Nuno Matos Duarte – Breves apontamentos a partir da leitura do poema Contramina de Ruy Ventura

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO3

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NUNO MATOS DUARTE

PONTE DE SOR, 1971


BREVES APONTAMENTOS A PARTIR DA LEITURA DO POEMA CONTRAMINA DE RUY VENTURA

PRIMEIRO: ANTES DA LEITURA DO POEMA

      É meu dever começar por esclarecer que leitor julgo ser, porque num mundo onde as actividades humanas se organizam e estilhaçam em microestruturas resguardadas nos diversos campos do saber, e que tenta reduzir a actividade do indivíduo à especialização num campo de actuação muito complexo mas diminuto, algumas vicissitudes profissionais, e o meu interesse genuíno por todas as actividades artísticas, têm-me conduzido pelo caminho oposto, isto é, pelos trilhos inseguros da não-especialização. É até com algum espanto meu que constato agora que actuei já, pontualmente nuns casos e continuadamente noutros, nos campos da arquitectura, música, pintura, escultura, fotografia, design gráfico e de objectos, vídeo arte, artes multimédia, ensino, gestão na administração pública, ensaísmo e também no da literatura. Se exceptuar o caso da arquitectura, pois exerço a profissão de arquitecto desde 1996, é óbvio que não tive tempo para me especializar verdadeiramente em nenhuma destas actividades, mas, de uma forma ou de outra, e numas mais do que noutras, vou oferecendo, a conta-gotas, o meu humilde e pouco visível contributo. Por isso não pode o leitor ou o ouvinte destas palavras esperar de mim um comentário “académico” e bem informado sobre poesia, porque não conheço em profundidade as ferramentas próprias dos métodos da crítica literária. Creio no entanto que a obra de arte genuína possui elementos que, de alguma forma, colidem com elementos presentes em mim, e o mais que posso fazer, em vez de os procurar dentro de parâmetros externos, é deixar simplesmente que essas colisões ocorram para as identificar e, finalmente e partindo delas, compor e desenvolver os conteúdos do que suscitam, um sentido estético que, dado este meu método desengonçado, pode divergir largamente das intenções do autor da obra e até das minhas próprias convicções e preconceitos. Devo dizer também que, com o passar dos anos, tenho alimentado a convicção pessoalíssima de que a especialização autista, regra geral, conduz à esterilidade criativa e às ortodoxias dos sucessivos becos sem saída da persistência de uma certa ideia de modernismo progressista. Esta apologia do esforço continuado e colectivo, assente na ideia de evolução na arte mimetizado do da ciência, dilui a importância da inquietação individual com o universo, e neste processo vai-se perdendo o que, a meu ver, constitui o factor mais importante para haver arte: a individualidade.
      Feita esta advertência, e ainda antes da leitura do poema, passo à constatação de algumas evidências estruturais sobre o objecto que tenho diante de mim. Trata-se de um pequeno livro que na capa exibe o título Contramina1 e o nome do autor, Ruy Ventura. Abro-o, viro as primeiras folhas, lá dentro surge de novo o título precedido de algumas citações. Folheio-o todo, rapidamente, e descubro no meio de blocos de caracteres alguns numerais romanos, cabeçalhos que marcam o início de partes do corpo de texto. Constato que o livro serve de suporte a um único poema dividido em sete partes e que as últimas duas partes são precedidas de um separador com a inscrição Theatro Anatomico. Antevejo, pois, diferenças entre as várias partes, bem como uma mudança de tom no texto, um clímax, ou anticlímax, após o separador Theatro Anatomico. Mas não quero abordar a leitura do livro analisando tout court os rigorosos traços de uma relação eficaz entre forma e conteúdo, nem tão pouco me motiva o decifrar de uma exactidão simbólica na numerologia, simplesmente porque o tipo de pessoa que faz isso não sou eu. Tal como a capa já indicava, existe também no livro um posfácio escrito por outro autor. Da leitura rápida que faço deste posfácio (que assim deixou de o ser porque o li antes de ler o poema) concluo que acaba por ser outra obra que coexiste com o poema, tomando-o como ponto de partida para reunir os seus