ISABEL ARAÚJO BRANCO
Barrocos tropicais e transibéricos:
Alejo Carpentier e José Eduardo Agualusa
A palavra «barroco» tem origem no termo português seiscentista utilizado para designar uma pérola de forma irregular. Severo Sarduy sustenta que, mais tarde, a palavra perdeu o sentido de objecto em bruto e irregular, para passar a significar o que é «elaborado, minucioso»1. Aguiar e Silva adianta que, num largo movimento de interesse e revalorização do barroco, na primeira metade do século xx, muitos poetas identificaram em si «um parentesco espiritual e sentimental com a arte e a poesia barrocas»2, sendo que, em muitos casos, foram eles os próprios precursores de estudos críticos sobre o barroco. Do seio destes trabalhos, surge a discussão se o barroco é um «fenómeno historicamente situado e condicionado» ou «uma “constante” da cultura e, sobretudo, dos estilos artísticos» constituindo «um fenómeno essencialmente meta-histórico»3. Eugénio d’Ors, Severo Sarduy e Alejo Carpentier situam-se no segundo campo.
D’Ors sustenta que o barroco atravessa várias épocas históricas e várias regiões. Em Lo Barroco (1944), apresenta quatro características do género: é uma constante histórica que se manifesta em épocas distantes entre si; diz respeito à arte e a toda a sociedade; tem um carácter normal; e não procede do estilo clássico, antes opondo-se a ele. D’Ors sustenta que existem unidades que se mantêm no tempo, que reúnem pessoas, obras e acontecimentos dissociados cronologicamente. Apesar da sua pluralidade uniforme, há uma estabilidade e uma invariabilidade relativa. O barroco não é o retorno do passado; é o renascer de uma mesma inspiração através de formas novas, sem que haja actos de cópia. É vitalismo, é tradução da natureza, é mudança e fluir.
Em 1974, Severo Sarduy publica em Paris a obra crítica Barroco, em que também defende a presença do estilo em todas as épocas, para dizer que:
ser barroco hoje significa ameaçar, julgar e parodiar a economia burguesa, baseada numa administração avarenta dos bens; ameaçá-la, julgá-la e parodiá-la no seu próprio centro e fundamento: o espaço dos signos, a linguagem, suporte simbólico da sociedade e garantia do seu funcionamento através da comunicação. Delapidar da língua, unicamente em função do prazer [...]: atentado a esse bom senso moralista e natural [...] no qual se funda toda a ideologia do consumo e da acumulação4.
O barroco assume, assim, uma função fortemente política, visando fins específicos e estando bem enquadrada na sociedade. A ideia é subverter «a suposta ordem normal das coisas»5, como a elipse faz em relação ao círculo. Sarduy escreve que tanto o barroco europeu como o primeiro barroco latino-americano apresentam «imagens de um universo móvel e descentrado, mas ainda harmónico»6. Contudo, o neobarroco já reflecte uma discordância: «a ruptura da homogeneidade, a ausência de um Logos absoluto»7.
Assumindo o barroco não como uma época, mas como uma espécie de devir no tempo, diversos autores latino‑ -americanos do século xx adoptam o estilo para exprimir o que consideram ser a predisposição barroca do subcontinente. José Lezama Lima defende que era inevitável o barroco vingar e desenvolver-se na América porque existiam condições para isso, porque esse espaço «esperaba una manera de fecundación vegetativa, donde encontramos su delicadeza aliada a la extensión, esperaba que la gracia le aportase una temperatura adecuada, para la recepción de los corpúsculos generatrices»8.
