Jerónimo Pizarro – Machado e Pessoa: a procura de uma nova objetividade

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO2

JERÓNIMO PIZARRO

Bogotá, Colombia, 1977.

Machado e Pessoa: a procura de uma nova objetividade

La objetividad –léase pretensión a lo objetivo…
Abel Martín

Numa carta publicada em La Gaceta Literaria, n.º 34, de 15 Maio de 1928, Antonio Machado refere-se a um terceiro poeta apócrifo que tem entre mãos, chamado Pedro de Zúñiga (n. 1900), e a um desígnio estético que teria orientado a sua produção escrita, denominado “nova objectividade”. Nessa carta, lê-se:

Entre manos tengo mi tercer poeta apócrifo: Pedro de Zúñiga […] Abel Martín y Juan de Mairena son dos poetas del siglo XIX que no existieron, pero debieron existir, y hubieran existido si la lírica española hubiera vivido su tiempo. Como nuestra misión es hacer posible el surgimiento de un nuevo poeta, hemos de crearle una tradición de donde arranque y él pueda continuar. Además, esa nueva objetividad a que hoy se endereza el arte, y que yo persigo hace veinte años, no puede consistir en la lírica – ahora lo veo muy claro –, sino en la creación de nuevos poetas – no nuevas poesías –, que canten por sí mismos.

(MACHADO, Poesía y Prosa, 1989: III, 1759)

É precisamente em torno dessa alegada “nova objectividade”, que também interessou Pessoa – se pensarmos, por exemplo, nos seus artigos sobre a “Nova poesia portuguesa” (1912), no ciclo de poemas d’“O guardador de rebanhos” e em muitos textos de António Mora, o “continuador philosophico” do paganismo,1 em que esta figura descreve a objectividade do mundo antigo redescoberta por Alberto Caeiro –, é em torno dessa “nova objectividade”, dizia, que pretendo reunir algumas notas e desenvolver algumas reflexões.

* * *

A primeira observação seria: Machado cria os seus precursores, enquanto Pessoa cria os seus contemporâneos. Note-se que Machado localiza os seus dois complementarios no século XIX, já que Abel Martín teria nascido em Sevilla em 1840 e morrido em Madrid em 1898, enquanto Juan de Mairena teria surgido em 1865, também em Sevilla, e teria desaparecido em 1909, em Tapia de Casariego, Asturias. Isto quer dizer que os dois complementarios de Machado (porque Pedro de Zúñiga, o terceiro, não chegou a materializar-se) pertencem ao século XIX, ou seja, a um século em que a poesia espanhola brilhou menos, se a enquadrarmos, como é justo, entre o século de ouro e o século XX. Quando Machado publica Campos de Castilla (1912), Martín e Mairena já não o acompanham. Quais as razões para que tal aconteça e como compreender o paradoxo de Machado ter esboçado entre 1923 e 1925 duas figuras que, segundo os dados biográficos por si inventados, morreram em 1898 e 1909, respectivamente? Creio que é possível que Machado, tendo estado ligado à Generación del 98, tenha tentado estabelecer uma dívida literária e filosófica para com o século XIX e que, para esse efeito, tenha criado uma tradição imaginária que o engrandecesse e elevasse. Assim, no volume Los complementarios figuram duas listas ficcionais e muito conhecidas: uma, de cinco ensaístas do século XIX; outra, de seis filósofos espanhóis do século XIX. Se a minha conjectura for exacta, – que Machado desejou preencher um século XIX espanhol algo desprovido de grandes poetas e filósofos inventando Martín e Mairena –, ainda faltaria examinar melhor os motivos pelos quais um homem de quase cinquenta anos inventa duas figuras imaginarias que morrem, respectivamente, com 48 e 44 anos. Não desejava que tivessem uma vida mais longa que a sua? É possível. Seja como for, isto permite, a modo de contextualização, contrastar o que fez Machado com o que fizera Pessoa, após o aparecimento de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos num “dia triunfal”de Março de 1914. Lembro o célebre relato desse dia, em carta de 13 de Janeiro de 1935 ao poeta e crítico Adolfo Casais Monteiro, que então vivia no Porto:

[…a] 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma commoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa especie de extase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triumphal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um titulo, ”O2 Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o apparecimento de alguem em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da phrase: apparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação immediata que tive.

