Elsa Nunes – A paisagem na poesia de Teixeira de Pascoaes e Miguel de Unamuno

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO2

ELSA NUNES

Évora, 1978.

A paisagem na poesia de Teixeira de Pascoaes e Miguel de Unamuno

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TEIXEIRA DE PASCOAES

Quando se refere aos sítios que percorreu Miguel de Unamuno, Julio García Morejón refere: “Estos paisajes tienen alma, y alma de hombres. Vibra en ellos el espíritu humano. Reflejan una historia. Cantan una pasión. Cuentan su vida. La sensibilidad del contemplador a veces los altera. Son geografía íntima de un duelo, el que se establece entre la Naturaleza y el hombre. Topografía espiritual, y no física.”1

De igual modo, Fernando Maristany testemunha entusiasticamente a respeito de Teixeira de Pascoaes: “Un poeta que, ‘de tanto amar a la naturaleza con ella se confunde”.2

Que importância tem a paisagem na visão poética de Teixeira de Pascoaes e Miguel de Unamuno? Que lugar ocupa o sentimento da Natureza na poesia de ambos os autores? Como se desenvolve esse sentimento ao longo da obra poética unamuniana e pascoaesiana? O que busca a alma do poeta ao contemplar a Natureza?

O presente artigo move-se em torno destas perguntas, que, de forma directa ou indirecta, têm vindo a levantar-se na obra de muitos investigadores que se debruçam sobre a obra individual destes dois escritores ibéricos, que aqui se pretende aprofundar, numa perspectiva comparativista, dadas as múltiplas afinidades entre ambos.

Unamuno foi um assumido e entusiasta excursionista, apaixonado pela Natureza, sobretudo pelas paisagens inóspitas, agrestes, mais propensas à reflexão transcendental. Seja nos picos rochosos da montanha, seja na planície castelhana, despojada e seca, o Homem acede à essência da alma.

O primeiro poema de Unamuno, anterior à publicação de Poesías, intitula-se sintomaticamente “Al campo” (1899). Desde os primórdios da produção poética unamuniana, o campo é encarado como fonte de renovação espiritual, a cuja visão se revela a eternidade.

Simultaneamente, a Paisagem da serra do Marão, símbolo de unidade e de continuidade, constitui, para o Pascoaes, o espaço ideal para a meditação, na sua ânsia prometeica por desvendar os segredos do universo. De facto, a terra natal, terra da vida plena da infância, reveste-se, na poesia pascoaesiana, de suma importância: “No isolamento da serra, onde Portugal se purifica numa erma penitência de silêncio, erguendo para os astros a extática fronte nebulosa, a alma do homem é influenciada apenas pela paisagem, de si própria se alimenta e a sua figura solitária é dum alto- -relevo inconfundível.”3

Unamuno e Pascoaes repudiam, em geral, as grandes cidades. A metrópole, poluída e ruidosa, multidão de desconhecidos, não agradava a “don” Miguel. Foi Salamanca a única urbe que mereceu o seu carinho. Já Madrid, por exemplo, causa-lhe profunda repelência; Paris, onde se refugia temporariamente durante o exílio, concebe-a como uma jaula. Por sua vez, em BeloMeditações, o sujeito poético pascoaesiano afirma: “Que paz e que sossego nesses vales/ Distantes da cidade… Até parece/ Que nós ali perdemos nossos males…”4

Em Para a Luz (1904), a Paisagem é a musa do Poeta pascoaesiano, que lhe sussurra aos ouvidos os segredos do “sete-estrelo”. Em As Sombras (1907), representa um impulso para o Infinito: “Eis-me, outra vez, na terra onde nasci; / Sagrada e tosca terra primitiva, / Boa terra fecunda, que eu bem sinto / Formar meu corpo, minha carne viva! / E cobre, igual ao barro duma estátua, / Meus ossos que são feitos de saudades… / (…) // Mãe de almas e fantasmas… Terra Santa; / Terra de Outono e místicas donzelas, / Onde eu, árvore humana, criei raízes / E ramagens que abraçam as estrelas…”5 (“A Sombra do Passado”).