Afirma Alejo Carpentier: Nuestro arte fue siempre barroco […]. No temamos, pues, el barroquismo en el estilo, en la visión de los contextos, en la visión de la figura humana enlazada por las enredaderas del verbo y de lo ctónico, metida en el increíble concierto angélico de cierta capilla (blanco, oro, vegetación, revesados, contrapuntos inauditos, derrota de lo pitagórico) que puede verse en Puebla de México, o de un desconcertante, enigmático árbol de la vida, florecido de imágenes y de símbolos, en Oaxaca. No temamos el barroquismo, arte nuestro, nacido de árboles, de leños, de retablos y altares, de tallas decadentes y retratos caligráficos y hasta neoclasicismos tardíos; barroquismo creado por la necesidad de nombrar las cosas, aunque con ello nos alejemos de las técnicas en boga: las del nouveau roman francés, por ejemplo […]. El legítimo estilo del novelista latinoamericano actual es el barroco9.
O autor cubano defende, portanto, que a arte latino-americana é barroca por definição: sempre o foi e as provas estão à vista de todos, em primeiro lugar na própria natureza local e na forma de a nomear, tarefa complexa e singular. Não é por acaso que a América é, por excelência, a terra do barroco. Isso acontece porque «toda simbiosis, todo mestizaje engedra un barroquismo»10. O «barroquismo americano» cresce com o sentido do crioulo, a consciência do homem americano, de ser algo diferente ao ponto de o espírito crioulo ser por si só um espírito barroco. Ao mesmo tempo, há uma necessidade de optar pelo estilo porque «la descripción de um mundo barroco ha de ser necesariamente barroca»11. A América Latina provoca, por conseguinte, um «barroquismo espontâneo». Para o autor cubano, este barroco é um estilo político, projectado para a frente, em direcção ao futuro, habituado a estar em expansão nos momentos culminantes das civilizações «o cuando va a nacer um orden nuevo en la sociedad»12.
O neobarroco está presente na generalidade da obra de Carpentier, em particular em Concierto barroco, de 1974. Nesta novela polissémica, a literatura e a música ocupam papéis fundamentais. O tempo não corresponde a uma linha única e as culturas europeias e americanas cruzam-se nos dois continentes. Antes de passarmos a esta novela, falemos sobre o conceito de «barroco tropical», criado pelo poeta moçambicano Virgílio de Lemos para caracterizar a literatura produzida na África Lusófona nas últimas décadas. No ensaio «Barroco estético ou 7 enunciados e 4 variantes», Lemos enuncia onze proposições:
O barroco estético é uma forma de ‘transe’, uma forma de abstração livre, a preto e branco, estímulo para o imaginário (não confundir transe com ascese)”. […] O barroco estético sendo transe é uma forma do desejo – sexo que vibra com a vida – e se torna alavanca, exercício de libertação da palavra. […]
O barroco estético, sendo esse transe – o que não é bem nirvana nem ascese –, é um viajar numa teia fluida do logos, flexível e simultaneamente, o prazer de reinventar e de criar. […] O barroco estético é talvez o lado contrário da exuberância maximalista, o que não exclui a força de contenção do erotismo. […]
O barroco estético é, neste caso, a resistência a qualquer forma de exotismo ou oportunismo mercantil. […]
O barroco estético é, pois, a absorção de sinais, dos sinais mais sedutores das culturas invasoras – de ocupação física ou não – e a sua superação. Algo que pode conduzir à invenção de novos sinais de uma nova cultura, de miscigenação crioula e universalista. E essa reflexão criativa – transe ou inconsciente –, vem exigindo o recurso à ética e à linguagem. […]
O barroco estético possui uma regra própria de princípios que não sejam seus. Viagem através do desmedido, imagem e palavra, que pode recolher-se no tom da voz em que se exprime, se canta ou grita. […]
O barroco estético é o teatro do que exprime, testemunha da sombra e da luz, voz musical da noite em que o corpo do desejo se debate. Não é o que lá está que é significativo, mas a sua essência, o seu significado, por vezes, o significado da ausência. […]
O barroco estético, sendo voz da palavra, da música, da arquitetura, da escultura, da pintura, é a singularidade do indivíduo e da sua própria imagem”. […] O barroco estético contém uma parte de sonho onde o imaginário se serve ao vivo. Ele vai metamorfosear a viagem lúdica. […]
Barroco estético da imagem da irreverência, capaz de inverter conceitos, sinais e significados, ele é questionamento e risco, o desejo conduzido à palavra poética, ou à imagem cultural, ou cinematográfica. Em suma, o barroco estético é a adoção de elementos como a surpresa e o que é aleatório13.