próprios conteúdos e estrutura. Mas volto ao título, Contramina. Este título cria uma expectativa muito particular: julgo que é também para isso que os títulos se inventam em literatura e em todas as artes que se estruturam em torno do desenrolar do tempo de fruição do espectador (ou se não é, também deveria ser). Um título como este escolhe-se com a consciência de que vai afectar toda a fruição da obra e até mesmo transcendê-la, o que me obriga a ter de reflectir um pouco, nas linhas que se seguem, sobre a função deste dispositivo artístico. Como nesta categoria de obras o título se apresenta inevitavelmente antes do seu corpo, cria-se uma condição prévia que afectará directamente toda a nossa relação com a percepção da sua cronologia interna e da distribuição e natureza dos seus conteúdos, pois essa é uma característica do seu particular modo de compor, organizar e construir os vários níveis de elementos que a conformam. Nas artes plásticas e visuais estáticas, por comparação, o título é só coexistência que, embora se leia ou diga “à parte”, integra também a obra que se vê de uma assentada e que constitui um todo evidente perante nós. Neste caso, acaba por ser um pouco indiferente a altura em que se conhece o título, porque regra geral não é este que começa por nos atrair, mas sim a imagem toda visível. Já na literatura, o título dificilmente se pode livrar de ser um mecanismo para criar expectativa. Se o tempo da obra pictórica só pode ser levemente induzido pelo autor, o tempo da poesia e o da prosa, aproximando-se mais do das artes performativas (música, dança, teatro, cinema), tem a particular riqueza de não ser imposto com o rigor do metrónomo, pois cabe ao leitor construí-lo, vacilando entre o seu tempo efectivo de leitura e o tempo que intui a partir da estrutura da narrativa ou do fluxo do poema. Na nossa relação com a pintura e a fotografia, olhamos a imagem toda de uma vez e, eventualmente, demoramos o olhar num ou noutro pormenor para descobrirmos relações formais e conteúdos subtis, num passeio que, por mais que os autores usem com mestria os truques e malabarismos técnicos próprios destes média, esbarra sempre na impossibilidade de condicionar o aparecimento dos elementos à cronologia sequenciada de um tempo contínuo e mensurável. Neste processo de organização dos tempos de fruição, o título da obra pictórica só acidentalmente cria expectativa sobre o seu conteúdo, porque o conteúdo impõe-se como todo formal antes de conhecermos o título. O título dos livros, dos poemas, dos filmes e das peças musicais, de teatro e de dança não tem, por isso, a mesma exacta função que nas artes visuais estáticas, este título é um dispositivo artístico muito diferente que vem, como um ícone, não só condensar todo o conteúdo da obra e coexistir com ele, como também afectar, anunciar, e em alguns casos trair, o seu porvir. Se me alonguei demais a enunciar alguns princípios básicos sobre a função dos títulos das obras de arte, é porque julgo ser necessário relembrar, de vez em quando, o óbvio, para melhor compreender o alcance do que está diante de mim. O Ruy Ventura escolheu a palavra Contramina para afectar, condensar e anunciar o poema que se estende pelas páginas que ainda não li e obrigou-me a refrear os ânimos ainda antes de iniciar a leitura. O título deste poema demonstra a consciência que o Ruy Ventura tem do poder funcional que aqui constatei, mas leva esses princípios muito mais longe, porque a palavra que escolheu extravasa para fora do poema, escorrendo directamente para o momento histórico que vivemos. Contramina, contudo, é palavra raramente dita e ouvida, que provém das terminologias da arquitectura militar. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define-a assim: “(...) 1 MIL galeria subterrânea construída estrategicamente abaixo de mina inimiga para provocar a sua destruição nas operações de sítio 2 fig. recurso artificioso para desfazer uma intriga, uma trapaça, uma traição 3 fig. traição, perfídia, engano (...)” Sem mais reflexões sobre o assunto, porque são redundantes face a estas definições, parto para a leitura do poema, bem balizado também por um imaginário pessoal que a palavra Contramina suscita na minha mente.