Semelhante ideia perpassa as Poesías (1907) de Miguel de Unamuno: “En este mar de encinas castellano/ los siglos resbalaron con sosiego/ lejos de las tormentas de la historia// (…) //Es su calma/ manantial de esperanza eterna”6 (“El mar de encinas”). Em Rosario de Sonetos Líricos (1911), a contemplação da paisagem mergulha o sujeito poético no ideal, libertando-o das contingências do mundo real.

Ao longo da poesia unamuniana, deparamo-nos com variado leque de espaços naturais. De Poesías a Cancionero, percorrem-se os campos, a charneca, o vale, a planície, a montanha, o deserto, o mar e o rio.

Nos poemas “Castilla” e “El mar de encinas” de Poesías, as primeiras poesias sobre espaços físicos, o sujeito poético manifestara, desde cedo, a sua predilecção pela Paisagem agreste e despojada.

De facto, ao longo da sua obra poética, predomina uma paisagem nua e ascética, que impele à reflexão transcendental. Em “Renacer durmiendo en el campo” (Rimas de Dentro), a contemplação de uma natureza austera gera no sujeito a sensação de íntima comunhão com a terra. Na sua poesia, Unamuno associa a pobreza da Paisagem natural à riqueza espiritual.

Durante o exílio na fria e anónima Paris, em 1924, Unamuno evoca a “santa montanha” de Gredos :“¡Miguel! ¡Miguel!’ Aquí, Señor, desnudo,/ me tienes a tu pie, santa montaña,/ roca desnuda, corazón de España,/ y gracias, pues que no me sigues mudo.// (…) capaz me siento de cualquier hazaña/ bajo el dosel de tu celeste escudo”.7

No contexto dos cenários naturais da poesia unamuniana, insere-se também o deserto, espaço árido e despojado, onde o Poeta se refugia em busca do Mistério. Aí, reúne-se com Deus e mata a sua sede nas águas profundas, que o transportam ao céu.

Para além da Paisagem terrestre, a Paisagem marítima ocupa igualmente um lugar primordial na poesia unamuniana, particularmente a partir do exílio em Fuerteventura. Na verdade, é nessa ilha que o desterrado solitário descobre os fascínios do mar, símbolo de eternidade. Mais tarde, em Paris, recordará saudosamente esse mar que tanto o cativou. Em Nota ao soneto LXXIII, Unamuno confessa que a visão do mar transformou a sua ideia de Deus e de Espanha: “Lo que más echo de menos aquí, en París, es la visión de la mar. De la mar que me ha enseñado otra cara de Dios y otra cara de España, de la mar que ha dado nuevas raíces a mi cristiandad y a mi españolidad”.8 Em Romancero del Destierro (poema VIII), a visão do mar significa um retorno à infância, estado de inocência absoluta, de eternidade.

De igual modo, na poesia pascoaesiana, ainda que sejam escassas as referências ao mar, ele é “líquida esfinge” e sinónimo da tranquilidade do que é eterno: “Ó mar sereno, êxtase de água, quietação… / Ó lágrima infinita comungando / A altura do Infinito… Ó verde coração, / Suavemente, de encontro à terra palpitando…”. 9 Por outro lado, surge associado à montanha: o Marão é visto como “prolongamento ascético do mar, (…) mar petrificado”.10

Ao ler a obra poética pascoaesiana, um dos cenários paisagísticos mais recorrentes é, sem dúvida, a montanha, símbolo de ascensão espiritual: “As montanhas, nas grandes altitudes, / Na vizinhança límpida dos astros, / Perdem as negras formas pedregosas, / Perdem seu próprio corpo, rude e tosco, / E são asas geladas de brancura, / E são rezas, são êxtasis, subindo…”11

