Jorge,18 a “questão do narrador se torna problematicamente produtiva quando procuramos entender o que é mais importante: o ponto de vista - que pode ser entendido como um procedimento do modo, segundo Genette,19 que parece dominar no cinema - ou a voz que, na narrativa verbal, é decisiva?”.
      Comecemos pela questão do título que configura uma das diferenças entre o livro e o filme. De facto, contrariamente aos dois “ensaios” de Saramago, cujos títulos apontam para outro género, Fernando Meirelles aposta na redução do título para Blindness (Cegueira), rasurando o aspecto fundamental do “ensaio” para o qual apontam ambos os romances. Sublinhe-se que o título Ensaio Sobre a Cegueira corporiza uma tentativa de reflectir, de forma ensaística e ficcional, sobre o mal metafórico de que já padece a sociedade: uma cegueira generalizada, relativamente, aos valores humanos.
      O título de Fernando Meirelles está centrado exclusivamente na cegueira, levando, à partida, o espectador (sobretudo aquele que não leu o livro) a pensar que vai assistir a um filme sobre a cegueira física. Esta interpretação, estranha para o leitor do livro, talvez possa explicar a recepção polémica de que o filme, contrariamente ao livro, foi objecto nos Estados Unidos. De facto, uma parte da sociedade americana e várias associações de invisuais reagiram contra a violência das imagens do filme que interpretaram, literalmente, como sendo sobre a cegueira física e os invisuais.
      Ora, é sabido que o cinema possui um alcance cultural muito mais abrangente do que a literatura, como explica Jeanne-Marie Clerc.
20

En élargissant considérablement l’horizon culturel où s’inscrit l’écriture, le cinéma et ses dérivés ont mis en évidence l’ina- déquation de plus en plus flagrante entre le découpage du monde que nous fournit la langue et celui, nouveau, que pos- tule l’expression iconique.

      Um dos desafios do filme consistirá, precisamente, em (re)ler esta interrogação universal, que se configura como cegueira, lucidez e epidemia (doença) e que afecta os habitantes sem decepcionar o leitor do livro, potencial espectador do filme. Pois, como explica Jeanne-Marie Clerc,21 a decepção do leitor resulta, frequentemente, do facto de este se sentir traído pela adaptação cinematográfica de que o livro foi objecto e que não corresponde, forçosamente, às representações imaginárias que a leitura lhe tinha suscitado.

[...] trahi dans ses représentations imaginaires par la lecture différente dont témoigne l’adaptation, déçu par le physique trop précis de tel ou tel acteur, amer à l’égard du monde apparemment conventionnel dans lequel il voit enfermer, à l’usage du grand public, ce qu’il avait ressenti devant les mots comme une émotion proprement indi- viduelle. S’y ajoute le préjugé contemporain selon lequel seule est digne de prix l’œuvre originale, toute imitation, dans cette ère de reproduction industrielle, n’étant jamais qu’une contrefaçon.

