Inês Lourenço – O Segundo Olhar – Selecção, organização e posfácio de José Manuel Teixeira da Silva

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO6

miguel felipe mochila

O Segundo Olhar

inês Lourenço
Selecção, organização e posfácio de josé MAnueL teixeirA dA siLvA

Companhia das Ilhas, 2015.

Image

Não é a primeira vez que a poesia de Inês Lourenço é objecto de uma antologia. Em 2012, Manuel de Freitas fizera já a sua própria selecção de trinta poemas da autora, em Câmara escura, numa edição da Língua Morta que, na especificidade própria do exercício de leitura assumidamente pessoal então realizado, e na brevidade do mencionado volume, não desejava “traduzir um corpus poético na sua globalidade – linhas dominantes, vínculos, tensões e distensões”, como é intenção do antologiador da presente edição. E é assim que a editora açoriana Companhia das Ilhas nos oferece um dos mais relevantes livros publicados em Portugal em 2015. O Segundo Olhar compreende uma exigente selecção da poesia de Inês Lourenço, trinta e cinco anos depois da estreia da autora, em 1980, com Cicatriz 100% (Editora das Mulheres), num gesto decisivo de afirmação de uma obra que se exibe aqui, retrospectivamente, com um fulgor e coerência ímpares no domínio da actual poesia portuguesa.

A organização do volume, conduzida pelo poeta José Manuel Teixeira da Silva, é exemplar, preferindo ao critério cronológico aqueloutro temático, amplamente justificado pela referida intenção globalizante, sem cair na fácil tentação de orientar a mesma no sentido de um exercício catalogante que estrangulasse a abertura de uma poesia fértil em remissões inter e intratextuais. As nove secções que articulam o volume (“Gravura”, “Talvez ela gostasse deste rio”, “Algum coração de árvore”, “A magnífica destreza”, “Decálogo dos Cansaços”, “Nenhum apodrecimento é suave”, “Porta de armas”, “Cintilam suspensos nos dedos” e “Pequena voltagem”), a que acresce um posfácio panorâmico, a um tempo informado no que respeita a precedentes leituras da poesia da autora e lucidamente contaminado pelo exercício de selecção levado a cabo, fortemente interpretativo, desenham um mapa apenas sinalizado, sem conduzir excessivamente o leitor por um conjunto de poemas que tem justamente no equilíbrio entre a pluralidade temática e tonal e a coesão interna de uma certa vocação do olhar, pautado pela ironia, a sua principal destreza.

A lucidez maior desta edição radica assim na recusa de perder a força multiplicadora dos versos da autora, induzindo mais do que cingindo o leitor a uma pauta interpretativa, dando-nos as coordenadas capitais de uma obra em que descobrimos a sinalização dos lugares e do imaginário familiares da autora (mormente infantis, veja-se a secção “Gravura”), o rastreio das suas afinidades electivas em matéria poética (Thomas Bernhard, Adília Lopes, Oscar Wilde, Sylvia Plath, Camilo Pessanha, Clarice Lispector, entre outros), a recusa da autocomplacência lírica (veja-se “O apodrecimento suave” ou “Epitáfio para um livro”) e o rigoroso compromisso com uma poética que habita com invulgar à-vontade os lugares da crítica de costumes de uma realidade fosca (“Um ermo de turismo alarve este / calor paleolítico, uma poeira meridional / ateia os objectos ressequidos, um misto / de esquinas e esplanadas de cerveja, homens / de camisa às riscas escarrando na noite e mulheres / de pernas depiladas e axilas com Impulse. Enjoa / este cortejo carnívoro de utentes / de O Mesmo”) e a premência de um segundo olhar comprometido não apenas com o descritivo realista, mas ainda com a urgência de uma vocação impressionista e sensorial de que Inês Lourenço não abdica.

