Conversa com o poeta e traductor José Benito, por Miguel Filipe M.

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO3

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CONVERSA COM O POETA E TRADUCTOR JOSÉ BENITO

Em Portugal ou Espahna, escrever é chorar

POR miguel filipe m.


Fotografías de joÃo varela

Quando lhe liguei, a chamada caía repetidamente, ou a voz que a linha transportava era sussurrante em demasia para um entendimento. Percebi depressa que as coisas se fariam devagar, com tempo e com a satisfação da paciência. Perguntei-lhe pela possibilidade de deixar-se fotografar para a revista. Respondeu-me que fotografias suas ter-lhe-ão feito apenas duas ou três nos oitenta anos da sua vida e confidencioume que, de entre todas, gosta somente daquela em que conversa com alguém, há já décadas, na Cotovia. Quando o encontrámos em Sintra, naquele que seria o domingo mais quente do ano, José Bento, apresentando-se ao João e sabendo que ele era o fotógrafo de que lhe falara, reproduziria com uma exactidão espontânea o que me contara por telefone, uma semana antes, sobre como empregara o primeiro dinheiro que ganhara na compra de uma máquina fotográfica que quase nunca usou. Mas não foi por aí que começámos a nossa conversa.

      Ainda antes das apresentações, feitas de modo mais detido no táxi que nos levou da estação de comboios para a vila, olhava a serra que oscilava sob o caramelejo, e dizia-nos que era ali que os casais jovens marcavam encontro. “Uma espécie de reinvenção moderna da Arcádia”, acrescentou. E sorria. Umas horas mais tarde, enquanto nos preparávamos para abandonar a esplanada do Café Paris, onde se escutava mais o espanhol que o português, explicaria que tinha por hábito caminhar pelos montes após os almoços com amigos espanhóis em sua casa, por alturas da feira de São Pedro, e amiúde se deparavam com eles. 
      O empregado de mesa teve de insistir um punhado de vezes para que decidíssemos o consumo, enquanto a conversa nos envolvia na sonolência do pico da tarde. Aquele homem, como nós próprios, não vinha da metrópole, e isso pressentia-se na languidez dos gestos, no passo lento enquanto recomendava o ar da serra, “coisa de se cheirar”. Mais tarde, entre a vegetação densa dos jardins de Sintra, José Bento explicar-nos-ia que era natural de uma aldeia na região de Aveiro, na qual a sua família causara uma forte impressão com uma cama de rede que trouxera do Brasil e que suspendera entre as figueiras onde costumava dependurar-se com o seu irmão, até cair alguma vez de maduro, tendo-se quebrado o ramo em que se sustinha. O modo como olhava as pedras e recordava Pascoaes, que conheceu, condizia de forma talvez surpreendente com as recordações de Madrid.
      “Fui diversas vezes a Espanha apenas para procurar um livro”, comenta, enquanto o empregado de mesa conquista, após um punhado de tentativas frustradas, a informação de que carece, aprendendo, também ele, a paciência: um descafeinado e um éclair de chocolate. Quem diz Espanha diz sobretudo Madrid, “porque havia mais oferta, e tinha por lá muitos amigos”, mas também Salamanca ou Badajoz. Era a sede da leitura, sempre mais do que o ofício de tradutor, se é que de uma a outro há com efeito alguma distância, que o movia.
      Confrontado com a importância que o catálogo das suas traduções tem no estabelecimento de um cânone da literatura espanhola em Portugal, José Bento recorda que “há por aí um prémio que distingue as figuras que mais tenham contribuído para a divulgação da cultura ibérica, prémio esse que já foi atribuído a diversa classe de gente e que eu nunca obtive”. Pergunta-se: “é estranho, não é?”; e é ele próprio quem responde: “em Portugal não tratamos bem ninguém, mas também não são os prémios que me movem”. A sua vida literária, a haver uma, sempre se pautou, de facto, pelo recato e pelo comedimento: “A minha vida é estar em casa. Não faço a vida literária. Estou em casa, trabalho, passeio, quando era mais novo fazia as minhas viagens. Nunca me preocupei com manter relações. Entrevistas, fotografias, é coisa que praticamente não deixo”.
      Em retrospectiva, cito indiscriminadamente um conjunto infindável e muito respeitável de nomes de autores que constam do elenco das suas traduções (San Juan de la Cruz, Fray Luis de León, Jorge Manrique, Rojas, Góngora, Gustavo Adolfo Bécquer, Garcilaso de la Vega, Francisco de Quevedo, Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez, Vicente Aleixandre, Federico García Lorca, Cernuda, Miguel Hernández, Jaime Gil de Biedma, César Vallejo, Pablo Neruda, Unamuno, Ortega y Gasset, Borges, María Zambrano, Octavio Paz, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Valle-Inclán...), mas não parece muito interessado em falar do passado, cortando-me a palavra: “Acabei há dias por uma segunda vez o segundo livro que traduzi”. De que livro se trata? “O Lazarillo de Tormes”, responde. “Nos meus vinte anos fiz a tradução, li-a, achei que estava uma porcaria e rasguei aquilo tudo, de maneira que fiquei com aquela entalada e nunca mais lhe peguei. Até agora”.