Quanto ao elemento líquido, no que concerne a Pascoaes, há nitidamente maior apego ao rio da sua aldeia natal, ao rio da sua infância abençoada, o Tâmega: “Ó meu Tâmega obscuro, água dormente… / Ó rio, à noite, a arder, todo estrelado! / Água meditativa, ao luar nascente, / Água coberta de asas, ao solnado!”; 12 “Tu és, ó Rio, a dor da grande Serra; / O seu drama de fragas e de terra, / Esvaído em água torva de paixão!”.13

Ao longo da poesia de Unamuno, há também alusão ao rio Nervión, que corre na sua nativa Bilbau. Em Setembro de 1911, em visita à terra natal, invoca nostalgicamente o rio (“Al Nervión”, Andanzas y Visiones Españolas), para que lhe devolva a calma e a segurança da sua infância: tal como o rio, que dantes corria em liberdade e se encontra agora limitado por muros, também o sujeito poético se vê hoje privado da liberdade da infância.

Não se tratando de um cenário natural, Salamanca, única cidade verdadeiramente amada por Unamuno, é presença constante na sua obra poética. Espaço dourado, de eternidade, Salamanca convida, ao mesmo tempo, à inquietação espiritual, à reflexão metafísica: “Es, mi ciudad dorada, tu regazo/ (…) regazo de sosiego/ preñado de inquietudes,/ sereno mar de abismos tormentosos. // En él se vive en paz soñando guerra; / las horas en silencio/ dejan oír la voz con que nos llama la eternidad a la abismal congoja”14 (“En regazo de la ciudad”).

Variadíssimos são, também, como temos vindo a ver, os espaços naturais na poesia pascoaesiana: o monte solitário (como em Belo), o vale (como em Belo – Meditações), a serra agreste (como em Marânus), o solitário pinheiral ou a aldeia natal (como em Sempre, Jesus e Pã ou Cantos Indecisos), o rio Tâmega ou a floresta (como em Terra Proibida). Para além da montanha íngreme e despojada, deparamo-nos com a visão do vale deleitoso, onde soa o murmúrio de regatos e cascatas, habitado por mariposas e abelhas e perfumado por lírios e rosas.

Assim, na poesia de Pascoaes, convivem a Paisagem árida e a Paisagem abundante, rica em fauna e flora. Na verdade, há no poeta português um certo Franciscanismo que o leva a prestar atenção ao mais ínfimo ser vivo, seja insecto ou lírio, e até ao mais indistinto ser não vivo, uma pedra que seja, se revestida de humanidade pelo seu olhar.

Na Paisagem poética pascoaesiana co-habitam insectos como animais selvagens como o lobo carniceiro e animais que convivem com o homem (o cão Nilo, o burro ou os mansos cordeirinhos, aves agoirentas como o mocho ou os corvos e aves alegres como a cotovia ou tristes como o rouxinol e o pegureiro.

Quanto à flora, é constituída por árvores como o cipreste, o pinheiro ou o castanheiro, por plantas agrestes como o saibro e a urze e por flores delicadas como lírios ou rosas. Aqui, a árvore assume uma relevância indiscutível, pois é simultaneamente símbolo de verticalidade e de horizontalidade, elemento de ligação entre dois mundos: “Troncos de névoa, ao zéfiro ondulando, / Que me dão fruto e flor e reverdecem / E penetram o chão, nele sugando / Águas de sombra e seivas de crepúsculo. / (…) // E os teus ramos, que um triste luar alaga, / Alcançam as estrelas, onde bebem / Essa luz que, de tão longínqua e vaga, / É já uma luz morta d’além mundo…”15

Esta Natureza, amada do poeta, é pintada de forma apelativa, graças ao visualismo, ao cromatismo e à sinestesia: ela é o regalo dos sentidos. Na descrição da Paisagem pascoaesiana predominam cromaticamente: o dourado, símbolo do que é permanente, eterno; o branco, que ora significa pureza, ora significa ascensão; o prateado, cor da fantasia; o roxo, associado ao Espírito.