Esta poesia dá voz a uma atitude de suspeita, que não é na autora exteriormente geracional nem culturalista, mas vivenciada interiormente, partindo assim de uma referencialidade assumida a partir tanto de uma condição feminina como de uma condição lusitana numa modernidade hipócrita e desenxabida: “Que bem que luzem nos discursos / da boa inconsciência / onanista e nos poemas light dos / neo- -bucólicos as casinhas / com papás, vovós e manos, talvez / com uma sentida perda / de um talher à mesa (…) / Pequeno país do / gasóleo e do futebol, memórias / de mercados e feiras buliçosas, / de escolinhas rústicas, agora desertas / (…) / pequeno país de bravia / palavra, sofrida crueza / de mato ardido e estrumes, sucatas, / detritos, o hábito endurecido dos / pequenos holocaustos / diários”. A propensão subtilmente satírica, quantas vezes áspera, nunca decaindo em troça, que José Manuel Teixeira da Silva associa a Alexandre O’Neill, na mordacidade com que projecta o ser português, nos jogos de humor, coloquialismos e ambiguidades constitutivas, exige aqui sempre na verdade o capital da denúncia, muito para lá da renúncia em que tantos poetas se autolimitam, não perfazendo qualquer espécie de cartilha ou manifesto, nem traçando a apologia da superficialidade. O segundo olhar aqui proposto é, pelo contrário, o de um distanciamento irónico sensível a uma acidez poética face ao quotidiano que não serve somente de rasura dos caracteres centrais dos dias comuns, mas de uma força instigante de reversão desses mesmos dias esventrados até ao caroço da sua insalubridade. Este segundo olhar é, pois, “uma espécie/ de leitura nas vísceras / do primeiro, como os áugures / lêem no interior das aves / recém-imoladas”.

Assim, a ironia que contamina esse olhar não é pose afim de um sarcasmo tout court em que tantos poetas sociais desbarataram o alcance dos seus poemas, mas a vivência de uma ironia como condição, a partir da amargura de uma realidade insuficiente que despoleta a reacção da acidez iconoclasta: “Hoje é o dia dos senhores / e dos sóis em algumas línguas. (…) / Vária / gente irá aos templos ou ao parque / passear o cão. É dia de / visitar o lar de idosos ou de / abastecer a nossa arca / congeladora. Os pais solteiros levam / os filhos a comer pizza e outros / putativos progenitores recuperam / as horas de sono convivialmente / líquidas. O ar das ruas / é mais leve devido à pausa / de domingo. / Ao menos hoje acontece / algo de bom em nome de Deus”. Só assim se compreende, como já se observou a propósito da autora, a dimensão sentenciosa e epigramática, a tendência para deixar respirar por sob a propensão descritiva e narrativa destes poemas o pendor moral de uma poesia que não recusa o desafio de ser ilustração, no melhor sentido do termo, sem cair no entanto no engodo do eruditismo afectado. É pois natural que encontremos sobretudo a predilecção, como observou António Guerreiro, por um alegorismo associado à orientação narrativa que atravessa esta poesia, que recusa as bengalas retóricas mais comuns (hipérboles e metáforas) e arquitecta um despojamento retórico que não desemboca no estridente vácuo de tantos realistas, mas lança âncora ainda na cesura do verso, nas reincidências fonéticas, no apuramento lexical e na sinestesia, conquistando assim alguma da sua mais vincada expressividade.

A suspeita de que falámos face ao seu tempo, de preguiçoso aburguesamento (veja-se a secção “decálogo dos cansaços”), e face mesmo, como não poderia deixar de ser, à própria poesia e seus cultores (“Desconfio dos poetas / (…) Eles / encenam como velhos profetas / tardias formas de beleza / extinta – e fazem do verso / um ritual nado-morto / de pequenos afectos, / indiferentes à faca / incandescente que separa / o corpo das palavras / da substância do mundo”) e à poesia própria (“Já escrevi num poema o fascínio / dos limos que transluzem / numa água de aparência imóvel. // Má literatura apenas, pois nenhum / apodrecimento é suave”), faz-se, como bem observou António Carloz Cortez, a partir da valorização do (que é) substantivo, da vida nos seus lugares e objectos, nas suas pistas concretas, sítios, seres e momentos que erigem uma memória afectiva nunca corriqueira, sem que o substantivo se confunda com o retrato.

Com efeito, nas palavras do antologiador, a valorização do mundo profano e físico explica o envolvimento com o mito e o sagrado: “Procurei os sentidos / da água corrente, da pedra submersa, do arder / da lenha, do som de passos na areia. / A todas estas riquezas fugidias / chamei alma.” É assim que encontramos Inês Lourenço a pisar terrenos desconhecidos por quase todos os outros, notavelmente contíguos aos espaços do realismo mais típico: a defesa do instinto como “magnífica destreza” animal, o desejo do originário (“Coisas que nunca tivessem ocidente. Crianças / que nunca envelhecessem. Rios / que não desaguassem. Coisas / sem o engodo de crescer / em direcção à morte”) também não fedem nunca aqui a literatura, não são repescagens neo- -românticas, no sentido escolar e livresco do termo, mas coisas da vida. Como toda a poesia que importa, a de Inês Lourenço enfrenta e sobrevive a todos os perigos.