Entrevista a Manuel de Seabra, por Jordi Cerdá

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO4

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ENTREVISTA

MANUEL DE SEABRA e a esperança no homen

 POR JORDI CERDÁ

Escrever sobre Manuel de Seabra não é fácil. E não só pela sua dilatada trajetória, pelas pátrias disseminadas ou as multifacetadas tarefas. Seabra, um europeu das margens ibéricas, sedimenta muita da complexidade que lhe calhou lidar na segunda metade do século XX. Apanhou riscos, não quis nem patrões nem igrejas nem partidos. E isso não é fácil.
Combinei com Manuel de Seabra no Ateneu Barcelonès, venerável instituição onde é (re)conhecido. Para já me diz que o trate por tu. E assim o faço. Emprega muito ocasionalmente uma bengala. Acompanha-se sempre duma crítica inteligente, sã e forte. Na sua jovem retórica não declina a adulação fácil e, ainda menos, o ditirambo.
Na lapela traz uma discreta Creu de Sant Jordi, a condecoração do Governo catalão. O rosto camoniano parece conter as mil batalhas dum agente reformado do bando dos elegantemente perdedores. Porém, a sua voz tranquila, profunda -foi locutor profissional na BBC- nos leva pacificamente por caminhos certos.

Escritor, tradutor, ativista, mediador cultural... haveria alguma destas atribuições que fosse capaz de completar mais e melhor o teu itinerário vital?

Sou basicamente um escritor e isso diz muito. Ativista cultural? Sim, mas não propositadamente; aconteceu. Sempre pretendi desde o princípio profissionalizar-me como escritor e é um absurdo, é ingénuo. Para além disso era (e sou) indomesticável, não consegui nunca ter patrões. Agora as pessoas falam de trabalhadores por conta própria. Ora bem, para tomar esta decisão, é preciso salvar os obstáculos do percurso.

Ser escritor, portanto, era já uma vocação desde os inícios, em menino?

Quando tinha já dez anos fazia histórias. Naquela altura lia uma publicação infantil, O mosquito, onde consegui que me publicassem um conto. Durante toda a minha infância e juventude nunca me vi sendo advo- gado ou médico, sempre me vi sendo escritor.

Também és esperantista desde muito novo. O que quer dizer ser esperantista?

Ser esperantista é ser partidário duma língua singela que te permite estender pontes entre todos os países. Também é uma expressão de luta contra qualquer im- perialismo linguístico. Para além disso, o esperanto é uma língua apta para a criação literária; a literatura em esperanto existe. E eu, como escritor, uso o esperan- to. Escrevi romances nos que trabalhei paralelamente a versão portuguesa, a catalã e em esperanto. Isso é um imenso trabalho linguístico.

Como começaste a ter contacto com o esperanto?

Sou esperantista desde os onze ou doze anos. No meu liceu havia uma enciclopédia Espasa [Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana]. Já sabes: to- das as entradas têm o termo traduzido para o francês, o inglês, o italiano, o alemão, o português, e até o catalão e o esperanto. Eu não sabia que diabo era isso do esperanto, mas gostava de fazer listas de pala- vras naquela misteriosa língua. Foi naquela altura, uma vez que ia de elétrico com o meu pai, cumprimentou-o um velhote que ia sentado diante de nós. O meu pai apresentou-mo e disse-me: “este homem é esperantis- ta.” Dentro daquela tristeza que era vida em Portugal, na Lisboa dos anos trinta, aquele homem e o esperan- to abriram-me a porta ao mundo. Através dele encon- trei uma antologia de Literatura Catalã em esperanto. Fiquei fascinado com aquela língua e aquela literatura e eu quis escrever ao autor da antologia. Enviei uma carta, então, ao autor, Delfí Dalmau, o meu primeiro contacto catalão. Queria informações sobre a língua e a cultura catalãs e enviou-me gramáticas, dicionários... Comecei a aprendê-la. Através de Delfí Dalmau cheguei a Antoni Ribera, o filho do lusitanista catalão Ignasi Ribera Rovira. E, a partir daqui, o contacto com a Língua Catalã foi já uma descoberta.

Antoni Ribera Jordà (1920-2001) recolheu o testemunho do seu pai nas relações luso-catalãs. Foi responsável da revista Antologia dels fets, les idees i els homes d’Occident (1947-1948), publicação na que participou também um dos nomes mais significativos da lusofília catalã, Fèlix Cucurull. Nesta revista também colaborava Delfí Dalmau Gener (1891-1965), o representante catalão da Akademio de Esperanto. Foi através desta instituição que entraram em contacto com um rapaz de Lisboa, Manuel de Seabra, que foi correspondente em Portugal da segunda (e imediata) revista promovida por Antoni Ribera: Occident (1949-1950).

Depois do contacto, chegou a primeira estadia em Barcelona. Como é que decides partir para Espanha?