Ao contrário do que sucede na obra de Pascoaes, na poesia unamuniana as referências a seres vivos são muito escassas, já que, como vimos, a sua paisagem predilecta é uma paisagem desértica, árida, selvagem. Logo, a Natureza é igualmente descrita de forma mais sóbria, com recurso a poucos cromatismos: o verde é de uma tonalidade parda, austera, e as cores dominantes são o prateado e o dourado, aliadas à ideia de imortalidade.

No que respeita à flora, o elemento natural mais recorrente é a árvore, nomeadamente, a “encina” (azinheira), que floresce em ambientes secos como Castela.

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MIGUEL DE UNAMUNO

Trata-se de uma árvore vetusta, que contribui para o carácter austero do cenário em que se insere. No vale do Cristo de Cabrera, “bendito/ solitário retiro”, o sujeito poético deseja «descansar renunciando a todo vuelo,/ y en el pecho del campo/ bajo la encina grave/ en lo eterno, (…), asentarse/ a la muerte esperando!”.16 A azinheira é, então, símbolo de horizontalidade e de verticalidade simultaneamente: à sua sombra, na terra, o “eu” aguarda a eternidade.

Em “La encina y el sauce” (Rosario de Sonetos Líricos), o Poeta identifica-se com a azinheira “selvática”, “robusta”, “adusta” por contraposição ao “frondoso” salgueiro, postura típica do seu espírito combativo: «Déme Dios el vigor de la encina selvática / que huracanes respira en su copa robusta / y del alma en el centro una rama fanática/ con verdor de negrura perenne y adusta, / que no quiero del sauce la fronda simpática/ que a las aguas que pasan doblega su fusta”.17

De igual modo, em De Fuerteventura a Paris, destaca- se uma outra árvore que germina em terreno inóspito, a figueira: “¡Las higueras de Fuerteventura, aquellas higueras evangélicas, palestinianas, que sacan jugo de la escueta roca!”18 (Nota ao poema LXX).

Seja a azinheira, seja o castanheiro ou seja ainda a figueira de Fuerteventura, a árvore assume-se na poesia unamuniana como veículo que garante a ligação entre o céu e a terra. Em “No busques luz, mi corazón, sino agua” (Poesías), a alma do sujeito poético é identificada com uma árvore, símbolo do terreno e do espiritual simultaneamente: tem raízes na terra e aponta para o céu.

Nesta poesia, há, portanto uma identificação do Homem relativamente à Natureza.

Paralelamente, também em Pascoaes o homem se aproxima da Natureza, reconhecendo-se seu semelhante: “Ó árvores piedosas, / (…) // Minhas irmãs em Deus”,19 Na verdade, para o bardo amarantino, é nos elementos naturais que reside a essência dos sentimentos humanos: “Almas que desejais um raio de Verdade, / Procurai-o num lírio ou numa rocha dura. / Vivem num ramo em flor a Justiça e a Bondade / E na água duma fonte a Beleza murmura!”.20

Simultaneamente, ao longo da poesia pascoaesiana, a Natureza é também revestida de carácter humano, sendo alvo de uma permanente personificação, tanto em termos físicos como psicológicos.

De igual modo, a Natureza unamuniana ganha aspecto e sentimentos humanos. Assistimos, com efeito, a uma recorrente personificação dos elementos naturais. A terra possui mãos, seios, regaço e dá à luz.