 

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      O trabalho nunca pára: “Agora tenho uma série de coisas para publicar, mas a edição está de rastos. É certo que a Assírio ainda vai dando um jeito. Actualmente o mundo das editoras está completamente esfrangalhado”. José Bento já fez mais pela literatura espanhola do que qualquer ministério ou programa governamental. Não é, no entanto, algo que o preocupe. Recusa assumir a tradução como uma espécie de missão: “nunca tive a ambição de ser um divulgador. Traduzi sempre simplesmente porque gosto e o que gosto de traduzir”.
      Detenho a conversa no ponto em que toma o processo do seu trabalho. “Normalmente faço tudo de forma rápida. Ou então demoro anos e anos. A antologia de Unamuno, por exemplo, andei a trabalhar nela durante cinquenta anos. Quando comecei tinha para aí uns dezoito”. José Bento sabe, desde que me perguntou por mim no táxi, que Miguel de Unamuno me interessa e faz questão de alongar-se sobre o autor espanhol: “Unamuno também me interessa bastante. Interessa-me como poeta e como pessoa. É o maior espanhol do século XX. Até mesmo para aqueles que não gostavam dele e que eram dele tão distintos, como Cernuda, por exemplo, que afirmou que era o maior poeta espanhol de novecentos”.
     É apenas um dos muitos autores de língua espanhola que traduziu, em milhares de páginas que definem um cânone mesmo na perspectiva da historiografia espanhola. Mas a conjuntura editorial actual não está conforme com tamanho empreendimento: “Agora é impensável traduzir muita coisa, porque não há editoras com possibilidade de estarem interessadas. Além disso estou velho e tenho pouca pachorra. Ainda se fosse somente o trabalho, mas depois andar ainda à procura de quem se interesse pelo produto...” Tem preparada, não obstante, uma antologia de Borges a publicar-se em breve, a tradução de Persiles y Segismunda de Cervantes e um livro que lhe é particularmente querido, que está para sair há já vários anos, Ocnos, de Luis Cernuda.
      Apressa-se a desmentir que levou uma vida dedicada à tradução. “Não é uma vida inteira. Fiz muitas outras coisas, trabalhei num escritório, fui professor, sei lá, não foi só traduzir”. Insisto, não obstante, na quantidade e qualidade pouco comuns do seu trabalho de tradutor. “Tantos anos a traduzir espanhol já é mania. Comecei como qualquer leitor, depois experimentei traduzir e gostei. Um tipo entusiasma-se e depois atrás de um vem outro. Mas durante muito tempo não havia editores para as traduções que eu fazia”. Até à criação, em Espanha, de subsídios à tradução de autores de língua espanhola para outras línguas. “Foi então que os editores se interessaram, sobretudo a Assírio, contando com essas ajudas”. Com ditos apoios se publicaram, entre outros, Garcilaso, Quevedo, La Celestina. Das traduções não recebia, porém, grandes contrapartidas financeiras: “Tive sempre outras fontes de rendimento nessa altura. Estamos a falar dos anos 60 e seguintes e eu tinha um emprego em que ganhava razoavelmente bem. Era desse emprego que vivia, nunca das traduções”. Estas eram fonte apenas de trabalho, “para fazer o gosto ao dedo”, como afirma, dirigindo-se ao João: “é como você com a fotografia, não é? Uma espécie de prazer solitário”.
     O primeiro livro que traduziu foi Platero y yo. “Já tinha lido muitos livros espanhóis e teria uns vinte ou vinte e um anos quando um amigo levou aquela tradução ao Jorge de Sena, que gostou bastante dela. Na altura, ele era o director literário da Livros do Brasil e foi lá que o livro se publicou. Foi assim que começou”.
De início, pensou que seria uma experiência sem continuidade. Entre 1958, ano em que se publicou a sua tradução do livro de Juan Ramón Jiménez, e a antologia de Neruda, organizada e traduzida por si, José Bento esteve quinze anos sem publicar. “Durante os anos que se interpuseram entre um livro e outro traduzi um sem fim de coisas para a gaveta. Quando se publicou a antologia, Neruda tinha até uma certa saída, pelas conotações políticas que implicava. E foi só depois de 85 que comecei a publicar com mais regularidade”.
      As coisas começam a tornar-se mais sérias quando a sua vida se cruzou com a de Manuel Hermínio Monteiro, editor da Assírio & Alvim. “Tinha eu na altura uns quarenta anos. Conheci-o por acaso, na rua do Carmo, que eu subia acompanhado de um amigo que nos era, afinal, comum. Ao tomar conhecimento das minhas traduções, mostrou-se desde logo muito interessado em publicá-las”. Foi assim que a Assírio se fez a sua casa predilecta, conta: “se não fosse o Hermínio... Ele é como a alma da edição”.