A poesia e a poética de Virgílio de Lemos pretende fazer um corte com os modelos clássicos portugueses, recentrando- as no local, no moçambicano, embora mantendo diálogos com as literaturas europeias e latino-americanas. Nas palavras de Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, é uma tentativa de «criação de uma verdadeira poesis moçambicana, antropofágica e descentrada em relação ao fazer literário imposto pela colonização», propondo «uma poesia rebelde, cujas imagens, o ritmo e o vocabulário revelavam os diversos saberes culturais no múltiplo tecido social moçambicano»14. Apelando à insurreição aproxima-se do «barroco latino-americano, ou seja, do “neobarroco”», que «representa subversão, discordância em relação ao centro, ao logus absoluto», não opondo os pares vida/morte e ser/nada, sendo antes barrocamente «regenciados pelo constante erotismo da linguagem»15.
O angolano José Eduardo Agualusa utiliza a designação de Virgílio de Lemos para dar título ao seu romance de 2009, Barroco Tropical, explicando nos «Esclarecimentos e agradecimentos» finais a origem da expressão. A sua obra antecipa o futuro de Angola, num retrato imaginado de uma possível Luanda em 2020, tendo como uma das protagonistas Kianda, uma cantora forte e rebelde, que acaba por morrer e cai do céu durante uma tempestade, qual anjo sacrificado. Podemos sem dúvida identificar neste episódio uma intertextualidade com o conto «Un señor muy viejo con unas alas enormes», de Gabriel García Márquez, autor, aliás, várias vezes referido ao longo do romance. Contudo, vamos centrar-nos nas relações entre Barroco Tropical e Concierto Barroco, em particular em três aspectos: tempo, música e expressão barroca.
Em ambas as obras encontramos a referência e a aplicação do barroco. Conhecemos já a posição de Carpentier em relação à questão. Nos dois textos temos o barroco ibérico como fonte primordial, desenvolvendo-se o neobarroco e o barroco tropical, numa aproximação de universos com tradição peninsular, ou seja, a América Latina e a África ibéricas, mas rebelando-se, reescrevendo, dialogando com o outro, em particular o outro ibérico, numa espécie de aproximação ao conceito de «transibericidade» proposto pelo escritor português José Saramago, uma espécie de vocação do Sul. Trata-se de uma proposta de futuro que englobaria a Península Ibérica e os países da América e de África com tradições ibéricas. Na sua base estaria o conhecimento mútuo dos povos, longe de preconceitos históricos e culturais. Na perspectiva de Saramago, a opção cega da Península pela Europa poderá implicar «perder, na América Latina, não o mero espelho onde poderia rever alguns dos seus traços, mas o rosto plural e próprio para cuja formação os povos ibéricos levaram quanto então possuíam de espiritualmente bom e mau, e que é, esse rosto, […] a mais superior justificação do seu lugar no mundo»16. Assim, a América Latina é vista como um prolongamento da Ibéria e permite o intercâmbio e o enriquecimento cultural.
Agualusa admite que a sua vivência em Portugal e no Brasil tem impacto na sua obra:
Os livros, inevitavelmente, têm a ver com a biografia de quem escreve. E, portanto, o lugar onde a pessoa está ou os lugares onde a pessoa passa... Nos meus livros isso é muito claro. Todos eles têm a marca desse trânsito entre Brasil, Angola e Portugal. […] Também acho que os livros recebem muito daquilo que está à volta. Se eu escrever um livro agora aqui, neste momento, neste lugar, provavelmente ele vai receber uma luz. Uma coisa do ambiente das árvores, do que está à volta. Os livros são muito marcados pela geografia do ambiente17.
