Almerinda Pereira – A corpo a céu aberto – A objecção em Gonçalo M. Tavares e Quim Monzó

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO2

ALMERINDA PEREIRA

Montfermeil, Seine-Saint-Denis, Francia, 1975.

A corpo a céu aberto - A objecção em Gonçalo M. Tavares e Quim Monzó

1. A LINGUAGEM DO ORGANISMO NA LITERATURA IBÉRICA –
UM ESPAÇO PARA GONÇALO M. TAVARES E QUIM MONZÓ

1.1. Se a realidade corpórea, orgânica, visceral, produz uma linguagem cujo fluxo invade também o universo das letras, essa linguagem encontramo-la hoje em Gonçalo M. Tavares. O escritor português de 41 anos, que nos habituou a uma lógica levada ao aforismo, não se inibe de apresentar toda uma filosofia do homem, em compasso binário, e começa, precisamente, pela evidência de que o nosso corpo está dependente do comércio entre substâncias que nele querem entrar e que dele precisam de sair. Do outro lado da fronteira, na Catalunha, viemos a encontrar um paralelo com esta dança dos fluidos de Tavares, quando em Quim Monzó, pertencente à geração anterior, descobrimos o homem no meio de uma guerra que poderia ser a do Reino tavariano, mas que acaba por ser outra: a das teias da vida privada. Ao desmontarem o edifício visceral de personagens arquétipos do homem, ambos os escritores chegam ao elemento que, embora aparentemente hediondo, é portador de uma série de importantes significados. No rasto desta matéria, feia e transgressora, recuperada do âmbito do prosaico ou do clínico, e convocada pelos escritores ao patamar do literário, num género de operação higiénica que torna o repugnante artístico, convidamos o leitor a encontrar toda uma alquimia ou semiótica do humano, empreendendo o percurso que vai do dejecto, sempre periférico, ao objecto, que é também sujeito e síntese de tudo.

1.2. Não é de hoje, porém, esta deambulação das letras por universos intestinos, bem se sabe. As vozes do visceral, as ouvidas pela instituição literária, tiveram um caudal interessante ao longo da história da literatura ibérica. Os pequenos escândalos do corpo que folga para lá das convenções sociais nas Cantigas de Escárnio e Maldizer, a lembrar as clássicas investidas de um Catulo, de um Marcial ou de um Séneca, a picaresca espanhola a braços com os problemas do “comer” e do “descomer”, a sátira burlesca de Gil Vicente, de Cervantes ou de Quevedo, a socorrer- -se do infra-mundo das entranhas, são exemplos do modo como os baixos rituais do corpo serviram de instrumento a uma literatura empenhada em rir da natural imperfeição do homem. Perfeitamente enquadrado, pois, no espírito de carnavalização próprio da Idade Média, o riso maldizente ibérico, gerado na literatura oral, é também um riso maldizente europeu que encontra eco nos excessos rabelaisianos e nos contrastes do Barroco. No sério e iluminado século XVIII, um abade Jazente ou um Bocage, ainda encontram expressão para este tipo de comprazimento entre o grotesco e o obsceno mas, em breve, este corpo abjecto, durante séculos ao serviço da sátira, começa a nada ter de cómico, quando o Romantismo dele se serve para instalar o horror na consciência humana. Disseca-o, mais tarde, o Naturalismo, com uma fria precisão analítica, até à substância mais repugnante. É esta substância que, deslocada do seu contexto natural, ganha voz, pela via da metáfora, no século das grandes revoluções, ainda tão próximo. Assistese a um Luiz Pacheco passeando por Braga, escondendo debaixo da gabardina o sexo intumescido, e anos mais tarde, muitos depois de Abril, à sua poesia apregoada frente a um altifalante de mercado, desses que tantos enxovais venderam invocando os protagonistas de Janete Clair. A estética pachequiana segue de perto a dos Abjeccionistas, gloriosos na forma como entenderam ter de ser feita a catarse de uma sociedade mergulhada em dejectos. A provocação arrasta-se também à Espanha da transição e a um Leopoldo María Panero que as imagens de um Google mesmo à mão mostram a urinar. A palavra, neste período, sobrepõe-se à substância: a merda torna-se gráfica.