      Quando começou a traduzir, com vinte anos, José Bento, o mais jovem colaborador da Árvore, tinha já publicado poesia. A tradução era como um exercício de escrita. “Estive em Espanha, onde frequentei cursos de língua e de literatura espanholas na Complutense e em Baeza. A tradução é um modo de ler e, lendo outros autores desse modo atento que a tradução exige, só se um tipo for muito burro é que não aprende. A melhor forma de aprender a escrever é ler coisas boas”. Sobre o modo como as suas traduções influenciariam a sua poesia, afirma: “não me parece que tenha muitas influências”; embora, após uma pausa, corrija: “a gente tem sempre, embora diga que não para nos armarmos em bons. Não há ninguém que não tenha mestres”. Entre os processos de criação e de tradução, que é também um modo muito significativo de criação, há naturais intersecções. José Bento não tem dúvidas: “aprende muito menos o poeta com o tradutor do que o tradutor com o poeta. Alguém que não domine profundamente a sua língua não pode ser um bom tradutor”. Essa é justamente a qualidade que afirma distinguir a excelente tradução da tradução mediana: “O problema maior da tradução nunca foi conhecer a língua de que traduzimos mas sim conhecer a língua para a qual traduzimos”. Eis, porventura, a razão pela qual os poetas são sobretudo traduzidos por outros poetas. José Bento concorda, mas, “apesar disso, temos alguns bons tradutores que não são poetas, como o Paulo Quintela, embora muitas vezes seja acusado precisamente de resvalar para um certo prosaísmo”.
      Consente em que há no processo da tradução uma grande dose de intuição, uma dada sensibilidade mais ou menos espontânea para a língua, e certos momentos em que o tradutor se vê confrontado com a necessidade de decidir entre realizar uma aproximação àquilo que poderá interessar ao leitor ou àquilo que poderá interessar ao original. Em ditos momentos, José Bento afirma que “o objectivo é sempre fazer com que a tradução seja um texto significativo na literatura e na língua portuguesas. Entre o espírito e a letra prefiro manter o espírito, creio. Além disso, entre espanhol e português, e apesar de todas as diferenças, há uma notória proximidade que permite justamente conseguir quase sempre um equilíbrio entre ambas as partes, leitor actual e texto original”.
      Quando lhe pergunto que tradução ou traduções se seguem prefere um balanço: “chega uma altura em que um tipo já traduziu tanto que aquilo se transforma numa espécie de hábito”. Digo-lhe que tal não é necessariamente negativo. Sorri e responde: “dá prazer mas não leva a nada. A tradução tornou-se já uma espécie de fazer pelo prazer do processo em si”. Um pouco como a poesia, acrescento eu, ao que ele acede: “sim, outra inutilidade”.
      Retomamos assim o tema das intersecções entre traduzir e escrever. Leio-lhe dois versos do seu último livro de originais (Quando escreves com uma das mãos prendes / o papel, que a outra vai lavrando, / semeando a palavra e a turbação/ no impulso que excede / a força que as unifica e as separa) e noto que haverá porventura em ditos versos a evidência de uma escrita a duas mãos que apenas a experiência da tradução possibilita. “Por outro lado – afirma -, sinto muitas vezes que o exercício constante da tradução limita a produção de originais. Não é uma questão de cansaço, é uma questão de tornar-se evidente para mim mesmo que há tópicos, temas, coisas já escritas às quais não vou acrescentar nada”. Mas logo abandona o tom de postulação mais especulativa: “No fundo, não sei. Sou muito emotivo, guio-me mais por sentimentos do que por ideias, pelo que sou o pior juiz de mim mesmo”.
      Peço-lhe que me indique o poeta que mais lhe interessa e à sua poesia: “o poeta que mais me ensinou foi Antonio Machado, embora não me pareça que na minha poesia se note a sua presença”. Digo-lhe que a presença espanhola na sua poesia se dá onde esta denota uma tendência para um prosaísmo contido por uma forte coesão métrica. Concorda, acrescentando que não gosta de poesia “com berloques, com muitos enfeites, muitas pilinhas”, tipo que afirma existir bastante em Portugal nas últimas três décadas. “Não gosto de poesia difícil, gosto de uma poesia que um leitor habituado a ler entenda”. Questionado sobre a mais recente poesia ibérica, José Bento afirma ter-se desligado um pouco do que publicam os novos. Não obstante, sublinha que “há ainda bons poetas vivos, e se houvesse um apenas já salvaria a nação”. Por outro lado, abundam, é certo, “os poetas que não têm sequer a décima parte da qualidade que cuidam ter”. Essa é, aliás, “uma prova da existência de Deus. O pensarem todos os poetas que são bons, havia alguém que o dizia”.
      São “tipos corajosos”, os poetas. Vêem-se mais do que amiúde confrontados com o marasmo editorial. E depois há a imprensa, “que simplesmente não fala dos livros, a juntar ainda a uma certa máfia que controla o elenco daqueles de que se fala e daqueles que é necessário silenciar, segundo poderes e compadrios, deixando às vezes irremediavelmente na sombra um conjunto muito considerável de autores”. Após um silêncio, e a propósito, recorda Larra: “escrever, em Portugal ou em Espanha, é chorar”. E é por isso que os poetas são “tipos cheios de coragem. É necessária muita coragem para viver. Já ando a bater nisto há muitos anos. Publiquei o primeiro livro há já cinquenta”. E foi sempre muito difícil, afirma. “O mal não é de agora. Hoje não é mais difícil publicar. Mas também não é mais fácil e isso é que é preocupante. Passaram-se cinquenta anos e os vícios do sistema continuam iguais”. Como se sobrevive? “É preciso ter muita força. Muita força ou muita estupidez, duas qualidades que frequentemente se acompanham e mutuamente aperfeiçoam”, comenta, rindo.
      Talvez por estar ciente das condições do sistema institucional literário, José Bento também entende que a