                                           SEGUNDO: DURANTE E APÓS A LEITURA DO POEMA

      Leio o que me parece ser uma fala dita por um personagem chamado João e sou logo detido pelo monumental poder de síntese sugerido nestas poucas frases que tão depressa estabeleceram a autoridade de uma voz singular. De imediato também, intuo que não é João quem fala, João é antes uma presença, alavanca demiúrgica que impulsiona o solilóquio do autor. Constato que este discurso poético se modela a partir das presenças de figuras fantasmáticas que o autor foi descobrindo no decurso da vida e de que se aproximou espiritualmente. Nesse acto o fascínio tornou- se voz, e a voz contributo, na consciência imaginada plena de que ter essa voz é servir humildemente o mistério da continuidade de um propósito maior. Ouçamos as palavras que expressam a presença que no poema primeiro ilumina o autor: “(...) destroços emergem desta língua. outra língua, sem voz, ecoa nos lugares e em vozes dominadas pela perda. raízes que não lhe pertencem mergulham os vestígios na obscuridade. ninguém reconhece (ou quer reconhecer) o ouro enterrado na pronúncia da matéria. afirmam que a nascente é tão só um fio de água, esquecendo (ou querendo esquecer) que existe na transparência uma sucessão de átomos e de minerais que a frescura dissolve e unifica, sem conseguir no entanto esconder a identidade dos seres, estilhaçados pela cegueira do norte ou pelas legiões que tudo aplainam, fora de tempo – como máquinas de arrasto. (...)” As primeiras frases estabelecem desde logo o que chamaria de ‘programa’, passe o pragmatismo do termo, porque a forma que é dada à representação do que se descreve por palavras faz intuir a necessidade imperiosa de um espírito de missão que arroste a ameaça, para manter vivo um testemunho fundamental que se arreiga a tempos remotos. Mas nas páginas seguintes constata-se que, para o fazer, é necessário o recurso contido, e o autor impõe aos seus próprios passos um espaço restrito, acreditando que dessa atitude modesta nascerá a invenção genuína que ascende desse constrangimento, inteligentemente auto imposto, a uma forma de libertação. Esta libertação representa também um escapar ao lugar-comum da livre associação e da arbitrariedade do «não importa o quê» que amarra, ainda hoje, não só as poéticas realistas contemporâneas mas, em igual porção, certa arte de pendor surrealista. À parte estas inúteis guerras dos ‘ismos’, estas (para mim) estranhas formas de tomar partido, conheço suficientemente bem o Ruy Ventura para saber que temos em comum uma irritação indisfarçada com a predominância na arte actual da importância dada à evocação de certos ambientes e à valorização per se das ilusórias qualidades da nostalgia transformada em imagens. Sabemos ambos muito bem o quanto certos autores se prestam a estas facilidades, criando obra ligeira e empática, tanto para os públicos como para os donos de um certo discurso dito especializado que serve propósitos corporativos que nada têm a ver com a arte. Conhecemos também muito bem o espaço que estes autores e agentes da arte ocupam, e sabemos ainda que desejam (e que vão conseguindo) ocupá-lo quase todo, e não me refiro apenas ao pálido caso português porque o fenómeno é global. Feito este breve parêntesis, volto à leitura do poema e, à medida que avanço, reconheço um universo poético que sinto cada vez mais maduro, mais consciente do seu território, o que é visível até na forma como, neste livro, o Ruy Ventura passou a dispor o texto na folha, prescindindo, a meu ver muito bem, da organização em versos. A escrita que leio, na sua economia de recursos estilísticos, na lentidão do seu compasso obstinado e repetitivo, dá conta do espírito que percepciona o torvelinho permanente, caótico, violento e infindável do universo, mas que apesar de tudo abraça com serenidade a tarefa sempre incompleta de enumerar a multiplicidade2 das acções que transformam o mundo e que, paradoxalmente, definem nesses actos transformadores, o que se percepciona ser o seu equilíbrio. Na sua escrita, a invenção do verbo não é (assim o interpreto) a invenção de um mundo, é antes a multiplicidade infinita do mundo a estabelecer-se através do espírito, em palavras, no poema. Contramina aproxima-se de um meticuloso inventário de imagens poéticas que procura documentar todas as acções relevantes para a relação espiritual do poeta com o mundo (quer positiva quer negativamente), todos os entes que as originam ou que por elas são afectados, o como é, o como foi e o que se