Em certa medida, Agualusa concretiza o conceito de Saramago, pelo menos nos seus textos, nomeadamente na visão em relação à língua portuguesa presente no seu romance. Benigno, Dalmata e Bartolomeu Falcato discutem sobre o papel político e social do português em Angola, se é ou não um elemento colonizador, não chegando a consenso. Benigno considera que esta língua «representa um troféu de guerra»18: «Roubámos a língua ao colonizador e fizemo-la nossa»19. Falcato contesta e argumenta que a «língua portuguesa é uma construção colectiva de todos os que a falam e conta desde o início com a contribuição africana», lembrando a origem árabe da língua e a assimilação, ao longo dos séculos, de palavras em quimbundo, tupi, malaio e japonês, entre outras. «Experimente retirar todas as palavras árabes e bantus do português e depois veja o que acontece»20, sugere. Temos, assim, duas posições que se assumem como contrárias – por um lado, a ideia de que a língua portuguesa foi roubada ao colono e feita sua pelos angolanos e, por outro, que se trata de uma construção colectiva –, mas serão de facto tão diferentes? Não acabam por coincidir? Umas páginas antes, encontramos uma descrição de um ritual de exorcismo em que os intervenientes avançam «cantando em lingala, cantando em quicongo, cantando em português, cantando com muitíssimo entusiasmo para afastar os espíritos malignos»21. Não se trata de um ritual transibérico? Transibérico é também o percurso de Mãe Mocinha, velha senhora que no Brasil natal pertencia ao Candomblé Angola e que foi a este país para conhecer as raízes do movimento, aprender quimbundo e encontrar um companheiro negro. Afinal, «descobri que não há candomblé em Angola, e ao invés de um preto bonito saiu-me um branco feio, um português, o Halípio»22.
Passemos para a música, presente desde o primeiro capítulo de Concierto barroco, quando um mestre pede ao Amo mexicano que lhe traga da Europa pautas. O negro livre cubano Filomeno, um dos protagonistas da novela, é apresentado a cantar uma canção que fala de um antepassado seu, Salvador, filho de Golomón, que venceu corajosamente o luterano Girón, uma luta que fez dele herói, tanto que poderia transformar-se em personagem de uma ópera, como sugere mais tarde Filomeno, já em Veneza. Conta esta história pela primeira vez em Havana, recordando um concerto que podemos classificar como transcultural (utilizando o conceito de Fernando Ortiz), cruzando sonoridades e instrumentos europeus, africanos, americanos e crioulos.
Outra expressão musical transcultural é a que acontece no Ospedale della Pietà, em Veneza, com as órfãs e os seus instrumentos clássicos, Antonio Vivaldi, Domenico Scarlatti, Georg Friedrich Händel, o Amo e Filomeno, no «más tremendo concerto grosso que pudieron haber escuchado los siglos»23, numa jam session marcada pela improvisação de Filomeno, percursor do jazz, que bate com «cucharas, espumaderas, batidoras, rollos de amasar, tizones, palos de plumeros, con tales ocurrencias de ritmos, de síncopas, de acentos encontrados, que, por espacio de treinta y dos compases lo dejaron solo para que improvisara»24, num verdadeiro concerto barroco ou neobarroco que nos remete para uma passagem do romance de Agualusa, o do exorcismo cantado em várias línguas, acompanhado por todo o tipo de instrumentos: «Saxofones, trompetes, cornetas de todo o tipo, eu nunca tinha visto nada assim, e batuques e guitarras, e um coro de homens e outro de mulheres, homens e mulheres vestidos de branco puro, como um jardim só de lírios»25, figuras claras, portanto, como as das órfãs de Veneza. O refrão da canção que Filomeno entoa é repetido em coro por todos, transformando «Ca-la-ba-són, Son-son» em «Kábala-sum-sum-sum», que, como explica o narrador, era «una inesperada inflexión de latín salmodiado»26. Percorrem o edifício cantando e dançando, formando uma fila, «agarrados por la cintura, moviendo las caderas, en la más descoyuntada farándula que pudiera imaginarse —farándula que ahora guiaba Montezuma, haciendo girar un enorme farol en el palo de un escobillón a compás del sonsonete cien veces repetido»27. No final da novela, há um «nuevo concierto barroco»28, protagonizado pelo trompetista Louis Armstrong, a que Filomeno assiste.