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D e facto, em ambos os poetas a Paisagem torna-se objecto da sua imaginação criadora, um reflexo da sua alma. Em «Alborada espiritual”, múltiplas são as expressões que apontam para uma interferência da fantasia do poeta unamuniano no retrato da Paisagem: “mi campiña”, “mis campos,/ los campos de mi espíritu”, “aurora de mi alma”, “mi cielo”.21 Simultaneamente, no pascoaesiano “Poeta - I”, o sujeito reconhece: “É bem certo que tu, meu coração, / Participas de toda a Natureza. / Tens montanhas, na tua solidão, / E crepúsculos negros de tristeza!”.22 Neste sentido, aproveitamos o conceito de “transfiguração” 23 que Eduardo Lourenço atribui ao acto criador do poeta pascoaesiano perante a Natureza e alargamolo à poesia de Unamuno, aprofundando aqui a forma como se desenvolve esse processo. A transfiguração da Paisagem faz-se, cremos, não só através da Imaginação como também da Memória, veículo para o eterno na visão de ambos os poetas. De facto, frequentemente, na sua poesia, a paisagem que é transfigurada não é a que têm perante os olhos, mas a que trazem no coração, na lembrança: a paisagem da pátria e a da ilha de Fuerteventura, para o desterrado Unamuno, em Paris, ou a paisagem da terra natal, para Pascoaes, o estudante coimbrão.

No caso de Pascoaes, há ainda a destacar o fantástico poder transfigurador da Saudade na revelação da espiritualidade de tudo quanto existe. Segundo António Cândido Franco, “a palavra de Pascoaes é capaz, à luz da dinâmica da saudade, de transcendentalizar ou encontrar um plano superior para tudo o que refere, e não são só as coisas simples da natureza que se desfazem em perfume, labaredas ou alma, mas são também as mais complexas, como o espaço físico de Amarante, o corpo da mulher amada, o destino dum povo, duma pátria e até o da humanidade inteira que encontram um plano transcendente de afirmação, reexistência ou reelaboração.” 24

Dada a interferência da Imaginação – da Saudade, sobretudo na poesia de Pascoaes – e da Memória na descrição da Paisagem, a noite será então o momento ideal para a contemplação da Natureza, quando as fronteiras entre coisas e seres se diluem e o Poeta encontra correspondências inesperadas, fantásticas.

Assim reconhecem o bardo amarantino (“E quando a noite, espectro de outro mundo, / Por sobre a terra desce, / Todo o meu ser – tão pálido! – arrefece / E se torna sem margens e sem fundo…”)25 e o poeta basco (“Horas serenas del ocaso breve, / cuando la mar se abraza com el cielo / y se despierta el inmortal anhelo/ que al fundirse la lumbre lumbre bebe.”).26

Não nos surpreende, pois, que a obra poética de ambos esteja pejada de imagens simbólicas que sugerem essa ideia de mistério, de indefinido, de incerteza. Na verdade, este cenário de mistério, brumoso e indeciso, permite ao Poeta captar o desdobramento anímico dos seres (“Ó Tâmega, de noite, és névoa etérea, / batendo brancas asas. Num grande amor te abrasas / E sonhas alcançar a luz sidérea! / Mas vai-se a noite, e as tuas asas descem; / Frouxas empalidecem; / Fundem-se no teu seio; e, por desgraça, / São queixumes de dor, água que passa”),27 a tão almejada anulação dos opostos (“el cielo (…) abrazado/ tiene en sus brazos la Naturaleza”).28

E, pelo seu estatuto de vate, de eleito, o Poeta é o único capaz de captar essa harmonia (“Vultos de nevoeiro / Que tão saudosamente povoais / O vale, o ermo outeiro, / Donde sobe, ao luar, a reza dos pinhais… / Entendo-vos a fala / Escura, que se exala, / No céu, onde vivi, quando era pequenino… / Um eco do outro Mundo a percutir-se, além; / Um canto de silêncio, já divino, / Que só ouve quem ama, o poeta e mais ninguém! / É ele que me inspira. / Sentindo-o, logo vibra a minha lira / Aos ventos do Mistério”),29 a fusão dos contrários (“Y allí, en la oscura comunión del cielo/ con la tierra, inquietóse la tortura/ de mi anhelo de ser uno y el mismo,/ y en el abismo de la noche quieta,/ en tierra enraizado,/ dormí la vida,/ y en aquella dormida me bañaron/ con curso lento/ mágicas aguas de renacimiento”). 30