Nos últimos trinta anos, a abjecção tem sido, provavelmente, a mescla de todas estas linguagens – da sátira, da pintura do real, da contestação –, e a face suja do corpo não se coíbe de continuar a fazer a sua aparição tanto em solo ibérico como no espaço transatlântico. Com José Saramago, o mais ibérico dos escritores portugueses, somos voyeurs de desconcertantes metáforas pintadas pelo pincel da verosimilhança: a aflição de um homem que, refém do seu próprio carro, se vê obrigado a nele se urinar, ou uma cidade que, sem condições sanitárias para o acolhimento de uma cegueira epidémica, se vê repleta de fezes humanas. A angústia existencial saramaguiana passa também pelo humor das situações que aliam a magnificência e a trivialidade na certeza de que somos seres dotados de vísceras, a elas submissos, de resto, mesmo que tenhamos o mundo sob a nossa submissão: os flatos do rei D. João V estarão, seguramente, presentes na mente de todos aqueles que, por deleite, ou imposição dos programas escolares, terão lido o memorial mais célebre da nossa literatura. Da geração de Saramago, o brasileiro Rubem Fonseca consegue mesmo desenvolver toda uma estética do fecal, trazendo ao conto o expurgo intestinal, dignificando-o. Onde outros vêem o profano, a brutalidade, a repulsa, Rubem Fonseca vê o sagrado, a arte e o desejo, conciliando, assim, realidades antagónicas. Não se trata já de chamar sobre si a atenção através da linguagem apelativa e fácil da escatologia, trata-se, sim, de um modo de questionar o real. Às linguagens, veiculadas pela abjecção, acima apontadas, acrescentamos, pois, uma outra: a da reflexão que obriga a que o homem se curve sobre a sua genitália, numa pose de Rodin readaptada.

Gonçalo M. Tavares e Quim Monzó inscrevem-se nesta linha de actuação. Desmarginalizando o abjecto inerente ao humano, encaixando-o com toda a naturalidade nos seus enredos, conseguem tornar os seus textos galantes – para usarmos um adjectivo à Roland Barthes –, agitando o leitor, e a isto não será alheio o facto de ambos o envolverem na responsabilidade de propor uma resposta para as grandes questões do homem.

1.3. Mas quem são estes escritores que, à semelhança do omnívoro VallcorbalPlana, essa personagem monzoniana, comem e bebem letras como se fossem manjares do outro mundo?

Comecemos pelo mais velho. Joaquim Monzó Gómez nasceu em 1952, em Barcelona, de pai catalão e de mãe andaluza. Foi desenhador gráfico e de banda desenhada, correspondente de guerra, compositor de canções, guionista na rádio e na televisão e, ainda, tradutor. Em 1976, é descoberto como escritor quando recebe o prémio Prudenci Bertrana, mas é com o conjunto de contos, Uf, dijo él, datado de 1978, que a sua escrita ganha força. Paralelamente à sua actividade de escritor assina uma coluna no jornal La Vanguardia. Destaca-se na narrativa breve, baseada muitas vezes na improvisação. Nas suas ficções, tão ancoradas na realidade como na sua face mágica, podemos entrever uma implacável capacidade de análise, disfarçada por uma fingida ingenuidade literária que cativa o leitor mais exigente.

Com o mesmo afã de compreensão deste ser humano feito de inoperâncias, com a capa forte da operância, surge no panorama literário português, já depois do ano 2000, o nome de Gonçalo M. Tavares (o M é de Manuel). Nascido em 1970, em Luanda, o escritor publicou o seu primeiro livro, Livro de Dança, em Dezembro de 2001, uma obra poética na via do ensaio dedicada à temática do corpo, mescla interessante, mas não inesperada, num autor de formação desportiva e de vocação filosófica. Desde então, publicou uma prolífera obra que se apoiou em todos os géneros – da poesia ao drama, passando pelo conto, a novela e o ensaio –, tendo recebido alguns dos mais conceituados prémios das letras portuguesas. Jerusalém, um dos livros da tetralogia O Reino, que aqui apresentamos, foi a sua obra mais galardoada.

Poderíamos, além dos cotejos já apontados, referir outros pontos de tangência entre os escritores, tais como o comprazimento lúdico na construção das suas histórias, uma certa inclinação para um grotesco à maneira de Kayser, uma propensão para os jogos em torno do absurdo, mas é da questão do corpo, unificador de todos estes elementos, que temos de partir. Ao seguir as personagens criadas por Monzó e Tavares, chegamos ao organismo que excreta e segrega substâncias, que emana odores, que produz ruídos, que se exibe por vezes no espectáculo constrangedor do escondido tornado visível, ou do inverso, do desaparecimento, isto é, da amputação, por um lado, ou da própria decomposição, por outro. É através deste organismo, como embalagem-veículo de personagens sem nome, que chegamos ao homem que habita o mundo, aquele que se debate com questões intemporais, que vive situações-limite trazidas pela vivência das armadilhas domésticas ou dos dramas da guerra. Encontrámo-lo, em Quim Monzó, nas suas colectâneas de contos – El mejor de los mundos, Ochenta y seis cuentos e Mil Cretinos – e a na sua obra-prima, um romance intitulado La magnitud de la tragedia. Em Gonçalo M. Tavares, descobrimo-lo na sua tetralogia O Reino de que fazem parte os romances Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a rezar na Era da Técnica.