intui que será, o que disso resultou, resulta ou se intui que resultará, o que são efectivamente as coisas, o que aparentam ser as coisas e o onde permanece o mistério. Há uma noção de labor infinito que se estende conscientemente para além da dimensão do próprio autor. Para ilustrar esta ideia de registo sem fim, de inventariação lenta, paciente e repetitiva, atente-se nos seguintes exemplos de frases declarativas afirmativas, retiradas ao acaso do poema, página após página: «(...)a terra(...)vivifica a entrada do mar pelas entranhas(...)»,p. 11; «(...)o pacto ecoa na palavra(...)», p.12; «(...)o ruído impede a fixação da imagem sobre a terra(...)», p.13; «(...)carne, madeira e minério dissolvem na tinta pigmentos e saudade(...)», p.14; «(...)a casa dissolve a pedra, o lençol, o livro, a legenda e a lembrança(...)», p.15; «(...)a cicatriz permanece apesar do nome(...)», p.16; «(...)o sangue dissolve a cor, o encantamento(...)», p.17; «(...)o incêndio alastra sempre de negro(...)», p.18; «(...)a pedra e a cal reconhecem a secura da pele em ruínas(...)», p.19; «(...)a chuva incendeia o baile(...)», p. 20; «(...)a nave retorna em silêncio ao útero que um dia devorámos(...)», p.21; «(...)guardamos na voz o fogo e o alimento(...)», p.22; «(...)as paredes estreitam o sal e o firmamento, o fermento e a língua sob a ponte(...)», p.23; «(...)a beleza da colina dissolve no sangue as raízes do medo(...)», p.24; «(...)cópula e nascimento dissolvem-se no palimpsesto das células(...)», p.25; «(...)a tristeza contempla o júbilo das palavras(...)», p.26; «(...)a terra divide e reúne palavras sobre a terra(...)», p.27. Podia continuar a construir esta lista, extraindo um só exemplo de cada página, e podia continuar a tarefa de completar este imenso rol revisitando os livros anteriores do autor. O recurso constante a esta construção frásica em que se constata a ocorrência de um facto, que pode ser símbolo, metáfora, ou até, por vezes, facto historicamente identificável, pressupõe por inerência uma entoação neutra e pouco expressiva, o que nos coloca, a meu ver, perante um triunfo artístico raro: a musicalidade da língua embrenha-se subtilmente no sentido da invenção poética e torna-se indestrinçável da sua tessitura simbólica, numa construção cristalina a que poucos podem aspirar, e menos ainda conseguem efectivar. Com efeito, ao enredar-nos neste recurso, que diria ter um equivalente musical na obra de Olivier Messiaen, o autor convida- -nos a vaguear por incomensuráveis trilhos radiculares, onde nos perdemos porque nos deparamos com a simultaneidade de ínfimas e não tão ínfimas transformações a coexistirem na catástrofe e na bonança. Nesse percurso errante, e a cada instante, compete a quem caminha orientar-se à medida que o seu espírito vai intuindo a presença maior de um fluxo primordial em eterna transitoriedade que pode ter por nome «tempo» ou, para os crentes, «Deus». Estes micro ciclos de transformação constituem a matéria de ciclos mais amplos da história do homem que, por sua vez, constituem ainda os gigantescos ciclos das idades da Terra. É sobretudo de tudo isto que fala em consciência a escrita do Ruy Ventura e, pasme-se, sem que seja excluída a dimensão quotidiana. No final do poema, magistralmente composto, essa consciência torna-se épica quando o poeta consegue construir a completude do corpo metafórico deste vórtice universal.
      Quando inicio um novo exercício de escrita sobre arte sou tomado por uma sensação inelutável de vacuidade e prevejo que o resultado das minhas reflexões será parcelar, difuso e inconclusivo. Ao escrever sobre arte recentíssima sinto esse problema agudizar-se ainda mais, porque os tempos não correm de feição para esta actividade, o pouco distanciamento conduz facilmente ao equívoco, e porque sinto pesar a responsabilidade de poder influenciar a percepção das obras sobre as quais reflicto. É importante deixar bem claro que, no tempo que vivemos, o poema Contramina se apresenta como metáfora um pouco secreta, mas poderosa, da esperança na resistência da arte e dos artistas, que é simultaneamente uma esperança no protagonismo do homem e dos valores humanos. As obras pululam hoje com vivacidade efémera e tudo parece habitar a mesma escuma superficial que barra a emergência da grande arte. No exercício esporádico desta minha tarefa, raramente me cruzei com obras que incisam a marca indelével da completude e que fazem empalidecer, ainda mais, a minha própria escrita. Contramina é, sem dúvida, uma dessas obras.

Lisboa, abril/maio de 2013