De facto, na visão do poeta pascoaesiano, Alma e Natureza, Espírito e Matéria fundem-se. O Homem sente-se como parte integrante da Natureza, e investe-a, simultaneamente, de espiritualidade: Homem e Natureza são irmãos e são deuses. Perspectivando-se como uma das várias partículas do cosmos, o poeta comunga da harmonia universal: descobre em todas as coisas um reflexo, uma parte de si. E os opostos conciliam-se, enfim, na Paisagem: “Tudo é sonho e desejo; céu e inferno. / Abrasa tudo o mesmo fogo eterno.”31

Unamuno procede também a uma interpretação mística, religiosa da Paisagem, concebendo a simbiose entre Terra e Céu: “La tierra está llena de cielo, y el cielo está como henchido de tierra, y en la soldadura de uno y otra, de cielo y de tierra, en el horizonte se ve cómo se cierra nuestro mundo pasajero”.32 Céu e terra fundem- se, interpenetram-se, e com eles, naturalmente, o elemento divino e o elemento humano, Alma e Corpo.

Assistimos, de facto, ao supremo abraço33 entre Alma e Natureza, cujo representante máximo é, segundo Unamuno, Jesus Cristo (El Cristo de Velásquez).

No entanto, a conciliação dos contrários não é perfeita, nem definitiva…

Em “Elegía en la muerte de un perro”, o sujeito poético unamuniano recusa a concepção de um mundo espiritual que seja “puro espírito”; anseia antes por um espírito que não renuncia à matéria, um espírito que tem cabeça, olhos, mãos, regaço. De facto, a imortalidade a que o poeta aspira não é pura abstracção, mas aquilo que Roberto Paoli designa perspicazmente de “imortalidade de carne e osso”:34 “Não, não é mergulhar no grande Todo, na Matéria ou na Força infinitas e eternas, ou em Deus, aquilo que anseio; não é ser possuído por Deus, mas sim possui-lo, fazer-me eu Deus, sem deixar de ser o eu que agora vos diz isto. (…) Queremos o corpo e não a sombra de imortalidade”. 35

Na sua busca do Ideal, Unamuno não corta as raízes terrestres, não abdica da sua corporeidade: “Yo no sé qué pedazo mío quedará si no quedo yo entero de todo cuerpo espiritual”.36 Tal concepção carnal da alma está igualmente presente no retrato unamuniano da mulher: ela é simultaneamente idealizada e humanizada. E, por fim, é Cristo, Deus-Homem, a suma prova de que o ser humano é divino e de que é humana também a divindade – “desabrochando el manto del misterio/ nos revelaste la divina esencia, / la humanidad de Dios, la que del hombre/ descubre lo divino”37 (“Dios – tinieblas”) –, bem como de que é uma humanidade eterna/imortalidade corpórea a aspiração última do Homem – “¡Tú, así, paloma blanca de los cielos, / nos vienes a anunciar que hay tierra firme/ donde arraigar allende nuestro espíritu/ y que florezca por la eternidad!” 38 (“Paloma”).

Em suma, na perspectiva unamuniana, Alma e Corpo são um só, na Terra, e sê-lo-ão também no Outro Mundo. Ao morrer, a alma não quer abandonar o corpo, o seu lar.

Inversamente, Pascoaes rejeita o seu corpo, rude e frágil, percepcionando-o como “túnica da morte”:39 “Pobre e humano perfil que se apagou! / Amarelas feições que arrefeceram… / Barro enjeitando as formas que lhe deram, / Ninho que uma ave eterna abandonou!”.40 É uma prisão de que é forçoso libertar-se: o Corpo só existe para ser Alma: “O ser humano, como tudo, principia / Em nocturna matéria, que termina / Num éter, numa luz, numa harmonia, / Numa nuvem astral, numa emoção divina…/ (…) Sua carne termina em alma.”41 Como tal, a libertação do Corpo é condição imprescindível para a ascensão à Vida plena, imortal.