2. UMA ORGÂNICA RECALCADA – O HOMEM NA PRISÃO DE SI PRÓPRIO

2.1. Analisemos a matéria corpórea da personagem monzoniana e tavariana na perspectiva da retenção, do recalque. Comecemos com as inquietantes questões que Monzó nos coloca: que teria acontecido à tripulação do cavalo de Tróia se os troianos tardassem a levá-la para o interior das muralhas, ou nunca a levassem? Que poderia acontecer a um homem que regressando a casa, depois de um dia de trabalho, já não reconhece nem a mulher, nem o cão, nem a vivenda na qual vive? Como reagiria um pai a quem lhe entregam, na maternidade, o nado morto do seu filho num saco de plástico do El Corte Inglés? Em qualquer um dos casos, a sensação é a do aprisionamento. Mas de quem é prisioneiro o homem monzoniano? Em primeiro lugar, da sua condição biológica: tem de comer e excretar. Se assim não fosse, os tripulantes do cavalo de Tróia não se revoltariam contra Ulisses por terem “necessidades maiores”, nem comeriam, ao cabo de poucos dias, os cadáveres dos companheiros, nem beberiam a própria urina. Se assim não fosse, o homem que não sabe onde fica a casa de banho da sua própria casa não disfarçaria uma ida ao jardim para aliviar a bexiga, sob o olhar reprovador do vizinho a lembrar um gigante de Ron Mueck. Se Quim Monzó nos coloca face a face com o homem submisso à sua fisiologia, condenado como ser biológico, incapaz de se impor às suas vísceras que acabam por desobedecer-lhe e o denunciar, é com a intenção clara de pôr em evidência o facto de estar também condenado pelas suas próprias construções: a astúcia bélica, as convenções sociais, os trâmites das burocracias.

O saco de plástico do El Corte Inglés, do conto que tem o irónico título de “Vacaciones de Verano”, acaba por ser o símbolo de uma sociedade asfixiante que tolhe com estranha leveza o homem que, sendo inventor dos mecanismos repressores da sua natureza, se tornou vítima das suas próprias invenções. Ver-nos-íamos tentados a dizer que nunca um saco do El Corte Inglés assumiu com uma página de literatura uma relação tão comprometedora: na verdade, se, por um lado, se compromete a ser o símbolo de uma cultura basura, descartável e fria, com a qual se coaduna a falta de sensibilidade e de bom-senso das convenções dos serviços, neste caso, os hospitalares, por outro, ele é portador de uma energia positiva, a mesma de um saco a dançar ao vento de uma beleza americana levada (ou lavada) para o cinema, na medida em que descortinamos nele o gene do amor paternal. O paradoxo do saco de plástico reside no facto de um objecto insignificante e reproduzível aos milhões poder conter o insubstituível, o que é único; e daqui nasce a ironia: o insignificante demorará mais de trezentos anos a deteriorar-se, enquanto que o insubstituível tardará muito menos; a matéria orgânica entrará em putrefacção assim que ocorra a morte, e a memória da pessoa extinguir-se-á com a morte dos que a conheceram e amaram. Tenha o ser humano deixado de viver à oitava semana de gestação ou aos oitenta anos, dificilmente, em todo o caso, demorará trezentos anos a desaparecer.
Somos perecíveis – essa é a nossa grande verdade. E quantas vezes não seremos também pais do aborto?

2.2. Mas voltemos à urina libertada pelas personagens de dois destes contos (referimo-nos a A las puertas de Troya e Casa con jardín) depois de uma luta interna contra os esfíncteres, traduzindo a humilhação do homem face ao seu edifício visceral. Ela não tem, ressalve-se, o mesmo valor da urina libertada antes da aprendizagem da vida social. O sentimento de posse e a sensação de voluptuosidade da micção infantil, correspondente ao que Freud designou como a fase do erotismo uretral, não se encontra nas personagens a que aludimos, mas vemos, pelo contrário, alguns cotejos com as personagens masculinas de Gonçalo M. Tavares. Elas voltam a ser crianças, ou, numa escala universal, voltam a ser símios com a necessidade de delimitar o seu poder, pela potência do jacto portador de uma temperatura a lembrar o fogo. A urina feminina tavariana não recupera este passado de primata do homem. Ela não é potente: carece de verticalidade. Ela é vergonha, incontinência provocada pelo riso, frustração. A louca Mylia, do terceiro livro da tetralogia, nunca haverá de conseguir urinar como um homem de encontro à parede da igreja. Já em Monzó, parece não haver uma oposição entre a urina masculina e a feminina quando, ao fazer a descrição da criação do mundo, fala dos anjos que “mean hacia la tierra con pichas y coñitos de plástico”. Esta urina, forte como a de Gulliver ou a de Gargântua, irriga o mundo com aparência de brinquedo e parece-nos desprezar qualquer ideia sexista de poder.

Fixemo-nos no homem da casa com jardim que busca desesperadamente onde urinar, como um Billy Brown saído da prisão na pele de um Vincent Gallo. Kayser fala-nos do grotesco como uma estrutura que encontra a sua natureza na expressão de “mundo alheado”. Este mundo é o nosso, o que nos é familiar, mas que se vê repentinamente alterado. Ora, o homem que não reconhece a mulher nem sabe onde fica a casa de banho da própria casa é, na nossa perspectiva, a personagem mais exemplificativa do que pode ser o homem grotesco e recalcado, não só porque entre ele e o mundo não existe possibilidade de concordância, mas porque foi apanhado a não saber lidar com essa impossibilidade, com esse absurdo, dando a primazia da sua atenção ao poder “jorrante” da sua urina.