      Durante o filme, procura-se recriar a cegueira branca do livro, forçando o espectador a vivenciar cenas pouco nítidas com ambientes escuros; cenas com pouca ou demasiada luz e cenas onde se recorre à lente desfocada. Este efeito é conseguido pela construção de um olhar enevoado, desfocado, turvo que é experienciado pelo espectador. Veja-se, por exemplo, no início do filme, a velocidade da sucessão de imagens brancas e sonoras (vincadas pelo tilintar) que visam traduzir a propagação rápida do surto de cegueira. Este processo também é retomado no fim do filme quando as personagens recuperam a visão.
      Também no filme é conferida uma grande importância ao branco, a cidade está envolta numa espécie de nevoeiro que dificulta a sua observação. Tal como o livro também o filme começa in medias res, projectando imediatamente o espectador no trânsito de uma grande cidade. O espectador é, desde logo, confrontado com uma acção já em curso, deparando com uma cena que faz parte do quotidiano urbano. Esta cena materializa-se num automóvel parado num semáforo, adquirindo relevância pelo aspecto insólito da imobilidade do automóvel depois da abertura do semáforo. Procura-se (re)criar a cegueira branca e a cidade assemelha-se, pouco a pouco, a uma cidade em ruínas, uma cidade fantasma (imagem incorpórea), onde as pessoas “[...] vão como fantasmas, ser fantasma deve ser isto, ter a certeza de que a vida existe, porque quatro sentidos o dizem, e não a poder ver”.22 No filme, através da lente desfocada, recria-se este aspecto numa cena onde os cegos vagueiam como fantasmas no manicómio e pela cidade. O espectador depara com esta forte ostentação do branco nos tectos, nas paredes, no chão e no mobiliário do manicómio. A predominância do branco (e o seu contraste com cenas onde predomina o preto) permite evidenciar a cegueira branca generalizada no interior e no exterior do manicómio, transformado em locus horrendus. É para este último que remete o leque de imagens escatológicas do manicómio e da cidade deserta, onde se evidenciam seres humanos reduzidos à sua condição animalesca através de corredores imundos e nauseabundos, onde precisamente o branco aparece manchado. O espectador assiste, deste modo, a uma progressiva desumanização do homem e à prevalência do seu instinto de sobrevivência.  
      A ironia subjacente ao livro também está presente no filme. Relembremos, por exemplo, a cena em que um dos cegos da camarata três, depois de exigir com crueldade o pagamento pela comida, canta justamente a música “I just Call to Say I love You” do cantor invisual Stevie Wonder, o que não poderia ser mais incongruente com o contexto. Estamos perante aquilo que Lars Elleström23 designa como “ironia situacional”, que resulta do contraste entre o contexto e a composição musical escolhida. Existem também várias cenas no filme que recuperam a ironia através do contraste estabelecido entre aquilo que é dito (a palavra) e aquilo que é mostrado (a imagem). Veja-se, por exemplo, a cena em que o médico cego, na sequência da questão da comida, pede aos outros cegos que levantem a mão em sinal de concordância com a opção de ir buscar a comida à camarata três, que faz sorrir o espectador e se lhe afigura como algo estranho. Veja-se também a cena em que o ladrão pede às mulheres cegas para fecharem os olhos visto que se vai despir. Também no filme a música assume várias conotações. Tem um papel apaziguador, na comunidade dos cegos da camarata um, quando todos ouvem uma canção no rádio do velho da venda preta. Esta última transmite tranquilidade e esperança ao grupo que experiencia a beleza da música. Já nos soldados, como vemos noutra cena do filme, a música torna-se irritante e incomodativa.
      Tal como o romance dialoga com a pintura, através de referências implícitas e explícitas a quadros, também este diálogo existe no filme onde o espectador depara com uma galeria de imagens que relembram os quadros do livro.
24 No livro, este mosaico de quadros surge na sequência de um jogo, proposto pelo homem da venda preta aos outros cegos para passar o tempo. No jogo proposto, cada cego conta aos outros o que estava a ver no momento em que cegou. Os relatos sucedem-se até chegar a uma voz desconhecida que tinha ido a um museu. Maria Alzira Seixo25 compara justamente esta voz desconhecida “[...] às aparições fugazes de Hitchcock nos seus filmes”. Esta voz descreve um quadro estranho que é um compósito de quadros, sem título e sem autor, colocados lado a lado. À semelhança das personagens e da cidade, os quadros não são nomeados, sendo apenas descritos à distância.

Já todos contaram a sua última história do tempo em que viam, perguntou o velho da venda preta, Conto eu a minha, se não há mais ninguém, disse a voz desconhecida [...] O último que eu vi foi um quadro, Um quadro, repetiu o velho da venda preta, e onde estava, Tinha ido ao museu, era uma seara com corvos e ciprestes e um sol26 que dava a ideia de ter sido feito com bocados de outros sóis, Isso tem todo o aspecto de ser um holandês, Creio que sim, mas havia também um cão a afundar-se, já estava meio enterrado, o infeliz, Quanto a esse, só pode ser de um espanhol, antes dele ninguém tinha pintado assim um cão, depois dele ninguém mais se atreveu, Provavelmente, e havia uma carroça carregada de feno, puxada por cavalos, a atravessar uma ribeira, Tinha uma casa à esquerda, Sim, Então é de inglês, Pode ser, mas não creio, porque havia lá também uma mulher com uma criança no colo, Crianças ao colo de mulheres é do que mais se vê em pintura, De facto, tenho reparado, O que eu não entendo é como poderiam encontrar-se em um único quadro tão diferentes pintores, E estavam uns homens a comer, Têm sido tantos os almoços, as merendas e as ceias na história da arte, que só por essa indicação não é possível saber quem comia, Os homens eram treze, Ah, então é fácil, siga, Também havia uma mulher nua, de cabelos louros, dentro de uma concha que flutuava no mar, e muitas flores ao redor dela, Italiano, claro, E uma batalha, Estamos como no caso das comidas e das mães com crianças ao colo, não chega para saber quem pintou, Mortos e feridos, É natural, mais tarde ou mais cedo todas as crianças morrem, e os soldados também, E um cavalo com medo, Com os olhos a quererem saltar-lhe das órbitas, Tal e qual, Os cavalos são assim, e que outros quadros havia mais nesse seu quadro, Não cheguei a sabê-lo, ceguei precisamente quando estava a olhar para o cavalo.