(PESSOA, Escritos sobre Génio e Loucura, 2006: I, 461)3

Disse relato, mas poderia ter dito ficcionalização. Machado e Pessoa criaram retroactivamente os seus complementarios e precursores, algo que não nos deve espantar, se pensarmos que até as assinaturas são um acto deliberadamente anacrónico e fatalmente retroactivo, como reitera Derrida,4 e que o passado é uma invenção activa do presente. Em ambos os casos, surgiram primeiramente algumas figuras inominadas e ainda pouco definidas, e só depois, através da escrita, esses esboços foram ganhando forma. Foi por meio da escrita que Machado “descobriu” e forjou Martín e Mairena, do mesmo modo que foi através da escrita que Pessoa “encontrou” e talhou Caeiro, Reis e Campos, embora na carta de 1935 toda a criação artística nos seja descrita como um golpe de inspiração. Isto deve ser esclarecido. Mas o que realmente gostaria de salientar é que, quando Machado e Pessoa imaginam retroactivamente uma biografia para figuras que acabaram por não se desvanecer e por se afirmarem no panorama literário, um deles localiza essas figuras no século XIX e o outro no século XX, como acima observei. Isto parece-me importante, porque talvez sugira que ambos os escritores, através da apocrifia e da heteronímia, ocultam ou “desviam” certas influências, e preenchem um vazio real ou imaginado. Lembro uma passagem de um prefácio que Pessoa projectou para as obras heterónimas, por volta de 1918, em que o escritor propõe e justifica a necessidade de criar uma tradição:

Com uma tal falta de litteratura, como ha hoje, que pode um homem de genio fazer senão converter-se, elle só, em uma litteratura? Com uma tal falta de gente coexistivel, como ha hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer, senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espirito?

(20-72r; Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, 1966: 98-99)5

Na verdade, eu não sei se esta explicação se ajusta bem aos factos. Os heterónimos – embora ainda não totalmente definidos – surgiram antes da geração do Orpheu, ou do primeiro modernismo português, enquanto os complementarios entraram em cena antes da Generación del 27. Poderia isso ser considerado como ausência de contexto literário? Não poderíamos imaginar o oposto, que um “excesso de literatura” tenha levado à multiplicação? As duas explicações são plausíveis. Em Portugal havia essa “falta de literatura”, mas também muitas promessas (se pensarmos no início do século XX), enquanto que em Espanha essa “falta” só poderia remeter para o século XIX, visto que o início do século XX viu despontar o esperpento de Valle-Inclán e os poetas do 27.6

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(20-72r; pormenor; cf. “na minha visão ou audição interior”, frase que se encontra no excerto citado na nota de rodapé n.° 1)

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ANTONIO MACHADO

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FERNANDO PESSOA

Gostaria agora de centrar a atenção na questão da “nova objectividade”. Machado propusera-se atingir, através dos seus apócrifos ou complementarios, essa “nova objectividade”. Aquilo que, de um ou outro modo, também procuraram Kierkegaard, Yeats, Pirandello, Larbaud, Pound e Pessoa, entre outros,7 através das suas diferentes máscaras e personagens dramáticas. O que é necessário sublinhar, é que esse renovado desígnio, como Machado frisa, “no puede consistir en la lírica – ahora lo veo muy claro –, sino en la creación de nuevos poetas – no nuevas poesías –, que canten por sí mismos” (Machado, Poesía y Prosa, 1989: III, 1759). Contra o “solipsismo lírico del mil ochocientos”, contra o “culto del yo” e a “pura intimidad de sujeto individual”,8 Machado sugeria o retorno à objectividade e à comunicação fraterna. A finalidade não era, e talvez não pudesse ser, a de abandonar a lírica, definida, por Machado, como a “expresión en palabras de lo subjetivo individual” (Machado, Poesía y Prosa, 1989: III, 1782), mas a de redimensionar a lírica, a de a tornar menos monocórdica.

