MIGUEL REAL
O ELOGIO DO SUICÍDIO
1.Conceptualmente, a eutanásia não é senão o suicídio de alguém que a não pode praticar, a morte de alguém cujo corpo não cumpre as suas funções naturais e degrada a vida do seu portador. Do mesmo modo, o suicí- dio põe fim a uma mente (um cérebro) que já não cumpre as suas funções naturais, lançando o seu portador num conflito intenso de permanente desespero.
2.O suicídio deve ser entendido não apenas como a autodestruição da vida, que também é, mas também como finalização de uma vida em si já autodestruída, que, nas suas ruínas existenciais e psicológicas, não encontra sentido para a vida, nem mesmo o da simples sobrevivência física, considerando esta algo de penoso e atormentador., uma tortura permanente
3.Para além dos aspectos circunstanciais (perturbações familiares, traumas infantis, desejos não realizados), o suicídio reside, deste modo, na destruição física de uma mente em si já psiquicamente destruída que não encontra na sobrevivência um sentido para a vida, nem mesmo a da simples integração passiva nas instituições sociais permanentes, como a família, a escola, a igreja, o trabalho.
4.Desestruturada a consciência ou mente, o suicida é assim crivado por uma total falta de vontade de viver face aos obstáculos existenciais considerados intransponíveis, intoleráveis e insuportáveis que a sobrevivência lhe coloca.
5.A origem do acto suicida tem certamente múltiplas razões circunstanciais, mas todas elas evidenciam uma absoluta falta de vontade de viver, ou, dito de outro modo, do complexo de desejos individuais que garante a continuidade das relações sociais, exprimindo uma percepção de impotência individual e de insignificância social identificadas com uma plena ausência de sentido para a vida. Todas as situações conducentes ao acto suicida sur- gem, à mente desestruturada e destruída do suicida, como absolutamente insuperáveis, nulificando os objectivos normais da existência humana: uma doença grave incurável, uma falência económica, uma questão de honra social, que cobre o suicida de vergonha individual, a perda de um ente querido. Estas situações circunstanciais conduzem a uma violenta ruptura nas relações sociais do suicida, impossível de serem restabelecidas senão sob o signo do opróbrio, da indignidade, da humilhação, da abjecção, da vergonha. A solução para esta situação sem solução é apartida definitiva – o suicídio.
6.O suicídio nasce, assim, da constatação da ausência de sentido de futuro para a vida, qualquer sentido, pro- vocado por uma ruptura radical nas relações sociais e nas expectativas individuais do suicida.
7.Deste modo, o suicídio não consiste apenas na morte de um corpo, mas, sobretudo, na destruição derradeira de uma mente ou consciência em si já destruída. O acto suicida reside na morte de uma mente já destruída, desestruturada, que não encontra sentido futurante de vida.
8.Por isso, o suicídio distingue-se por uma evidente e grandiosa coragem física relativamente aos derradeiros momentos do corpo - atirar-se de uma ponte, fazer explodir granadas presas no peito, lançar-se de uma janela, ingerir veneno para ratos... A coragem física de que o suicida dá prova tem como significado, não uma coragem racional face ao obstáculo a enfrentar, mas um profundo desprezo pelo corpo natural decorrente da profunda insig- nificância atribuída à mente ou consciência em função da sua desestruturação. Intentando finalizar com a mente ou consciência, que o tortura, que considera já destruída, o suicida não tem outra possibilidade senão o de também destruir o corpo, suicidando-se.
9.Em Durkheim e Freud, encontra-se um processo semelhante de justificação teórica do suicídio, o primeiro segundo uma vertente mais social com a sua tripla classificação do suicídio (egoísta, altruísta e anómico), o segundo numa vertente mais psíquica, através do predomínio do instinto de destruição, Thanatos, face ao instinto de vida, Eros.
10.Ambos os autores justificam o suicídio pela existência de forças subterrâneas: ora forças coactivas de natu- reza social, desestruturadoras da estabilidade económica, social, moral; ora psíquicas, individuais: traumas infantis, perda de confiança nos outros desde a tenra infância, desestruturação da personalidade, indutora de depressões contínuas; forças que a consciência não consegue controlar, nadificando a existência, conduzindo ao suicídio.
11.Porventura, a melhor definição de suicídio será a da derradeira destruição do corpo como modo de pôr fim a uma mente já definitivamente destruída. Neste sentido, o suicídio apresenta-se como uma solução ou uma saída para uma situação existencial mentalmente sem saída.
12.Neste sentido, o suicídio deve ser descriminalizado e despenalizado em todo o mundo e considerado uma solução de grande coragem física, alimentada esta por uma situação existencial e mental já mentalmente destrutiva e, neste sentido, igualmente de grande dignidade moral, como se o suicida confessasse pelo seu acto que a única possibilidade de ultrapassar tal situação seria a confissão pessoal da sua incapacidade em superá-la. O obstáculo frontal é considerado monstruoso face às forças e às capacidades do suicida, e este decide-se pela morte.
13.Se, como popularmente se diz, o suicídio a nada leva, a verdade é que o suicida já se considera um nada mental, o sentimento do nada já se encontra amplificado e absolutizado na sua mente.
14.Existe, com efeito, no estudo do suicídio uma inversão de análise. No estudo do suicídio existe, na medicina, sobretudo na psiquiatria, uma inversão. A psiquiatria considera o suicídio como um acto de auto-destruição. Ora, o suicídio, se é um acto de auto-destruição do corpo, é no entanto cometido para fugir e para findar com o acto já existente de auto-destruição da mente ou da consciência. A auto-destruição do corpo é consequência do sentimento já existente de destruição da mente. Não o inverso.
15.É neste sentido que ganha eco a proposta de Freud de que todo o suicídio é também um acto de assassínio do outro, isto é, do protagonista da situação psíquica considerada insuportável e intolerável, desestrutura- dora da consciência. Neste sentido, o suicida intenta, também, castigar, não o mundo pelo seu acto, mas o ou os protagonistas da criação da situação desestruturadora da mente, considerada de impossível superação.
16.A razão individual, a consciência ou mente, encontra-se bloqueada, sem argumentos possíveis de desblo- queamento da situação, a razão procura-os e não os encontra, sendo então acometida pelo sentimento de desespero, isto é, toma consciência da ausência de alternativas para a situação existencial vivida e, vazia e desesperante, auto-destrói-se, destruindo a situação.
17.O próprio suicídio por razões filosóficas ou religiosas obedece a este argumento, já que amplia a situação intolerável e insuportável a um patamar universal, considerando a própria vida e a existência como absurdas, não dotadas de sentido que justifiquem as atribulações necessárias para o prolongamento da vida.
18.Hoje, princípios do século XXI, o suicídio continua a não ser aceite como uma morte honrosa, dotada de elevada dignidade, de coragem de destruição do corpo, após a constatação da destruição involuntária da mente, estatuindo-se como efeito de debilidade psíquica ou fraqueza da vontade.
19.Não o é, ou, se o é, é também prova de uma fortíssima acção corajosa motivada, mais do que por um sen- timento de desespero, por uma consciência nulificante, vazia, incapaz de estabelecer um novo sentido para a vida face a uma situação desestruturada, considerada insuportável e intolerável.
20.É um dos actos de maior coragem, já que contraria todas as pulsões biológicas (o Eros de Freud, os meca- nismo inatos desencadeadores de comportamento de Lorenz) que exigem o prolongamento máximo da vida.
21.O suicídio é, assim, o desfecho derradeiro de uma consciência que não encontra nem saída nem solução no mundo. E recusa este, não se resignando a aceitá-lo tal como ele se lhe apresenta.