      No filme, o diálogo estabelecido com a pintura manifesta-se de forma diferente. O espectador assiste ao relato do homem da venda preta que conta rapidamente a história e os efeitos da cegueira na cidade. Sintomaticamente e simbolicamente todas as imagens religiosas na igreja aparecem com vendas brancas tanto no livro27 como no filme. Na tela, sob o olhar atento do espectador, os quadros ganham vida e desfilam encenados, forçosamente, numa ordem diferente da descrição do livro. Só o quadro A Carroça de Feno de John Constable não é retomado no filme, provavelmente, pelo facto de o filme ter como cenário principal a cidade. No filme, o espectador reconhece o quadro da Parábola dos Cegos de Pieter Brugel na expedição à casa de banho dos cegos guiados pela mulher do médico. À queda de um dos elementos do quadro corresponde a queda do ladrão provocada pela rapariga dos óculos escuros como medida contra o comportamento impróprio deste último. O quadro de Goya Perro Semihundido é transposto para o ecrã através da escolha de um cão demasiado pequeno, segundo José Saramago, que desce a escadas e se junta à mulher do médico. O quadro de Vincent Van Gogh Seara com Corvos aparece, estrategicamente, já nas últimas cenas do filme (através das duas imagens da janela com o céu escuro e nublado). O quadro surge depois da cena do banho das três mulheres na varanda,28 que poderá remeter para o quadro das Três Graças de Rubens. Já a imagem do quadro Suzana no banho de Tintoretto29 surge antes do relato do homem da venda preta, através da imagem desfocada de uma mulher numa banheira. Quanto ao quadro de Botticelli, O Nascimento de Vénus, ele é retomado no filme através da imagem da lavagem da mulher “peixe-morto” pelas outras mulheres, depois da cena das relações sexuais com os cegos da camarata três em troca de comida. Apesar de diferentes, tanto o quadro de Botticelli como a imagem da lavagem da mulher “peixe-morto” coincidem na representação do banho como um acto de pureza tanto na vida como na morte. 
      Os quadros de mulheres com crianças ao colo manifestam-se no filme através da relação maternal estabelecida pela rapariga dos óculos escuros e a mulher do médico com o rapaz estrábico, a quem esta última conta histórias.
     
Revelam-se ainda na relação maternal que a mulher do médico estabelece com os outros cegos. A Última Ceia de Leonardo da Vinci coincide no filme com a imagem dos cegos da camarata um, sentados a comer à volta de uma mesa, antes de a mulher do médico matar um dos cegos da camarata três e, posteriormente, os outros cegos a quererem denunciar, numa remissão para Judas.
      Quanto aos quadros sobre batalhas, eles são equacionados no filme através das várias cenas de conflito em torno da comida, do espaço e da luta contra a cegueira dos soldados apesar de julgarmos que determinados elementos da citação apontam também para Guernica de Pablo Picasso. Referimo-nos à presença de elementos que remetem, claramente, para o quadro tais como: “uma batalha”, o bombardeamento da cidade de Guernica em 26 de Abril de 1937 e das suas respectivas vítimas, precisamente, mulheres, soldados e crianças: “todas as crianças morrem, e os soldados também”, mas também a referência a “um cavalo com medo, Com os olhos a quererem saltar-lhe das órbitas, Tal e qual, os cavalos são assim”.
30
     