 As personagens tavarianas que urinam também de maneira não convencional não são tão grotescas, porque nelas não há angústia face ao desconcerto do mundo ou se a há, problematizam-na mentalmente. O leitor, como o leitor de Kafka, é arrastado para a situação absurda, mas enquanto que pode dar um sentido à guerra de Gonçalo M. Tavares e à tragédia que se passa no interior de um cavalo de Tróia, ou de um saco do El Corte Inglés, em relação ao que se passa em “Casa con jardín” não o pode fazer, e nisto torna-se cúmplice da aflição do protagonista ao mesmo tempo que da condenação do olhar do vizinho. Um leitor nestes moldes será, também ele, grotesco? Estará também ele prisioneiro?

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GONÇALO M. TAVARES

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QUIM MONZÓ

3. UMA ORGÂNICA A DESCOBERTO – VOZES DO VISCERAL

3.1. Até ao momento, assistimos à retenção das excreções físicas ou ao seu desprendimento involuntário, fora das normas sociais, como manifestação de umas vísceras desobedientes, com voz própria. Debaixo da metáfora, descobrimos um homem que se verga a este império orgânico, não logrando com êxito uma interpretação do mundo absurdo com o qual se depara e que ele mesmo criou. Neste ponto, damos conta da forma como essas vísceras desobedientes gritam, riem à gargalhada ou choram soluçando. Fazem-no com a cumplicidade do homem que se junta a elas, como quem se alia a um inimigo incapaz de vencer.
O exemplo mais gritante da libertação das vozes do visceral é-nos dado quando uma das personagens de Monzó vive uma experiência orgástica inesgotável. A euforia, a busca permanente da satisfação do prazer e o encontro entre este e o desprazer são as fases de um estado do corpo que os especialistas na Perversão chamam de gozoso. Na junção destes dois opostos, vê Joan Joseph Isern o eterno conflito entre Eros e Tanatos. E aqui enlaça a “filosofia paradoxal” de Georges Bataille que, erotizando a morte, a torna desejável, sendo esta a única maneira de a aceitar. O maior fantasma do homem entrelaça-se com a sua maior fonte de prazer. A correlação entre estes dois elementos é tão evidente que a expressão “petite mort”, tão cara a Bataille, continua a designar o orgasmo, pelas sufocações, suspiros e crises epilépticas presentes quer na cópula, quer na morte. É, segundo ele, através do erotismo que o homem supera a sua descontinuidade. E há, de facto, um desejo de superação neste protagonista de La magnitud de la tragedia: ele não é já o prisioneiro a que fizemos referência anteriormente, é um prisioneiro que tenta potencializarse ao máximo como homem.
Não obstante os esforços realizados, ainda não é nesta fase que a personagem de Monzó vê a possibilidade de se libertar, de se perpetuar, pelo menos a masculina. A feminina – e abramos novo parêntesis para questões “sexistas” – parece estar a um passo de avanço, quando num dos relatos da colectânea mais antiga do autor, a sua ejaculação, mais decorrente da masturbação do que da relação sexual, assume proporções desmesuradas, espalhando pelos campos o seu odor, como um fertilizador omnipresente, ao ponto de os prados não ficarem para sempre inexpressivamente boticellianos.