Eu estava desejoso de fugir de Portugal. Ribera me disse me que tinha a hipótese de arranjar-me um contrato de trabalho na editora Herder e fazer uma tradução para português duma enciclopédia qualquer. Não duvidei nem por um instante, fiz a mala e fui para Barcelona. A Espanha era uma ditadura muito mais feroz do que a portuguesa. Portugal era (ou pior, parecia) o Português Suave [uma marca de cigarros]; era uma ditadura que controlava todos os espaços, os pú- blicos e os privados. Em Espanha o controlo era muito mais oficial e rígido, garantido pela Guardia Civil e a polícia. Porém eu encontrei em Barcelona uns espaços de liberdade que não tinha nem imaginava em Lisboa. É por isso que Barcelona me deslumbrou.

Seabra já tinha merecido este cálido acolhimento na Catalunha pelo seu trabalho em Lisboa em prol do reconhecimento da Literatura e da Língua Catalãs. Em 1952 foi o diretor duma efémera revista, Neo. Cadernos literários, juntamente com J. Felizardo Marques, Miguel Bruma e Henrique Tavares. O número dois desta pu- blicação, da responsabilidade direta de Seabra, foi dedicado integramente à Literatura Catalã. Manuel de Seabra e Antoni Ribera foram os autores da antolo- gia de narrativa Os melhores contos catalães (Lisboa, Portugália Editora, 1954).

Que lembranças tens da realidade catalã no teu primeiro contacto direto?

Eu conhecia alguns dos nomes da cultura catalã através do número especial da revista Neo. Embora muitos deles não consegui conhecê-los porque estavam exilados. Lembro-me de Salvador Espriu, por exemplo, que conheci pessoalmente em 1954. Todos tentavam ganhar um pouco de história, entrar na história fazendo ou dizendo que faziam resistência ao regime. Mas o regime era, infelizmente, muito forte.

E, em Lisboa, que amigos ou personagens tinhas como referência?

António Macedo, por exemplo. Era esperantista como eu. Conheci-o já no Liceu Camões. Era um gajo com muito talento: tinha interesse por todas as artes, nomeadamente pela música. Tocava piano muito bem. Como realizador, ele próprio compôs a música em mui- tos dos seus filmes. Ao longo da vida sempre temos caminhado em paralelo. Muita gente da minha geração infelizmente desapareceu. Ora bem, sempre dei com pessoas mais velhas. Frequentava, por exemplo, um café na Avenida da República onde tinham a tertúlia Carlos de Oliveira, Zé Gomes Ferreira ou Manuel da Fonseca. Eu não era participante desta tertúlia, mas consegui tratar com o Carlos de Oliveira que era um tipo estupendo, nem parecia escritor. Também apareci no Café Gelo, onde tinham a tertúlia o grupo surrealis- ta. Lá conheci, por exemplo, o Mário Cesariny.

António Macedo (1931) é uma das personalidades mais heterodoxas da cultura portuguesa do século XX. Arquiteto de formação, juntamente com o escultor Carlos Cama e Manuel de Seabra fundaram a editora Clube Bibliográfico Editex onde publicaram escritores portugueses e também um catalão, Fèlix Cucurull. Entre 1960 e 1961, Macedo escreveu Da essência da libertação. Ensaio antropológico a partir da poesia de Fèlix Cucurull.

Depois de Barcelona começa um périplo pela Europa e um regresso a Portugal. Como é que sobrevivias como escritor?

Lavava a loiça em casa como toda a gente, mas tam- bém lavei pratos profissionalmente na França, Suécia... e voltei para Portugal. Não apanhei nada de explícito, a não ser a construção do meu mundo. Fundei uma editora em Lisboa [Clube Bibliográfico Editex] que durou muito pouco tempo. Um dia uma amiga fez-me um telefonema ao fim da tarde para combinar e tomar alguma coisa no Café Restauração. Foi naquele lugar que me apresentaram a Vimala Devi. E já não tive escapatória possível.

Vimala Devi (1932) é a companheira de Manuel de Seabra. Poeta, pintora, narradora, também é co-autora, por exemplo, do Diccionari català / portuguès ou de A Literatura Indo-Portuguesa, junto a Manuel de Seabra. Como era Vimala quando a conheceste?

Vimala sofria exageradamente a ditadura. Suponho que eu fui naquela altura uma tábua de salvação para ela. Através dela comecei a conhecer a luta anticolonial. O seu ambiente em Goa era muito português e Vimala estava integrada perfeitamente nesse mundo.

forço. Finalmente lançaram o livro e venderam 20.000 exemplares. Foi um sucesso.

Recomendarias hoje também estes poemas?