Acrescentemos ainda a estes elementos oriundos do quadro a importância que nele é conferida ao olhar. Todas as personagens de Guernica têm o olhar orientado para a esquerda em direcção ao touro que observa, por sua vez, o espectador, verificando-se, deste modo, uma circulação do olhar no quadro. Além disso, a escolha deste quadro também não será um acaso se tivermos em conta que as suas cores predominantes são o preto e o branco que o leitor/espectador reencontra tanto nos dois romances saramaguianos em estudo como no próprio filme. Note-se ainda que, à semelhança do livro e do filme, também o quadro obriga o espectador a experimentar algo, exigindo-lhe a capacidade de ler de outro modo o quadro, ou seja, da direita para a esquerda, invertendo-se o sentido mais convencional da leitura, pelo menos nas sociedades ocidentais. Sublinhe-se ainda o facto de Guernica ser um quadro constituído por vários painéis, recorrendo à técnica da colagem de que tanto Picasso como Braque tinham sido pioneiros. Picasso pinta Guernica como se se tratasse de colagens, criando uma sobreposição de tons de preto e cinzento atravessados por claridades brancas e amareladas. Também o olho do candeeiro do quadro é transposto para o filme onde, no manicómio, o espectador depara com um candeeiro parecido com o do quadro que derrama uma luz inóspita.
      A escolha de Guernica não será gratuita se tivermos em conta a sua constituição em vários painéis que, simbolicamente, remetem para alguns dos quadros que constituem o quadro a que se refere a voz desconhecida. Também não deixa de ser significativo o facto de ser justamente essa a personagem que olha para o Guernica com um só olho, mimetizando o olho do quadro e do cavalo, o último elemento que visualiza “e que outros quadros havia mais nesse seu quadro, Não cheguei a sabê-lo, ceguei precisamente quando estava a olhar para o cavalo”.
31 Assim, da mesma forma que os quadros surgem na página pela palavra (ekphrasis), através da descrição, também na tela eles são activados pelas imagens que os transformam em quadros vivos, contribuindo para a interpretação da narrativa fílmica Blindness. O espectador depara assim com um museu de quadros vivos que, de repente, ganham vida sob o seu olhar atento.
      Em suma, a comparação entre os dois “ensaios” e o Ensaio sobre a Cegueira e o filme - a partir de elementos como o título, a importância do branco e a ironia - permitiu-nos, como sublinha Helena Buescu: [...] recolocar e por isso reconfigurar
32 (a insistência é aqui precisamente na transformação) as relações entre os objectos produzidos, por um lado, e por outro os vários espaços e tempos dos humanos que diversamente os vivem, e os vivem também de modos potencialmente (e mesmo realmente) diferenciados.

16 Carlos Jorge, História, Imagens e Letras. Literatura e Cinema numa Perspectiva Comparatista, (Lisboa, Apenas, 2011), p. 107.
17 Itálico do autor.
18 Idem, p. 107.
19 Gérard Genette, Figures III (Paris, éd. du Seuil, «coll. Poétique», 1972), pp. 183-224.
20 Jeanne-Marie Clerc, “La Littérature Comparée devant les images modernes: cinéma, photographies, télévision”, op. cit., p.292.
21 Jeanne-Marie Clerc, “La Littérature Comparée devant les images modernes: cinéma, photographies, télévision”, op. cit., pp. 274-275.
22 José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, op. cit., p. 233.
23 Lars Elleström, Divine Madness: On Interpreting Literature, Music, and The Visual Arts Ironically, (London, Associated University
Presses, 2002), pp. 146-151.
24 José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, op. cit., pp. 130-131.
25 Maria Alzira Seixo, Lugares da Ficção (Lisboa, INCM, 1999), p. 117 e 116-122.
26 Assinalámos, em itálico, os títulos dos quadros assim como elementos que remetem para um determinado quadro, como no caso de Guernica de Picasso no excerto.
27 José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, op. cit., pp. 301-302.
28 Idem, pp. 266-267.
29 Idem, p. 268.
30 Idem, pp. 130-131.
31 Idem, pp. 130-131.
32 Helena Carvalhão Buescu, “Comparação e Literatura”, Leituras (n.o 3, Outono, 1998), p. 111, pp. 109-11