Este foi também o entendimento de Pessoa. Assim, num texto tardio (c. 1931) em que descreve os quatro graus da poesia lírica, o poeta propõe as seguintes distinções:

O primeiro grau da poesia lyrica é aquelle em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, fôr uma creatura de sentimentos variaveis e varios, exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas sòmente pelo temperamento e o estylo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma creatura de sentimentos varios e ficticios, mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela intelligencia que pela emoção. Este poeta exprimir-se-ha como uma multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estylo, pois que o temperamento está substituido pela imaginação, e o sentimento pela intelligencia, mas tamsòmente pelo simples estylo. Outro passo, na mesma escala de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus estados mentaes varios se integra de tal modo nelle que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo analyticamente esse estado de alma, faz d’elle como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estylo tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja varios poetas, um poeta dramatico escrevendo em poesia lyrica.

(16-61r; PESSOA, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, 1966: 106-107)9

Naturalmente, Pessoa esboçou esta gradação para sugerir que ele próprio representava o grau superior do poeta lírico: aquele em que o poeta lírico deixa de ser um poeta lírico e se torna um poeta dramático que escreve poesia lírica, após ter trilhado a senda de uma maior despersonalização que revelasse e inaugurasse novas possibilidades estéticas. De facto, na página seguinte do dactiloscrito, Pessoa cita um poema de Caeiro, como exemplo dessa despersonalização ulterior e mais profunda:

[…] escrevi com sobresalto e repugnancia o poema oitavo do Guardador de Rebanhos com a sua blasphemia infantil e o seu anti-espiritualismo absoluto. Na minha pessoa propria, e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da blasphemia, nem sou anti-espiritualista. Alberto Caeiro porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois elle que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como elle ou não.

(16-62r; PESSOA, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, 1966: 108)

Neste caso extremo, a lírica e o drama, de facto, irmanam-se. Caeiro não é só um predecessor de Abel Martín, pelos seus poemas aparentemente simples e claros, mas também alguém que não escreve como Pessoa, nem pensa como ele, embora seja criação sua e até, paradoxalmente, o seu mestre. Martín e Mairena, pelo contrário, mesmo mantendo as distâncias entre Machado e Pessoa, e não negando a singularidade de cada complementario, são figuras de sonho que não são substancialmente diferentes de Machado e que, mais do que contradizê-lo, o complementam.

Ora, se nos cingíssemos à gradação pessoana, em que grau da escala poética, figuraria Machado? Talvez dois degraus abaixo do seu, como exemplo de um poeta que se expressa “como uma multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estylo, pois que o temperamento está substituido pela imaginação, e o sentimento pela intelligencia, mas tamsòmente pelo simples estylo”. Mas tanto Machado como Pessoa procuraram uma nova objectividade e na gradação de Abel Martín – porque também há uma gradação paralela; vejam-se, a este respeito, as referências a um tratado que se intitularia Las cinco formas de la objetividad, no Cancionero apócrifo – na gradação martiniana, dizia, Machado localizar-se-ia no patamar mais alto da objectividade: “en las fronteras del sujeto mismo”, no qual através da “sed metafísica de lo esencialmente otro” se obteria o conhecimento.10 Terão Machado e Pessoa procurado “objectividades” diferentes? Teriam um entendimento diferente deste conceito? Penso que não, penso que simplesmente procuraram atingir fins diferentes – o complementar versus o heterogéneo – através da mesma procura de uma nova objectividade.

* * *

Este ponto permite-me passar a uma terceira e última observação.