 

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tradução tem por vezes a dimensão de uma aposta: “A tradução vai para além dos poetas canónicos. O tradutor também aposta, como eu apostei em Francisco Brines ou Eloy Sánchez Rosillo, autores praticamente ignorados em Portugal”. Peço-lhe que me explique a aproximação ao primeiro: “A primeira vez que li Brines fiquei fascinado. Estava a dar formação na Lisnave - isto para verem os sítios obscenos por onde eu já andei, cursos técnicos para engenheiros, a pior gente que há –, e nos intervalos do curso punha-me a ler. Um dos livros que levei e li pela primeira vez ali foi Palabras a la Oscuridad. Fiquei fascinado”.
      Pouco tempo volvido foi a Madrid, em Novembro de 1976. Tinha encontro marcado com Carlos Bousoño, amigo de anos, e pediu-lhe que o levasse a conhecer Francisco Brines. “Ia a Madrid muitas vezes, estava lá mais ou menos tempo conforme o tempo e o dinheiro de que dispunha. E então encontrámo-nos os três: eu, o Carlos Bousoño e o Francisco Brines. Comecei a dar-me com o Brines. Quando ia a Madrid encontrava-me com ele. Só passado algum tempo publiquei a antologia da sua poesia, já com o apoio de bolsas oferecidas pelo Ministério da Cultura espanhol”.
      Sem ditos apoios seria impossível publicar algumas das traduções que fez, tais como a longa antologia da poesia espanhola contemporânea ou aqueloutra dos Siglos de Oro. A primeira merece-lhe uma recordação particular: “chegou inclusive a haver um compromisso meu com o Ministério da Cultura português. Eles comprometeram-se a publicar essa antologia depois de eu os consultar. Acharam bastante interesse naquilo. O David Mourão-Ferreira interessou-se também muito. Entretanto mudou o governo e ele foi corrido e substituído por um meu ‘amigo’ que lixou aquilo tudo”. Depois de uma pausa, prossegue: “Já estão a ver o que é a amizade”. A mencionada recolha viria a ser publicada tempos depois e seria mesmo considerada em Espanha a melhor antologia de poesia espanhola contemporânea.
      Entre obras de uma dimensão só por si respeitável, e obras cuja língua requer um trabalho apurado de versão, José Bento não tem dúvidas: “O livro mais difícil foi sem dúvida o Quixote. Aquilo deu trabalho como o diabo”. Lera já a tradução de Aquilino Ribeiro, “uma versão muito livre feita por um grande escritor” com a habilidade de não resolver nenhuma dificuldade de compreensão ou de leitura de algum momento mais ambíguo do texto original: “Ele salta sempre, não enfrenta as dificuldades”. A revisão da tradução, de que ele próprio se encarregaria, ficaria por fazer, pois entre a conclusão do trabalho e a data prevista de publicação foi-lhe detectado um cancro. Após a recuperação da doença, procedeu à revisão, mesmo tendo sido publicado o livro, “cheio de gralhas”, na data prevista. O trabalho de revisão da tradução tomou-lhe “mais de meio ano, de manhã à noite” e dele resulta a edição de bolso da Biblioteca de Editores Independentes em circulação.
