Arnaldo Saraiva – Eugénio de Andrade e a Espanha

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO4

ARNALDO SARAIVA

EUGÉNIO DE ANDRADE E A ESPANHA

As relações de Eugénio de Andrade com a Espanha começaram, a bem dizer, antes do seu nascimento, pois corria nele sangue espanhol. O seu avô Guilherme, pedreiro ou mestre de obras de Póvoa de Atalaia, aldeia que ficava perto de Monfortinho ou da fronteira, fazia empreitadas em Valverde del Fresno, Coria, onde conheceu Juana, com quem casaria e de quem teve Maria dos Anjos, a mãe do poeta. O envoi final de Memória doutro Rio, lembra esse avô “que afagava uma pedra como se fora uma criança, e eu não tardaria a nascer”¹; e um poema de Escrita da Terra celebra euforicamente a terra de Juana, onde, levado pelos avós e pela mãe, “passou largas temporadas da sua infância”²:

A cerejeira o muro
uma
criança canta
contemporânea
apenas
das águas lentas ³

De acordo com o que o poeta me confessou, a mãe dizia-lhe que foi em Coria que lhe nasceram os primeiros dentes. Mas a Ángel Crespo confessou que “as primeiras palavras que pronunciou eram castelhanas”4; e numa resposta recolhida em Rosto Precário deixou dito: Mamita deve ter sido a primeira palavra que aprendi inteirinha, e tal palavra pertence a uma cultura que eu viria a amar sobremaneira. Nos romances que minha mãe me cantava, quando era pequeno, as perplexidades entre o português e o castelhano eram frequentes, e tais perplexidades agravaram-se no resto da infância e começo da adolescência, já em Lisboa, com a minha primeira grande amizade: um rapazito das bandas de Compostela, que introduziu naquela algaraviada algumas palavras galegas.”5
Esse “rapazito”, três ou quatro anos mais velho do que Eugénio (que então andava pelos 11/12 anos), ensinou-lhe alguns palavrões e alguns “rudimentos de sexualidade”, mas levou-o também leitura do Quixote e talvez da poesia de Gustavo Adolfo Bécquer. Foi no entanto pelos seus 16/17 anos que as portas de Espanha se lhe “abriram para sempre”, graças ao convívio com o bailarino Pepe Montes, que fora amigo de Lorca, de quem sabia poemas de cor;

1 Poesia, 2a ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 305.
2 Ángel Crespo, Luis Cernuda “Cartas a Eugénio de Andrade”, Saragoça, Olifante, 1979, p. 34.
3 Poesia, cit., p.212.
4 Ángel Crespo, op.cit, p. 34.
5 Rosto Precário, 6a ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995, p. 41.

Em 1943, passou por Lisboa a jornalista e escritora Matilde Ras, que conheceu Eugénio, então com vinte anos, e dele fez um deslumbrante e deslumbrado retrato no seu livro Ciudad de los Muchachos (1945), talvez a primeira referência espanhola ao poeta português.
Mas quatro anos depois, Eugénio reiniciaria as viagens a Espanha, já não por razões de ordem familiar, e já não se ficando pela fronteira ou por encontros aleatórios, pois o moviam claros objectivos culturais ou literários (a que se acrescentou eventualmente algum objectivo sentimental), e de modo nenhum pesava sobre ele o antigo preconceito anticastelhano, muito vivo na sua região, onde corria não só o provérbio “De Espanha nem bom vento”... (que por sinal adapta um provérbio espanhol) mas também uma cantiga que pedia a Nossa Senhora do Almurtão festejadana vizinha Idanha: "não queirais ser castelhana".
Essas viagens - que realizou pelo menos em 1947, 1952 (quando conheceu pessoalmente Vicente Aleixandre, Ángel Crespo e José Luis Cano), 1957 (quando embora distância nasceu a amizade com Luis Cernuda), 1959, 1961, 1962, 1964, 1969, 1972, 1982, 1983, 1985,1988, 1990... - levaram-no Galiza e ao País Basco, a Madrid, a Barcelona, ou ao sul (Córdoba, Granada, Sevilha, Marbella...), e até às Canárias.
As viagens, as leituras, os amigos determinaram uma relação estreita com a cultura espanhola e com escritores espanhóis, alguns dos quais se tornaram seus amigos ou correspondentes. No espólio de Eugénio de Andrade, hoje guardado na Biblioteca Municipal do Porto, há além da já publicada correspondência de Luís Cernuda, numerosas cartas ou postais de Vicente Aleixandre, José Luis Cano, Ángel Crespo, José Luis García Martín, José Luis Puerto, César Antonio Molina, Ángel Campos Pámpano, Jesús Munárriz, etc. etc.
Embora admirasse muito Cervantes e apreciasse outros prosadores ou dramaturgos espanhóis, o que verdadeiramente fascinava Eugénio de Andrade na literatura espanhola era a poesia, sobretudo a medieval e a contemporânea. Em 1957 ele chegou a planificar com Jorge de Sena uma antologia de “Poesia Espanhola Contemporânea”, que foi inicialmente publicada no prestigiado suplemento literário de O Comércio do Porto e depois incluída no terceiro volume de Estrada Larga. Mas a alguns poetas também se empenhou em traduzi-los. A última edição de Trocar de Rosa (1995) incluiu 3 poemas de Antonio Machado, 3 de Juan Ramón Jiménez, 5 de Jorge Guillén, 1 de Rafael Alberti, 1 de Luis Cernuda, 3 de Ángel Crespo e 1 de Claudio Rodríguez incluindo também poemas de outros poetas de língua castelhana: César Vallejo (4 poemas), Jorge Luis Borges (2) e Pablo Neruda (2), poeta a quem foi buscar a expresssão “trocar de rosa”. Mas o próprio Eugénio lembrou que, além desses (e de Lorca), traduziu outros poetas espanhóis, como o anónimo autor do poema “Espanha” que encerrava a sua antologia de Lorca, e como Salvador Espríu.