Insiste-se muito, entre a crítica, nos aspectos que diferenciariam Machado de Pessoa; e muito pouco nas suas “afinidades electivas”, para o dizer com Goethe. Em 1992, José Augusto Seabra somava-se a um longo elenco de vozes críticas e, no afã de destrinçar a “concepção” apócrifa, da “gestação” heterónima, concluía:

Se quiséssemos sintetizar o que separa as Ficções do Interlúdio pessoanas do machadiano Cancionero Apócrifo, talvez pudéssemos recorrer à observação do poeta dos heterónimos: “Aí cada personagem é criada integralmente diferente, e não apenas diferentemente pensada”.11

Pouco antes, Georges Güntert havia encerrado um artigo afirmando que os apócrifos de Machado pertenciam à história da obra machadiana, enquanto que os heterónimos de Pessoa à génese da obra pessoana. Uns seriam menos “carnais” do que os outros. Para Güntert, “contrariamente ao que acontece em Pessoa, não há, em Machado, perda de contacto entre o eu extra-textual e o eu lírico”.12

Parece-me que é Jorge Wiesse quem sugere uma proposição mais moderada e pertinente:

Creo que lo que vincula a ambos creadores en un nivel superior no es la creación de heterónimos o de apócrifos, sino algo anterior a esta creación: un contenido que busca expresarse mediante la creación de heterónimos o de apócrifos. Y en este sentido, quizás el Abel Martín y el Juan de Mairena machadianos se parezcan no tanto a Caeiro, Reis y de Campos – los heterónimos “ortodoxos” – sino al “cuasi heterónimo” pessoano Bernardo Soares, autor del Libro del desasosiego”.

(WIESSE, 2010: 288)

De facto, Martín e Mairena assemelham-se a Teive e Soares, os seus contemporâneos, dois “semi-heterónimos” (embora o termo abranja, em propriedade, apenas Soares) que Pessoa criou em finais da década de 1920, quando Campos começava a esboçar as «Notas para a recordação do meu mestre Caeiro», textos que partilham o espírito da semi-heteronímia sob o qual Pessoa compôs Erostratus e outros textos em prosa nos seus últimos sete ou oito anos de vida. Quando Pessoa começa a escrever mais e mais com uma prosa de egual tenor que a sua,13 embora atribuída a outras personagens, Pessoa vai ao encontro, por assim dizer, do Machado dos apócrifos, e começa a “descer” alguns degraus na escala poética que determinaria o grau de afastamento à poesia lírica.

Neste sentido, talvez o mais interessante não seja discutir o grau de objectividade de Machado e de Pessoa, ou o seu respectivo afastamento da lírica (embora tal seja igualmente possível), mas constatar que ambos partilharam uma “pretensão ao objectivo” através da “criação de novos poetas”, e que ambos pertenceram a uma geração para a qual a lírica se havia transformado num problema, após a exagerada exaltação do eu-lírico durante o período romântico. Acerca dessa crise da lírica, tanto Machado, como Pessoa, escreveram abundantemente. Numa auto-entrevista, escrita numa linguagem próxima da que viria a caracterizar Campos na década de 1920, e que irritou Teixeira de Pascoaes, Pessoa responde à seguinte pergunta:

–Continuará sendo o lyrismo a nossa feição litteraria predominante?
–Ha duas feições litterarias – a epica e a dramatica. O lyrismo é a incapacidade commovida de ter qualquer d’ellas. O que é ser lyrico? É cantar as emoções que se teem. Ora cantar as emoções que se teem faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não teem. Sentir profundamente o que se não sente é a flamula de almirante da inspiração. O poeta dramatico faz isto directamente; o poeta epico fal-o indirectamente, sentindo o conjuncto da obra mais que as partes d’ella, isto é, sentindo exactamente aquelle elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e porisso impessoal. Fomos esboçadamente epicos. Seremos inviolavelmente dramaticos. Fomos lyricos quando não fomos nada. O lyrismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.

(Revista Portuguesa, n.º 23-24, Lisboa, 13 de Outubro de 1923)14

Num diálogo entre Juan de Mairena e Jorge Meneses, Antonio Machado abordara também a crise da lírica. Nesse contexto, Mairena preguntava ao inventor da Máquina de trovar:

Mairena – Sí, lo comprendo. Pero usted ¿no cree en una posible lírica intelectual?
Meneses – Me parece tan absurda como una geometría sentimental o un álgebra emotiva. Tal vez sea ésta la hazaña de los epígonos del simbolismo francés. […]

(Talvez Meneses pensasse em Paul Valéry ou em Jorge Guillén.)