3.2. Esta orgânica a descoberto é também visível em Gonçalo M. Tavares. A guerra de O Reino afasta a vergonha e permite que no acto da “fornicação”, como refere, se veja com nitidez o rosto animal (o mais verdadeiro) ao lado do humano. Este despudor permite que os cheiros venham à superfície como se a vida 1, uns milímetros abaixo da pele, como a enuncia Pedro Eiras, se deslocasse para a esfera da vida 2 e fosse o móbil de novos jogos de poder, incluindo o desejo canibal. É o regresso do primata, tão caro à escrita tavariana. Em Um Homem: Klaus Klump, os presidiários poderiam, de facto, constituir uma tribo de chimpanzés machos: estão quase, ou totalmente, nus e brincam com o pénis dos novos companheiros chegados à cela, num género de ritual sádico de boas-vindas; o macho dominante submete aos seus caprichos o recém-chegado, babando a sua nuca. Aqui, os maus cheiros acumulam-se, mas os vómitos são raros
Na loucura exterior à prisão e na doença também não há pudor. As substâncias estão a céu aberto, como na guerra. No romance a que acabámos de aludir, elas vêm à tona da água quando Catharina e Johana, mãe e filha, tomam banho na mesma água, tendo esta a preocupação de lavar cuidadosamente a vagina da mãe que tem uma ferida que não cicatriza. Nesta mistura de sais corpóreos encontram estas personagens a coesão familiar que atinge o seu ponto máximo quando a filha se torna louca como a mãe, como se a partilha das mesmas águas fosse um baptismo neste tipo de “lucidez alternativa”.
Se com Quim Monzó, o repugnante é ocultado debaixo de uma aparente festa de todos os dias, não obstante a força invasora da matéria pastosa e líquida, com Gonçalo M. Tavares esta, como o acto sexual em si, torna-se muitas vezes nojenta (a este adjectivo o autor recorre amiúde) porque se baseia na vivência crua e obscena do carnal. O ser humano perde a dignidade e confunde-se com o gado. Voltamos ao tópico da carne e com ele somos forçados a relembrar o aborto, de Monzó, no saco de plástico que passa a noite no frigorífico onde antes estiveram os enchidos, ou que no dia seguinte se demora face à vitrina que outrora fora de um talho. Em Tavares, fala-se muito de carne: da que se oferece ao sexo ou da que jaz por terra em tempo de guerra, mas também da que constituiu alimento e simboliza a prosperidade em tempo de paz. No homem gordo do talho que corta a carne com uma brutalidade nova, quando cessa a guerra, está o homem que trabalha e come. Talvez não faça, com a ingestão da carne, grandes progressos intelectuais, como o anunciou Balzac através da voz do seu médico de província, mas alegra-se com a mudança e tira partido dela como um talhante irlandês que apresenta orgulhosamente à sociedade uma esposa com o rosto de Demi Moore. O nosso escritor coloca-nos perante uma angustiante evidência: a de descobrir que esta prosperidade, que ironicamente abre o trilho à prosperidade moral ou espiritual, foi fundada na imolação de tanta gente. E a questão coloca-se: até que ponto, ao nos servirmos do sacrifício narrado pela Bíblia, não estamos a procurar uma justificação para os nossos actos mais bárbaros? Nada de mais imaculado do que um mercado colorido de frutas e legumes numa manhã de sábado na douce France de Vichy, com o senhor do talho na ombreira da porta a aguçar a faca e a dizer bom dia aos passantes. Porém, que gritos esconderá esta tela viva? É quando estes se ouvem que a personagem que está quase a ir para a cama com o protagonista, Joseph Walser, volta a dar-se conta de que este não tem dedo e o manda parar: “Desculpe, senhor Walser – disse Claire. – É o seu dedo. Não consigo esquecer-me dele”. No meio da hipocrisia final, da crença de que tudo está bem, encontramos nesta personagem feminina a capacidade de não esquecer. Com o dedo de Joseph Walser, que já não existe, volta a perder-se a esperança do toque com o transcendente, à maneira de um fresco de Miguel Ângelo. A dor está demasiado a descoberto.

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QUIM MONZÓ

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GONÇALO M. TAVARES

4. UMA ORGÂNICA EXPLOSIVA – UMA TENTATIVA DE CATARSE

4.1. O dedo amputado de Joseph Walser abre caminho a que neste momento se dê tratamento à substância corpórea na perspectiva do seu extravasamento e do seu estilhaçamento. Iniciámos a nossa análise com a observação de uma orgânica calada, assistimos à saída do seu estado de timidez, ao seu extravasamento inesperado, para chegar, neste momento, à sua explosão, feita de um estilhaçamento que pretende, em simultâneo, estar em toda a parte e em parte nenhuma. É esta exterioridade de um organismo que nos interessa, com todas as suas possibilidades de metamorfose, contemplem elas a encarnação ou a “excarnação” do espírito.

As personagens de Monzó acabam por encontrar o equilíbrio quando se vêem obrigadas ao exílio devido a uma forte halitose, ou quando vêem o seu fígado rebentado pelas paredes do quarto. Abstraem-se das preocupações quotidianas quando cortam a orelha ou apagam os rastos de uma vida inteira quando esvaziam a casa até à mutilação. Sentem-se, enfim, parte integrante de uma família quando lhes amputam um dedo, ou as únicas com capacidade para ouvir o outro, num bar, quando têm um olho de vidro.

A anormalidade torna-se norma nestas histórias, esperança de regeneração. Um fígado que, explodindo, deixa as paredes como um Pollock, ou um buraco num corpo a lembrar a causa-efeito previsível no imaginário infantil, tornase exemplo da forma como Monzó manuseia as suas personagens sob a névoa de um interessante humor negro. O buraco do homem sem entranhas é um buraco sem dor, porque ele parece estar equipado dos mesmos super poderes de um herói transformer que sara as suas feridas de forma automática. Neste sentido, a opção por este órgão resulta numa escolha feliz porque é o único capaz de se regenerar e “voltar a crescer”. O delírio do moderno desenho animado junta-se, assim, ao delírio mítico do fígado de Prometeu interminavelmente devorado, incessantemente vomitado. “El juramento hipocrático” oferece-nos, efectivamente, mais uma metáfora do mundo às avessas no qual vivemos e acaba por dizer-nos que a anormalidade traz um maior equilíbrio à orgânica do mundo. A imortal questão da ordem das coisas é posta a nu por Quim Monzó que, ao debruçar-se sobre ela, critica, por um lado, uma sociedade nem sempre justa, ao mesmo tempo que nos mostra as diferentes possibilidades de uma realidade que conhecemos apenas do ponto de vista das convenções. Neste conto, não só se toma como correcto o que está mal (beber muito faz bem ao fígado), como também se busca depois da explosão surrealista uma prova verosímil para esta nova premissa.