6Assinalem-seasprimeirasediçõeslorquianasportuguesasdevidasaEugéniodeAndrade:
-García Lorca - Antologia poética,Coimbra,CoimbraEditora,1946;
-
Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu Jardim,Lisboa,Delfos,1961;
-
Trinta e Seis Poemas e uma Aleluia Erótica,Porto,Inova,1968;
- Dez Poemas, Porto, Inovo, 1978;
- Pequeno Retábulo deD.Cristóvão,Porto,OOurodoDia,1980.
7
RostoPrecário,cit.,p.41.V.também“LembrançadeLorcaparaPepeMontes”,inOs Afluentes do Silêncio,9aed.,Porto,Fundação EugéniodeAndrade,1997,pp.87-90.

EM CATALÃO
- Matèria Solar, trad. de Vicent Berenguer, Valencia, Gregal Llibres, 1987.
-
Ostinato Rigore, trad. de Manuel Guerrero, prólogo de Eduardo Lourenço, Barcelona, Ediciones 62, 1991.
-
Rand el Dir, trad. de Xulio Ricardo Trigo e Júlia Cortès Ortegaio, Lérida, Pagès Editors, 1994.

EM EUSCARO
- Uraren Bezpera /Véspera da Água/, trad. de Maite González Esnalen, Pamplona, Editorial Pamiela, 1990.

EM GALEGO
- De Tanto Ollar, trad. e prólogo de Luis Rei Nuñez, A Corunha, Via Láctea, 1992.

NB - Assinale-se também a edição em português: de Insurreição da Carne (9 poemas), organizada por Ángel Caffarena e editada em Málaga, Librería Anticuária El Guadalhorce, 1992.

Mas preciso lembrar também as edições do MÉXICO-
- Brevíssima Antologia, trad. de A. Ruy Sánchez, Cidade do México, Universidad Autónoma, 1981.
- Historia de la Yegua Blanca, com ilustrações de Martha Avilès, Cidade do México, CIDCLI, 1994.

- e  da VENEZUELA
- Blanco en lo Blanco, trad. e pref. de Francisco Rivera, Caracas, Fundarte, 1987.
- Poemas Escogidos, trad. e sel. de Nidia Hernández, Caracas, Fondo Editorial Angria, 2003.

A obra de Eugénio de Andrade tem tido alguma fortuna editorial noutros países, como a Itália ou a França, e mesmo os Estados Unidos, mas em nenhum como em Espanha, onde também têm sido publicados importantes ensaios que valorizam algumas das suas constantes, como a do paganismo (Ángel Crespo), do amor essencial (José Luis Puerto), da “comunhão cosmogónica” (Fidel Villar Ribot), do equilíbrio entre o clássico e o moderno (Xulio Ricardo Trigo), etc., e onde lhe fizeram importantes entrevistas 42, e lhe deram dois valiosos prémios: o Prémio da Junta da Extremadura, em 2000, e o Prémio Emílio Ferreiro, em 2001.

A Espanha, dir-se-ia, gostou de Eugénio de Andrade. E teve razão em gostar, não só porque a sua poesia um estímulo unidade ibérica e exalta o amor, o convívio e a vida, mas também porque eram sinceras as palavras que deixou no início de um elogio a Ángel Crespo: “Gosto de Espanha, já o disse de mil maneiras /.../ Me gusta España.”43

42 Cito especialmente as de El País, 10/3/1985; de Luzes de Galiza, no 8/9, Outono-Inverno de 1987/1988; de Hablar / Falar de Poesia, 15/8/1998; de Espacio / Espaço Escrito, 15/4/1999; de Clarín, 2/6/2000; e de El País, 17/9/2001.
43 Os Afluentes do Silêncio, cit. , p. 93.