A história de Montezuma, o último imperador asteca, é adoptada por Vivaldi e transformada numa ópera europeizada, à imagem da mitologia grega, com adaptações que o Amo considera forçadas, ridículas, desnecessárias e bizarras, evitando elementos históricos em nome de uma liberdade poética que, na verdade, visa o gosto do público veneziano. É ao assistir ao espectáculo que o Amo, descendente directo de espanhóis, compreende que, afinal, a sua identidade não é europeia, ao contrário do que pensava, mas americana: durante a ópera, torce pela vitória dos astecas face às tropas de Hernán Cortés, apesar de saber que o desfecho da guerra foi o oposto e que, se assim não fosse, ele provavelmente não existiria ou pelo menos não da mesma forma: «Y me di cuenta, de pronto, que estaba en el bando de los americanos, blandiendo los mismos arcos y deseando la ruina de aquellos que me dieron sangre y apellido. De haber sido el Quijote del Retablo de Maese Pedro, habría arremetido, a lanza y adarga, contra las gentes mías, de cota y morrión»29. É a tomada de consciência do homem americano, que, como vimos, Carpentier associa ao desenvolvimento do barroco do subcontinente. Esta posição é, portanto, profundamente americana e barroca. O mesmo acontece a outra personagem de Carpentier, Monsieur Lenormand de Mezy, de El reino de este mundo, francês residente no Haiti, que, quando enviuva, volta para Paris cumprindo um sonho alimentando durante anos. Contudo, «al cabo de pocos meses, una creciente nostalgia de sol, de espacio, de abundancia, de señorío, de negras tumbadas a la orilla de una cañada, le habían revelado que ese “regreso a Francia”, para el cual había estado trabajando durante largos años, no era ya, para él, la clave de la felicidad»30. Monsieur Lenormand de Mezy tem saudades da América, surpreendendo-se a si mesmo por se sentir mais americano do que francês. Estas personagens são, pois, resultados transculturais destes mundos ibéricos e ibero-americanos, resultados transibéricos (voltando ao conceito de Saramago), que apontam para um futuro possível e em construção. Porque, como afirma o Amo a Filomeno, «lo fabuloso está en el futuro. Todo futuro es fabuloso»31. Recorde-se que esta última frase é utilizada por Saramago como epígrafe do seu romance A Jangada de Pedra (1986), que aborda precisamente o lugar cultural e histórico da Península Ibérica, na sua perspectiva mais próxima da América Latina e de África do que do resto da Europa.
Estrellas, habéis vencido./Ejemplo soy, ante el mundo, de la inconstancia vuestra./Rey fui, quien me jacté, de poseer divinos poderes./Ahora, objeto de escarnio, aprisionado, encadenado, hecho despreciable trofeo de ajena gloria/sólo serviré para argumento de una futura historia32.
A letra desta ópera de Vivaldi fala da fugacidade da honra e do poder. Encontramos a inconstância também no poema de Barroco Tropical, seja na versão reduzida incluída no romance ou na versão desenvolvida da canção com o mesmo título feita mais tarde, numa parceria de José Eduardo Agualusa com o músico António Zambujo, que a interpreta no seu álbum Guia (2010):
O amor é inútil: luz das estrelas
A ninguém aquece ou ilumina
E se nos chama, a chama delas
Logo no céu lasso declina.