      Há neste labor a tranquilidade e o aparente descomprometimento de quem se habituou a viver entre línguas, entre literaturas, construindo e explorando os bairros às vezes clandestinos da marginalidade periférica aos grandes centros dos cânones nacionais. José Bento desconfia do mito das literaturas nacionais, cunhadas pelas marcas pitorescas: “Isso hoje, mais do que nunca, tende a esbater-se. A literatura pende para a universalização, sobretudo a partir do século XIX. Todos conhecemos a influência de Flaubert em tantos e tantos romancistas, e Baudelaire domina toda a poesia desde a segunda metade do século XIX, excepto a inglesa”.
      É por isso mais estranho ainda o silêncio que insiste em interpor-se entre Portugal e Espanha, mesmo quando lemos como nunca os autores ibero-americanos. “Há um português que afirma que temos de melhorar as relações luso-portuguesas. Conhece-se, trata-se e cuida- se muito mal a língua e a literatura portuguesas em Portugal. Não podemos exportar aquilo que nós próprios não consumimos. Veja que o nosso país, e isso nunca foi tão verdade como hoje, tem estado na mão de meia dúzia de bestas”. É necessário cultivar, como os espanhóis cultivaram, o que em nós é de cunho identitário mais vincado: “A literatura portuguesa conseguiu vingar, no século XIX por exemplo, muito mais significativamente do que a literatura espanhola, precisamente por termos cultivado aquilo que somos. No século XIX, Espanha tem apenas praticamente um grande poeta, Gustavo Adolfo Bécquer, um tipo que morreu com trinta e seis anos”.
      As contas equilibram-se à medida que vamos avançando no século XX: “Portugal tem um poeta que eles não têm, um Pessoa. Mas eles têm um conjunto de poetas muito significativos, começando por Miguel de Unamuno e Antonio Machado, os quais, curiosamente, tinham alguma coisa muito especificamente portuguesa. Depois vem a geração de 27, com três ou quatro poetas absolutamente formidáveis, Lorca, Cernuda, Guillén, que, equivalendo em termos geracionais à nossa Presença, lhe é bastante superior”.
      Não há entre estes autores qualquer um que José Bento não tenha traduzido. Observo-o enquanto um longo silêncio se insinua entre nós e a conversa, à medida que ele fixa o olhar sobre o Palácio Nacional de Sintra, cuja fachada está coberta por andaimes e tapumes. Alguns minutos depois, enquanto caminhávamos em direcção ao jardim do município, onde faríamos as fotografias seguindo a solicitação do João, contou-nos ainda de um projecto para uma antologia da poesia ibero-americana em dois volumes, da paixão pela música clássica e pela pintura de El Greco, de como disse a Vergílio Ferreira, num jantar, que António Nobre não estava tuberculoso por alturas da composição dos poemas do Só. Fez-se tarde, mas José Bento ainda assim esperou que fôssemos nós a iniciar o cerimonial da despedida. Com a mesma paciência. Mesmo que a sua mulher, de entre todas a pessoa que mais vezes mencionou, o esperasse provavelmente mais cedo.

Sintra, 7 de Julho de 2013

 

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