Assim sendo, a Imortalidade, em Pascoaes, implica a morte do Corpo, a dor física: “É bem certo que a Dor é a essência do Universo. / A dor é a alma. A dor é o espírito etéreo. / A dor floresce um ramo e faz brotar um verso. / Sofrer, é penetrar no mundo do Mistério…”42 A ascensão espiritual é o fim superior que confere sentido à vida efémera e transitória.

Tal repulsa pelo que é corpóreo porque transitório repercute-se paralelamente no retrato da figura feminina, um vulto etéreo. “Mística Menina”,43 ela é veículo de elevação espiritual, que ao invés de estimular os desejos carnais do sujeito poético, antes o impele a abandonar o seu corpo e a sonhar a pura idealidade.

Se Regresso ao Paraíso representa a ascensão máxima do Espírito na poesia pascoaesiana, notemos, porém, que não se alcança a pura espiritualidade. Ela é inatingível, na verdade. Assim sendo, consideramos que, mesmo na poesia posterior, assistimos a um movimento simultâneo de evolução e de retrocesso, um jogo de forças, na relação entre Alma e Corpo de que a Paisagem poética é reflexo.

Em suma, a resposta conciliadora e harmoniosa que ambos os autores, por instantes, encontraram no seio de uma Paisagem transfigurada em Alma e Natureza foi apenas uma resposta provisória. O próprio Pascoaes reconhece, angustiado, que nem sempre consegue ouvir a voz da Natura: “Mas este amor é grande sofrimento! / De que nos serve amar o que não ama? / Ser dolorosa chama, / Sobre campos de neve, errando ao vento? // Eu ando a perseguir um anjo fugitivo. / Entre turbas de espectros, não sou mais / Do que um espectro vivo! / Sou doido cataclismo / E desprendida folha / Entregue aos vendavais! / Olho meu próprio ser, como quem olha / O fundo dum abismo, / Com demónios pairando, em negros voos aflitos.”44 Na poesia pascoaesiana nem mesmo Cristo suporta a pura espiritualidade e paganizase, como observa Leonardo Coimbra: “Cristo é o morador das brancas ermidas, o amável companheiro que vem pelos caminhos a conduzir os pobres, os cegos, as crianças e dá a toda a beleza da paisagem um grande regaço de amor em que mais se humaniza para a convivência das almas: o rosmaninho das encostas marca as pegadas de Cristo a caminho das ermidas dos píncaros.” 45

Por sua vez, Unamuno prefere uma ilusão à triste e inexorável realidade: “Cúname, Amor, en el divino engaño de la inmortalidad,/ y sírveme de escudo contra el daño/ de la última verdad.// (…) Engañame, mi amor, mas sin que sepa/ que engañándome estás;/ hazme creer que para aquel que trepa/ con fe, una cumbre más// hay siempre tras la cumbre de subida,/ que es eterno el subir;/ hazme creer que no muere la vida/ y que muere el morir”.46

Na verdade, a aproximação dos contrários, plasmada no retrato transfigurado da Paisagem, gorou. A solução que os Poetas encontraram para o conflito que sempre os atormentou foi uma falsa solução, porque persiste a morte. Só a Poesia é eterna.