O amor é sem préstimo: clarão
Na tempestade, depressa se apaga
E é maior depois a escuridão,
Noite sem fim, vaga após vaga.
amor a ninguém serve, e todavia
A ele regressamos, dia após dia
Cegos por seu fulgor, tontos de sede
Nos damos sem pudor em sua rede.
O amor é uma estação perigosa:
Rosa ocultando o espinho,
Espinho disfarçado de rosa,
A enganosa euforia do vinho33.
O que é o amor? O amor é inútil, perigoso e sem préstimo, uma luz que atrai mas desaparece rapidamente, tornando a escuridão mais insuportável. Apesar disso, cegos e tontos caem na sua armadilha, iludidos pela euforia que provoca uma coisa que é tanto rosa como espinho. Rosa, um dos tópicos por excelência do barroco pela sua beleza fugaz, que expõe a efemeridade das glórias e da vida e a transitoriedade do belo. Um comentário mais sobre intertextualidade: um dos poemas mais populares da poeta barroca mexicana Sor Juana Inés de la Cruz, «Diuturna enfermedad de la esperanza», propõe uma interpretação semelhante da esperança, ou seja, como algo pernicioso que prolonga cruelmente o sofrimento. Voltemos a Barroco Tropical. As palavras do poema estão escritas em língua portuguesa, a música é da autoria de um português, um dos conceitos do título (barroco) é de origem ibérica, mas o adjectivo «tropical»34 orienta-nos para paragens mais a sul, na África natal do autor do texto ou na América Latina que lhe é tão próxima, terras de reescrita e reinterpretação do barroco original e do seu desenvolvimento de acordo com as características sociais, políticas e culturais locais, como preconizava Virgílio de Lemos. A letra é sobre um tema universal, o amor, mas com elementos que juntam todo esse universo transibérico. Acrescentemos que, segundo Agualusa, todos os seus livros têm alguma relação com a música: «Eu tenho uma grande preocupação com ritmo e melodia. A única coisa que digo aos tradutores é que tentem manter um ritmo»35. Por isso não espanta que o romance tenha como figura central precisamente uma cantora.
A música, elemento muitas vezes estereotipado das culturas africanas e latino-americanas, é assim retomado por estes textos, mas como topoi resignificados, pensados desde dentro, não como exóticos (como acontece com visões desde o exterior, eurocêntricas por exemplo). Assim, não é recusado o elemento frequentemente associado ao estereótipo, assumindo-o antes a partir de uma perspectiva mais real, mais adequada à sociedade e à cultura locais, sempre em ligação a movimentos, correntes e acontecimentos globais ou de outras geografias. Assim, a angolana Kianda é uma cantora que actua em várias partes do mundo, integrando-se na chamada «world music» (categoria por si só eurocêntrica, ou melhor, centroeurocêntrica, pois inclui todas as canções e estilos que não sejam música clássica, rock e pop), mas simplesmente criando e interpretando canções que cruzam referências e tradições de diferentes partes do mundo, tanto nas melodias como nas letras, mesmo se com uma componente africana mais acentuada. Será mais um exemplo de transculturalidade, a realista transculturalidade tão presente em tudo e tão contrária aos ilusórios essencialismos. Na novela de Carpentier, a música clássica (considerada culta) desempenha um papel importante, logo desde o território americano com o mestre de música a pedir pautas da Europa – aliás, as únicas encomendas que o Amo considera levar para o México no seu regresso, como se todos os outros pedidos fossem disparatados, seja do ponto de vista prático (como as amostras de mármore), seja do ponto de visa simbólico (como se apenas a música valesse a pena importar) –, mas relacionando-se com expressões mais populares, como as precursões africanas e afroamericanas e os anacrónicos jazz (Filomeno), swing e blues (Armstrong). Assim, a música erudita e a música popular ou com origem popular são postas em pé de igualdade e, mais do que isso, dialogam e dão lugar a um produto novo e inovador, nomeadamente com a jam session no Ospedalle della Pietà, ou seja, um produto transcultural (e neobarroco) que Carpentier utiliza para reconhecer a importância da música clássica (com tradição europeia) na América (apesar da contestação dos modelos europeizados da ópera por parte do Amo), mas simultaneamente afirmar e legitimar uma música americana (em geral marginalizada pelo sistema) que dá origem a movimentos globais e inovadores. Assim, o tal elemento frequentemente tão estereotipado que é a música cubana é represpectivado por Carpentier como algo menos tradicional, popular e essencialista, e mais como algo dinâmico, aberto, dialogante e reconhecido pelos sistemas centrais (os compositores canónicos que elogiam, se calam e ouvem a improvisação de Filomeno). O mesmo se pode dizer em relação ao texto de Agualusa, numa outra expressão da proximidade dos «barrocos» em causa. Aliás, como comentava recentemente o escritor angolano, «todos os livros são pontes e fazem-nos construir pontes. Trazem-nos para outra realidade36 […].»