Mairena – ¿Qué hacer, Meneses?
Meneses – ¿Qué hacer, Meneses? | Meneses – Esperar a los nuevos valores. Entretanto, como pasatiempo, simple juguete, yo pongo en marcha mi aristón poético o máquina de trovar.

(Poesias completas, 2006: 357)

Note-se que este colóquio ou “discussão em familia”,15 com ressonâncias pessoanas, sugere que não se pode reagir contra o romaticismo intelectualizando a emoção romântica, algo de que se poderia “culpabilizar” a poesia ortónima e a muita poesia modernista. Meneses, invenção de Mairena, propõe uma solução passageira, uma máquina; Mairena, o seu inventor, guarda silêncio, mas colocará à prova essa máquina. O que teriam dito Pessoa & Cª heterónima? Não foi Caeiro, até certo ponto, uma máquina de trovar descoberta por Pessoa, o seu inventor? E não são as prosas tardias de Machado e Pessoa, isto é, as de Juan de Mairena e de Álvaro de Campos em recordação de Abel Martín e de Alberto Caeiro, as que mais aproximam Machado e Pessoa, as que melhor ilustram a objectivação do subjectivo ambicionada por ambos os escritores?

* * *

Pessoalmente, tenho essa opinião. Penso que Machado e Pessoa, usualmente identificados como poetas, assemelham- se especialmente na proximidade das suas prosas tardias, nas quais apocrifia e semi-heteronímia dialogam, onde a “nova objectividade” leva à criação madura de outras personagens, numa espécie de “congresso” que não é necessariamente anti-lírico, e nas quais uma série de dualidades, tais como singularidade e pluralidade (Lourenço, 1995), mesmidade e alteridade (Borges, 2011), se resolvem. É também justo lembrar que estas prosas tardias evocam algumas outras que as precedem, mas que só se publicaram na íntegra por volta da mesma época: estou a pensar n’A Correspondência de Fradique Mendes (1900), de Eça de Queirós, que foi complementada pela edição das Cartas ineditas de Fradique Mendes (1929). Finalmente, as “Memórias e notas” de Eça (que abrem a Correspondência do “semi-heterónimo” de Eça), e as “Notas para a recordação…” de Campos,16 mas também os fragmentos de Teive, os trechos de Soares e os apontamentos de Mairena, e mesmo os pensamentos aforísticos de Martín, estão unidos pelo fio de uma atmosfera evocativa, pelo polimento de uma prosa esplêndida, pela profundeza das próprias ideias expressas. As prosas de Machado e Pessoa, ancoradas numa revolução iniciada por Eça, quando este abandona a sua vertente mais realista e acaba de configurar um “velho amigo”, o Fradique Mendes, constituem hoje um modelo estético e representam a materialização das obras paralelas de dois grandes “espíritos contemporâneos”.17

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(135A-71v; recorte do jornal O Diabo, talvez de Novembro de 1934, conservado por Fernando Pessoa nas suas arcas)

BIBLIOGRAFIA

(Agradeço a José Blanco que me forneceu uma lista de entradas bibliográficas referentes a Pessoa e Machado; cito o consultado e o citado).

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NOTAS

1 Cf. “Este Alberto Caeiro teve dois discipulos e um continuador philosophico. Os dois discipulos, Ricardo Reis e Alvaro de Campos, seguiram caminhos differentes […] O continuador philosophico, Antonio Móra (os nomes são tão inevitaveis, tão impostos de fóra como as personalidades), tem um ou dois livros a escrever, onde provará completamente a verdade, metaphysica e practica, do paganismo. Um segundo philosopho, desta eschola pagan, cujo nome, porém, ainda não appareceu na minha visão ou audição interior, dará uma defeza do paganismo baseada, inteiramente, em outros argumentos”, cota 20-71r; Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966: 97). O segundo filósofo não terá aparecido nessa visão que Pessoa descreve como “interior”, dando-lhe laivos de misticismo.