NOTAS
1 GARCÍA MOREJÓN, Julio, Unamuno y Portugal, p. 97.
2 MARISTANY, Fernando, “Introducción”, in Pascoaes, Las mejores poesías (líricas) de los mejores poetas, pp. 9-10.
3 PASCOAES, Teixeira de, “Renascença Portuguesa”, in SAMUEL, Paulo, A Renascença Portuguesa. Um Perfil Documental, p. 27.
4 PASCOAES, Teixeira de, Belo – Meditações in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 89.
5 PASCOAES, Teixeira de, As Sombras in Obras Completas – Poesia, v. III, p. 18.
6 UNAMUNO, Miguel de, Poesías, in Obras Completas – Poesia I, p. 177.
7 UNAMUNO, Miguel de, De Fuerteventura a París, in Obras Completas – Poesía I, p. 721.
8 Idem, ibidem.
9 PASCOAES, Teixeira de, Sempre in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 203.
10 PASCOAES, Teixeira de, Marânus in Obras Completas – Poesia, v. III, p.252.
11 PASCOAES, Teixeira de, Regresso ao Paraíso in Obras Completas – Poesia, v. IV, p. 124.
12 PASCOAES, Teixeira de, As Sombras in Obras Completas – Poesia, v. III, p. 114.
13 PASCOAES, Teixeira de, Sempre in Obras Completas – Poesia, p. 140.
14 UNAMUNO, Miguel de, Poesías, in Obras Completas – Poesía I,, p. 187.
15 PASCOAES, Teixeira de, As Sombras in Obras Completas – Poesia, v. III, pp. 25-6.
16 Idem, ibidem.
17 UNAMUNO, Miguel de, Rosario de sonetos líricos, in Obras Completas – Poesía I, p. 369.
18 UNAMUNO, Miguel de, De Fuerteventura a París, in Obras Completas – Poesía I, p. 717.
19 PASCOAES, Teixeira de, Vida Etérea, in Obras Completas – Poesia, v. II, p. 194.
20 PASCOAES, Teixeira de, Jesus e Pã, in Obras Completas – Poesia, v. II, pp. 45-6.
21 UNAMUNO, Miguel de, Poesías, in Obras Completas – Poesía I, p. 247..
22 PASCOAES, Teixeira de, Vida Etérea, in Obras Completas – Poesia, v. II, pp. 229-30.
23 LOURENÇO, Eduardo, “Prefácio”, in PASCOAES, Teixeira de, Marânus, pág.VII.
24 Apud PEREIRA, José Carlos Seabra, Do Fim-de-século ao Modernismo, in História Crítica da Literatura Portuguesa, pp. 453-4.
25 PASCOAES, Teixeira de, Sempre in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 153.
26 UNAMUNO, Miguel de, De Fuerteventura a París, in Obras Completas – Poesía I, p. 703.
27 PASCOAES, Teixeira de, Sempre in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 158.
28 UNAMUNO, Miguel de, Rosario de sonetos líricos, in Obras Completas – Poesia I, p. 182.
29 PASCOAES, Teixeira de, Sempre in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 182.
30 UNAMUNO, Miguel de, Rimas de dentro, in Poesías I, p. 213.
31 PASCOAES, Teixeira de, Vida Etérea in Obras Completas – Poesia, v. II, p. 184.
32 UNAMUNO, Miguel de, “Paisajes del Alma”, in Obras Completas – Paisajes y Ensayos I, pp. 508.
33 UNAMUNO, Miguel, Poesías, in Obras Completas – Poesía I, p. 178.
34 PAOLI, Roberto, “Introducción”, in UNAMUNO, Miguel de, Antología Poética, passim.
35 UNAMUNO, Miguel de, Do Sentimento Trágico da Vida, p. 41.
36 Apud GARCÍA BLANCO, Manuel, “Introducción”, in UNAMUNO, Miguel de, Obras Completas –Poesía I, p. 89.
37 UNAMUNO, Miguel de, El Cristo de Velásquez, in Obras Completas –Poesía I, p. 424.
38 Idem, p. 442.
39 PASCOAES, Teixeira de, À Minha Alma in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 108.
40 PASCOAES, Teixeira de, Terra Proibida in Obras Completas – Poesia, v. I, p. 313.
41 Idem, p. 133.
42 PASCOAES, Teixeira de, Para a Luz in Obras Completas – Poesia, v. II, pp. 104.
43 Idem, ibidem.
44 PASCOAES, Teixeira de, Elegias in Obras Completas – Poesia, v. IV, p. 248.
45 COIMBRA, Leonardo, “Prefácio da Segunda Edição”, in PASCOAES, Teixeira de, Obras Completas – Poesia, v. III, p. 213.
46 UNAMUNO, Miguel de, Teresa, in Obras Completas – Poesia I, p. 627.