À luz da escatologia judaico-cristã, poderíamos ver nestas situações de despojo o símbolo do necessário divórcio com o mundo para um recomeço seja possível. Mas terão os homens de Monzó e de Gonçalo M. Tavares capacidade para o enleio com algo de superior depois da ruptura?

4.2. Perante o moribundo do último romance da tetralogia de Tavares, chegamos a acreditar que sim, quando o cuspo que sempre projectou na cara dos fracos antecede a visão da luz que o impede de odiar.

Sem força suficiente para cometer o suicídio, premindo o gatilho do revólver que haveria de lhe dar uma morte digna, Lenz Buchmann não tem outra saída que a de receber a visita de um padre para que lhe seja dada a extrema-unção. É então que se produzem internamente uma série de acções que não ganham visibilidade fora da escala microscópica do eu. Exteriormente, constituem um nada que deixaria em aberto a questão, “ter-se-á convertido Lenz Buchmann?”, se o narrador não partilhasse com o leitor a sua omnisciência. A personagem tem intenções: atacar. E o ataque, neste momento, consiste em, com todas as suas forças, puxar um depósito de saliva da sua boca e projectá-lo para a face do padre, qual um canhão em pleno cenário de guerra.

Lenz é mais grotesco do que o surdo-mudo que cuida dele, do que o mendigo que bate à sua porta ou do que todas as outras personagens loucas, doentes, deficientes ou estranhas que vão desfilando ao longo dos quatro romances da tetralogia. Este grotesco lenziano, diferente do grotesco cómico de Bakthin, explora a abjecção e a imoralidade do ser humano para lá de todos os limites. É perante espectadores com características do mendigo ou do louco, que Lenz Buchmann se apodera sexualmente da sua mulher.

Ainda que Gonçalo M. Tavares coloque na boca de Rafa todo um rol de obscenidades, é Lenz o grotesco. Do louco, espera-se a incontinência enferma da palavra, mas do médico não se espera, nem se tolera, que tenha prazer ao escutá-la. Como um Frankenstein que se confunde com a sua criação, aqui se confunde também a loucura de uma e de outra personagem. E a do médico há-de sobrepor-se à do louco. Com efeito, a verdadeira monstruosidade não está no humanóide, no ser humano diminuído ou marginal, mas na deformação mental daquele que o usa. A excitação sexual de Rafa leva à tentativa de violação da mulher de Lenz. Este reage matando o louco com um tiro, mas é quando mata a própria mulher que a sua monstruosidade se manifesta. O horror continua a mostrar-se no comprazimento que sente na observação dos crânios desfeitos, na mentira que forja para se ilibar do crime e no riso que contém quando o polícia mais graduado da cidade lhe diz palavras de consolo lamentando a tragédia.

Este Lenz capaz dos actos mais macabros é o Lenz que vemos a cuspir na cara do padre. A possibilidade de viragem neste homem, que sempre usou o ódio como motor da sua vida, acontece mais tarde: sozinho no quarto, Lenz está face ao televisor ligado. Só os seus olhos parecem ligados à vida. A luz que vem do aparelho é uma luz forte e estranha; não é da mesma família da luz eléctrica – explica-nos o narrador. Esta luz dá-lhe prazer e protecção, e, pela primeira vez, ele sente que não é capaz de odiar. Essa luz chama-o, pelo nome, e só então ele se deixa ir. Triunfo de Deus sobre a Tecnologia ou desta sobre Aquele? Poderíamos ver no final desta tetralogia não um conflito entre os dois reinos, mas a hipótese de uma complementaridade entre eles de que o cuspo de Lenz Buchmann seria a declaração, embora inconsciente. Teríamos de ver na saliva o selo desta fusão, a cola que une, e não o desprezo e o escárnio. Mas deixar-se ir constituirá uma viragem da personagem para si própria ou para Deus? Quer defendamos um, quer outro encontro parece-nos evidente que este episódio final encerra uma demanda, ainda que aparentemente passiva. No entanto, o acesso à realidade microscópica do eu foi-nos vedado no momento em que Lenz deixa de sentir ódio, ao contrário do que aconteceu no momento da cuspidela. Jamais poderemos saber se a procura não terá sido activa debaixo da aparência da passividade. Jamais poderemos saber o que se passou naquele milímetro abaixo da pele. Este respeito do narrador pelo momento em que a personagem se encontra (ou encontra Algo), este silêncio desta entidade sempre tão omnisciente, tão cúmplice com a visão fria das personagens, poderá ser um sinal de que uma outra omnisciência, feita de outra matéria, se levanta e o faz calar.