Chegamos finalmente à questão do tempo. Como referimos, Barroco Tropical é passado em Luanda, em 2020, ou seja, situado onze anos depois da publicação do livro numa espécie de ficção científica. «É um olhar sobre Angola em 2020»37, explica Agualusa em entrevista. Será, pois, um contributo do autor para a construção de um futuro alternativo, numa consciência da continuidade do tempo e da consequência de acções e escolhas. Essa consciência está muito presente na obra através de comentários de várias personagens. Afirma Bartolomeu Falcato no capítulo 3: «O passado vai mudando consoante o presente. […] Não se consegue construir um novo futuro sem primeiro mudar o passado»38. Quase no final, Myao declara que «o futuro só vale a pena se tiver passado»39. Há, pois, um entrelaçar de tempos, embora aqui o «futuro fabuloso» de Carpentier esteja mais perto do sentido de «fábula» do que de «óptimo», fábula como história que se conta para compreender melhor o mundo.
O tempo em Concierto barroco apresenta intersecções variadas, juntado num mesmo espaço Vivaldi (1678-1741), Scarlatti (1685-1757) e Händel (1685-1759), ao lado do túmulo de Stravinsky (1882-1971), pouco antes de um espectáculo de Louis Armstrong (1901-1971), partindo o Amo no final de comboio e voltando Filomeno ao centro de Veneza, onde encontra lanchas a motor e referências a turistas de travellers checks, e planeia visitar Paris, já a cidade da Torre Eiffel. Os tempos sobrepõem-se, sem que as personagens se incomodem com isso. Por isso, o Amo não sabe quando despiu o disfarce que depois vê em palco, na estreia da ópera Montezuma («anoche, antenoche, o ante-ante-antenochísima, o no sé cuándo»40). Quando se despedem, Filomeno comenta: «Siempre oigo hablar del Fin de los Tiempos. ¿Por qué no se habla, mejor, del Comienzo de los Tiempos?”—“Ése, será el Día de la Resurrección” —dijo el indiano.—»41 Assim, a Ressurreição é um novo recomeço numa perenidade de ciclos que se podem entrecruzar, como acontece com o neobarroco e o barroco tropical, afirmações transculturais e transibéricas que reinventam um passado comum para construir uma nova realidade que espelhe o local inovadora e criativamente. Como escreveu José Lezama Lima, em La expresión americana, a prova mais decisiva de que um sistema está maduro para fazer uma ruptura é quando «recibe un estilo de una gran tradicion, y lejos de amenguarlo, lo devuelve acrescido»42. É o que acontece com Carpentier e Agualusa. É o que acontece com o neobarroco e o barroco tropical, fenómenos meta-históricos de carácter político e com forte relação com o futuro, repensando o passado, descentrando-o e pondo-o em diálogo com outros âmbitos.
Bibliografia
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1 Sarduy, Severo, Barroco. Trad. de Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Vega, 1989, p. 25 [Original: Barroco. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1974].
2 Aguiar e Silva, Vítor Manuel de, Teoria da Literatura, 2.ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1969, p. 343.