Sim, recomendaria. É, claro está, uma literatura que defende uma ideologia, mas nem tudo é doutrina. A editora ficou entusiasmada e começámos a publicar a Coleção Antologia. Lembra-te que era a mesma editora que tinha feito o barulho com o livro das três marias [1974]. Um momento, portanto, muito especial para Portugal e, também, para o mundo editorial português.
O âmbito editorial português estava mergulhado, como no podia ser doutra forma, no processo revolucionário. Acabada a ditadura fascista e imperialista, apareceu um alude de ensaios políticos (e panfletos), uma descontraída literatura erótica e uma infinidade de obras que estavam escondidas nas gavetas dos antes terroristas e, posteriormente, heróis dos movimentos de libertação nacionais. E tudo isso com uma crise económica mundial muito grave e especialmente severa em Portugal onde o capital fugia atemorizado pela ameaça socializadora.

Poderias destacar algum título das antologias que preparaste?

Destacar uma antologia por cima doutra é difícil; é como perguntar a um pai qual é o filho que prefere. Muitas vezes trabalhava com duas ou três antologias ao mesmo tempo. Através de contactos indiretos che- guei, por exemplo, à Literatura Cubana da revolução ou à Literatura Africana. Outras vezes, foi um conheci- mento muito mais direto; como no caso da nova poesia catalã ou a occitana. Neste caso, através do Antoni Ribera, conheci Louis Bayle, le noveau Frederic Mistral. Convidaram-me a participar nas festas da Santa Estela em Toulon e cheguei a ser sócio do Felibrige.

Para além do português e do catalão, tens destacado como tradutor do russo. Como é que começou este interesse pela Literatura Russa?

Numa altura, a editora Futura precisava de traduto- res portugueses que fossem capazes de traduzir diretamente do russo. E, claro, disse-lhes que eu era capaz. De facto, quando tinha vinte e poucos anos comecei a folhear alguma gramática e a manobrar dicionários russos, mas tive rapidamente de aprender para dar uma resposta à editora. Consegui um prémio com a tradu- ção para o catalão do teatro de Vladimir Maiakovski que, antes, já tinha traduzido para o português.

Também viajaste pela URSS, não é?

É. Foi graças ao Melo e Castro que, naquela al- tura, era presidente da Associação de Escritores Portugueses. A associacião soviética contactou com ele para convidar dois escritores que soubessem russo e estabelecer relações entre as duas culturas. Fomos eu e o Egito Gonçalves.

E, o Egito, sabia russo?

Não, não sabia, nem era mesmo comunista. Mas tinha sido traduzido para o russo. E com isso, chegou. Foi uma boa experiência.

Como é que viveste a Revolução dos Cravos?

Estava aqui em Barcelona. Foi emocionante. Ia com o Vicenç Altaió e com o Josep M. Figueres a correr pelas Ramblas de Barcelona de mãos dadas e a dar gritos. Organizamos conferências e palestras para dar conhecer o que acontecia em Portugal, sem o ter vivido pessoalmente. Não fomos a Portugal até junho. Era um gozo e ficamos lá uns meses.

Mas, voltaste à Catalunha e és, de facto, um escritor catalão, não és?

Sou basicamente um escritor português. Se sou tam- bém escritor catalão é por umas circunstâncias muito especiais. Nos anos setenta ou oitenta muitos catalães não sabiam catalão. Andava eu por Lisboa por causa dumas eleições quaisquer, quando um jornalista cata- lão deu-me uma crónica para que eu desse uma vista de olhos. Estava escrito foneticamente, não era capaz de escrever corretamente na língua em que pensava e trabalhava diariamente. E era o chefe de secção dum jornal! Portanto, se eu sou escritor catalão, é porque naquela altura as circunstâncias mo permitiram.

Como estás a ver a situação atual na Catalunha?

A maior parte dos meus amigos catalães é indepen- dentista. Eu não sei se é uma boa ideia. O que é neces- sário na Península Ibérica, também na Europa, é uma maior democracia. Sem este défice poderemos resolver todos os problemas, também os nacionais.
Gostava de recolher umas palavras que o professor Basilio Losada dedicou ao seu admirado amigo Manuel de Seabra: “Creo que en la raíz de la obra de Manuel de Seabra como traductor está su condición de tras- terrado, de hombre de muchas patrias. Portugués de nacimiento y de ejercicio, tiene sobre su patria de origen una visión crítica, incómodo para sus compa- triotas. Pero, posiblemente, no hay más patriotismo plausible que este patriotismo crítico, desmitificador. Profundamente portugués, más portugués sin duda que quienes se alimentan irracionalmente de mitos sin racio- nalidad, Manuel de Seabra tienen tantas patrias como lenguas domina y traduce”. Com efeito, poderíamos somar em Seabra tantas pátrias como línguas conhece, mas, como o próprio Basilio Losada, constata: “creo que todas sus patrias están en deuda con Manuel de Seabra. Y de manera especial su patria de raíz incon- movible: la esperanza en el hombre”.

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