4.3. A baba do moribundo de Tavares há-de juntar-se a uma outra baba: a da fauna cadavérica. Parece-nos que expurgados todos os males através da vivência excessiva de paixões e pulsões, o homem estará apto a elevar-se, a encontrar-se com o divino, consigo mesmo, ou simplesmente a tornar-se húmus da terra, princípio de tudo.

Com a morte, as funções de comer e excretar, que mantêm o organismo vivo, cessam; outras, como a de copular, terminam também. Deixam de ser libertadas substâncias provenientes da digestão ou da actividade sexual. Ao morto tapam-se-lhe os orifícios naturais; mas é a partir deste momento que o corpo começa a exalar o que de mais repugnante há nele, como se sem aliados que o ajudassem a disfarçar a sua natureza inconveniente, não tivesse mais remédio que deixar-se domar definitivamente por ela, tal como no-lo explica Gonçalo M. Tavares em dois contos distintos da obra água, cão, cavalo, cabeça. Em “O pé”, diz-se que os cadáveres são como bebés recém-nascidos que se entregam aos outros e às coisas por não terem força para qualquer recusa. Em “A moeda”, diz-se que quando estamos vivos e ricos somos pouca natureza e que quando estamos velhos e doentes somos mais natureza; acrescenta-se ainda que quando morremos somos ainda mais natureza. Somos, pois, confrontados, através destas palavras, com a presença de um novo protagonista: o cadáver.

Num outro conto da mesma colectânea, “O pescoço grande do cisne”, Gonçalo M. Tavares fala-nos de um cadáver de um homem nu, esquecido no corredor de um hospital. O corpo está de ventre voltado para a maca porque, nas costas, alguém lhe colocou umas asas de anjo pintadas de branco. Este disfarce, que é, a nosso ver, prótese ou implante do divino rejeitado pelo corpo, de nada serve para a dignificação da personagem. “Podes pôr asas atrás das costas a fingir que és anjo. Mas serás enterrado à mesma”– diz-nos a voz do narrador.

Em tempo de guerra, a morte é entendida como uma fatalidade natural, algo que a terra espera que lhe devolvam. Em A máquina de Joseph Walser, a frieza da personagem poderosa dá-nos conta desta evidência: “os mortos morrem, é assim mesmo, nenhuma novidade. Enterram-se, escondem-se, desaparecem rapidamente”.

O desaparecimento do corpo morto do homem não contempla nesta visão objectiva da morte uma continuidade noutra dimensão. Mas quererá o narrador de Gonçalo M. Tavares, o grande cúmplice da pessoa incógnita que colocou as asas de anjo no cadáver esquecido no hospital, quererá ele reivindicar a presença de Deus e não no-lo queira mostrar com o mesmo orgulho de um Lenz Buchmann? E de que matéria será feito este Deus? Numa afirmação que encontramos em Biblioteca, talvez encontraremos uma resposta: “Se a alma é uma víscera não quero pensar o que será Deus.” Ver-nos-íamos levados a assumir que Deus é excreção, substância que se projecta para lá do corpo, que dá vida, que regenera. Neste sentido, estamos próximos do pensamento de Dominique Laporte quando estabelece um paralelismo entre a merda e o espírito e insiste na ideia de que existe uma merda boa, que purifica.

Entre o homem quotidiano e profano, que se preocupa com a sua pegada ecológica e que começa a olhar para o lixo como um objecto que pode reciclar, e o homem que continua a buscar no sagrado a possibilidade de renovação espiritual, encontra-se o dejecto e o abjecto que funcionam como repelentes, separadores da relação do sujeito com o seu objecto, mas também como ímanes capazes de operar a catarse no sujeito, ao jeito aristotélico, de modo a permitir o reencontro com o objecto. Se a semelhança fónica entre os três vocábulos, abjecto/dejecto/objecto, corrobora a proximidade dos conceitos, a massa de que são feitas as realidades por eles expressas confundem-se e diluem-se como a matéria de um corpo invertebrado que, senhoreando a realidade subterrânea, se apodera da vida que perdura

5. OUTROS TRAJECTOS, UM MESMO DESTINO – UM APONTAMENTO CONCLUSIVO

Na passagem de uma orgânica recalcada para uma orgânica a descoberto e, por fim, explosivamente libertadora, damo-nos conta de que outros enfoques poderiam ser feitos lado a lado com o que fizemos em torno do corpo doloroso, gozoso e glorioso. Uma análise desta matéria unicamente do ponto de vista dos órgãos excretores ou secretores, ou do ponto de vista das substâncias excretadas e segregadas conduzir-nos-ia, seguramente, a um mesmo porto.