3 Idem, ibidem, p. 345.
4 Sarduy, Severo, Barroco. Trad. de Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Vega, 1989, p. 93 [Original: Barroco. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1974].
5 Ibidem, p. 93.
6 Ibidem, p. 96.
7 Ibidem.
8 Lezama Lima, José, El reino de la imagen. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1981, p. 440.
9 Carpe ntier, Alejo, «Problemática de la actual novela latinoamericana», Tientos y diferencias citado em Carpe ntier, Alejo, América, la imagen de una conjunción. Barcelona: Anthropos Editorial, 2004, p. 77 e em Camacho Delgado, José Manuel, Comentarios filológicos sobre el realismo mágico. Madrid: Arco Libros, 2006, p. 55. Sublinhados nossos.
10 Carpe ntier, Alejo, América, la imagen de una conjunción. Barcelona: Anthropos Editorial, 2004, p. 66.
11 Chao, Ramón, Conversaciones con Alejo Carpentier. Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 63.
12 Idem, ibidem, p. 65.
13 Lemos, Virgílio de, «Eroticus mozambicanus» in Panorama das Novas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
14 Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro, «O mar, a ilha, a língua. a vertigem da criação na poesia de Virgílio de Lemos» in http://repositorio.lusitanistasail.org/secco01.htm, consultado a 15 de Abril de 2016.
15 Idem, ibidem.
16 Saramago, José, «O (meu) iberismo». Lisboa: Jornal de Letras, n.º 330, 31 de Outubro de 1988, p. 32.
17 Mello, Ramon, «José Eduardo Agualusa, no ritmo da escrita», 1-7-2010 in www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10342, consultado a 15 de Abril de 2016.
18 Agualusa, José Eduardo, Barroco Tropical, 2.ª ed. Alfragide: Dom Quixote, 2009, p. 280.
19 Idem, ibidem.
20 Ibidem, p. 281.
21 Ibidem, p. 217.
22 Ibidem, p. 113.
23 Carpe ntier, Alejo, Concierto Barroco. Madrid: Alianza Editorial, 2003, p. 46.
24 Idem, ibidem, p. 47.
25 Agualusa, José Eduardo, Barroco Tropical, 2.ª ed. Alfragide: Dom Quixote, 2009, p. 217.
26 Carpe ntier, Alejo, Concierto Barroco. Madrid: Alianza Editorial, 2006, p 49.
27 Idem, ibidem, p. 50.
28 Ibidem, p. 90.
29 Ibidem, p 82.
30 Idem, El reino de este mundo. Madrid: Alianza Editorial, 2004, p. 57.
31 Idem, Concierto Barroco. Madrid: Alianza Editorial, 2006, p. 83.
32 Ibidem, pp. 72-73.
33 Zambujo, António, Guia, 2010 (www.antoniozambujo.com/#mdiscos). Negro nosso, assinalando as estrofes presentes no romance.
34 Sublinhe-se que a palavra «tropical» não tem a mesma acepção política e ideológica em todos os países lusófonos.
35 Mello, Ramon, «José Eduardo Agualusa, no ritmo da escrita», 1-7-2010 in www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10342, consultado a 15 de Abril de 2016.
36 Caetano, Rita, «José Eduardo Agualusa. As pessoas realmente felizes são as que sabem não ter». Lisboa: Saber Viver, n.º 191, Maio de 2016, p. 37.
37 Mello, Ramon, «José Eduardo Agualusa, no ritmo da escrita» in www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10342, consultado a 15 de Abril de
2016.
38 Agualusa, José Eduardo, Barroco Tropical, 2.ª ed. Alfragide: Dom Quixote, 2009, p. 56.
39 Idem, ibidem, p. 336.
40 Carpe ntier, Alejo, Concierto Barroco. Madrid: Alianza Editorial, 2006, p. 68.
41 Idem, ibidem, p. 86
42 Lezama Lima, José, La expresión americana. México: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 117.