2 A máquina de escrever utilizada por Pessoa só teria (o usó estaria a funcionar com) aspas de fecho; este é um pormenor que pode ser interessante no confronto de documentos dactilografados em 1935.

3 Não indico a cota, já que os documentos da caixa 10 do espólio de Adolfo Casais Monteiro carecem deste tipo de referência.

4 Veja-se o texto uma conferência, “Signature, événement, contexte” (1971), que Derrida incluiu em Marges de la philosophie (1972), inserindo a imagen da sua assinatura.

5 Este texto e outros afins foram recentemente publicados nos apêndices da primeira edição crítica do Livro do Desasocego (2010).

6 Algo do tom propagandístico e do tom de provocação de «mandato de despejo» (assim começa o “Ultimatum” de 1917) faz com que seja difícil concordar com esse parecer de “falta de literatura”.

7 Em Fernando Pessoa & Cª Heterónima, Jorge de Sena também menciona os nomes de Rilke, autor de Os Cadernos de Malte Laurids Brigge [Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge], e de Kavafis, que cedeu a voz a diversas personagens da Antiguidade. Para Sena, Rilke, Kavafis, Machado, Pessoa e outros, “procuraram escapar-se ao individualismo romântico, pela projecção ‘externa’ da arte” ([1982] 2000: 155-156). A estes, poderiam acrescentar-se também os nomes de Nietzsche e de Valéry, se evocarmos Zaratustra e Monsieur Teste.

8 Estas citações provêm do “Proyecto de un discurso de ingreso en la Academia de la Lengua” (Machado, Poesía y Prosa, 1989: III, 1785 e 1789).

9 Este texto tardio foi publicado inicialmente por Maria Aliete Galhoz, em Obra Poética (1960). Está incluído na edição crítica do Livro do Desasocego (2010).

10 A partir da edição de Poesías completas de 1928, o texto “Cancionero apócrifo. Abel Martín”, que Machado publicou na Revista de Occidente, vol. XII, n.° 35-36, 1926, passou a integrar o volumen das Poesías com o título De un cancionero apócrifo. Cf. António Machado, Poesías completas (2006: 322-343).

11 Texto de uma conferência (Paris, 1992), publicado no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa, 15 de Junho, 1993) e incluído no livro O Coração do Texto (1996: 96).

12 Cf. “Contrairement à ce qui se passe chez Pessoa, il n’y a pas, chez Machado, perte de contact entre le moi extra-textuel et le moi lyrique” (Güntert, 1985: 49).

13 Cf. “Ha accidentes no meu distinguir uns de outros que pesam como grandes fardos no meu discernimento espiritual. Distinguir tal composição musicante de Bernardo Soares de uma composição de egual theor que é a minha…” (16-59r; Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto- Interpretação, 1966: 104).

14 Esta entrevista encontra-se publicada em Ultimatum e Páginas de Sociologia Política (1980), em Crítica: ensaios, artigos e entrevistas (2004) e em Sebastianismo e Quinto Império (2011), edição que consultei. Numa entrevista, Álvaro Bordalo cito a Pascoaes a definição pessoana de lirismo (“O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas”) e perguntou a seguir: Que lhe parece? Pascoaes respondeu: “Que não é nada disso. Ser lírico é ser poeta dentro das leis eternas da harmonia. Basta irmos à origem da palavra: vem de ‘lira’, instrumento de música. E sem música não há poesia, não só lírica, mas também épica, dramática e satírica, pois a epopeia, o drama e a sátira, são formas do lirismo essencial […] Fernando Pessoa não foi poeta, porque foi dotado dum raciocínio matemático.” (Pascoaes, 1950: 3).

15 Veja-se um texto publicado em fac-símile por Teresa Rita Lopes em Pessoa por Conhecer (1990, II: 390).

16 Veja-sea tese de Jorge Uribe (2007), “Notas, memorias y notas: Eça de Queirós, precursor de Fernando Pessoa”.

17 Aludo ao título de um livro de Antonio Sáez Delgado, citado na bibliografia.