Tendo em conta o primeiro ponto de vista, notamos, ao longo deste artigo, que a expulsão de substâncias passou a ter como cenário não já as partes baixas do corpo (ânus, uretra, genitais) mas as partes superiores (essencialmente a cavidade bucal). Se, na leitura que fizemos da obra de Monzó e de Tavares o rosto ganha protagonismo em relação aos órgãos da defecação, da micção e da cópula é precisamente porque procuramos, pela via de um certo simbolismo, mostrar, através deste movimento ascendente, o trajecto de um homem que busca elevar-se, começando por aceder ao primeiro andar de si próprio. Há nesta viragem para um patamar superior do corpo uma interessante significação que passamos a explicar, sempre com o apoio de Georges Bataille (em o Ânus Solar): “a extremidade facial assumiu uma parte – relativamente fraca mas significativa – das funções da excreção até ali voltadas quase todas para a extremidade oposta, e os homens passaram a escarrar, tossir, bocejar, arrotar, assoar-se, espirrar, e a chorar muito mais do que os outros animais, tendo sobretudo adquirido a faculdade estranha de soluçar e rir às gargalhadas”. Ora, nesta alteração de territórios da excreção, encontramos um distintivo animal vs homem, que é também um caminho para uma maior dignificação deste último. Mas a nossa leitura pode ir ainda mais longe: o abjecto, o que, segundo a etimologia do vocábulo, deve ser rejeitado e atirado para longe, torna-se o rosto do humano, uma cara que também excreta, ainda que se creia que com rostos de porcelana ou toda uma cosmética de boneca se possa dissimular esta realidade. Só aceitando esta verdade e convivendo com ela, o homem estará apto a renovar-se e a descobrir o seu papel no ciclo da vida e da morte.

Tendo em conta o segundo ponto de vista, enunciado no parágrafo que antecede o anterior, é interessante constatar também que, no leque de substâncias que têm lugar nas obras dos autores (fezes, urina, sémen, saliva, vómito), o excremento fecal seja o que tenha uma presença mais reduzida, quase mesmo residual e com uma tendência para anular-se, motivo para nos questionarmos sobre este afastamento dos autores em relação ao que consideramos ser o arquétipo de todas as substâncias. Dizemos arquétipo porque, de facto, o excremento fecal é o que se reveste de um maior potencial cromático e odorífico, o que detém maiores propriedades de moldagem e o que ganha significados para além da matéria, tendo uma ampla vigência no domínio do conceptual, do simbólico.

A alusão ao acto de defecar ocorre em muito menor número, em ambos os autores, e tal não será devido à simples evidência de que urinamos mais vezes do que as que defecamos. Parece-nos, em primeiro lugar, ser um sinal manifesto de demarcação de distâncias em relação a toda uma tradição literária jocosa em torno da matéria fecal. O grosseiro “cagar”, acompanhado de gases e esgares, desde sempre ofendeu mais e fez mais rir do que o líquido “mijar”. As gárgulas dos monumentos antigos, de traseiros para o ar, suscitarão mais a gargalhada, sobretudo se delas ainda se verter algum líquido escurecido do que os meninos despidos das fontes com cara de anjo a verter água. Quim Monzó e Gonçalo M. Tavares afastam-se de Catulo ou de Quevedo e de tantos outros escritores que verbalizaram o excremento humano atirando-o sob a forma de palavras injuriosas ao rosto daqueles de quem escarneceram. Os nossos escritores não se coadunam com este tipo de grotesco e mostram não ter vontade de rir, pelo menos, não dessa maneira. Observemos um Quim Monzó, cada vez mais afectado pelo síndrome de Tourette, a olhar de soslaio uma plateia de espectadores, ou um Gonçalo M. Tavares contemplativo, cerebral, em cada pose fotográfica. Assim como se afastam do grotesco medieval ou renascentista, em parte recuperado dos Antigos, eles também se afastam da atitude provocatória dos que, ainda não há muito, levantaram o dedo médio a um pai tirano, com vocábulos obscenos envernizados de merda e ranho. A provocação existe, mas a um outro nível, menos explícito, mais irónico, portanto. E o dedo já não sabe para onde apontar. Daí talvez a amputação. Mas poderemos fazer uma segunda interpretação em torno da quase anulação da defecação – ou do seu menor protagonismo em relação à micção – na obra dos autores. Necessitamos, para tal, de recuar ao estado fetal do ser humano. Dizem-nos os especialistas obstetras que os bebés no interior do útero materno libertam urina, saliva e células da pele, mas que dificilmente defecam. Exceptuando as situações anormais em que o feto está em sofrimento, o mecónio (assim se chamam as suas fezes) só é libertado quando o bebé estiver pronto para nascer. Num arrojado símile, ousamos ver no homem de Quim Monzó e Gonçalo M. Tavares o feto imaturo, que urina mais do que defeca, ainda não preparado para nascer, neste caso, para renascer. Estamos, no entanto a um pequeno passo deste acontecimento, tão depressa abramos as mensagens seladas pelo cuspo de um moribundo ou a porta de uma casa que foi nossa a vida inteira, sem disso nos termos dado conta.