Vasco Gato – Contra Mim Falo

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO7

MIGUEL FILIPE MOCHILA

CONTRA MIM FALO

Vasco Gato

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016.

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     Em recente entrevista conduzida pelo editor e poeta Diogo Vaz Pinto, Vasco Gato referia-se à poesia como “o grande adversário da complacência”, obstinada em reincidir no “desafio” e na “luta”. Essa atitude, aliás plasmada no título desta reunião da sua obra poética, Contra Mim Falo, insinua-se numa inusitada dissonância autoinduzida, dir-se-ia até uma certa errância, que a leitura conjunta da mesma testemunha. São doze os títulos aqui reunidos, sob a chancela da Plural, colecção criada por Vasco Graça Moura na Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1982 e agora rediviva, que revelam um percurso iniciado em 2000, quando o autor tinha apenas 22 anos. A leitura em contínuo do volume revela quer uma acentuada maturação, numa progressiva desmarcação da juvenília mitigada por um certo enquinamento herbertiano, quer uma inquietação que se revela na aparente acidentalidade do percurso, polvilhado por diversos projectos editoriais e visitando formas várias.
     Vasco Gato debate-se portanto, e em permanência, com a sua própria voz, embora sejam rastreáveis elementos que perpassam toda a sua produção. Assim uma atenção a uma vocação modernista, em sentido lato, assente na compreensão da poesia como força resistiva em face de uma modernidade civilizacional e ao arrepio do discurso enumerativo em que certa pós-modernidade ancorou, de que A Fábrica é exemplo paradigmático, mas que se adivinhava já numa apreensão de um certo cratilismo constitutivo da poesia na produção mais jovem, na defesa de um discurso especificamente poético (“uma nova língua nos fará dizer / o que a poeira da nossa boca adiada / soterrou já para lá da mão possível / onde cinzentos abandonamos a flor”), eivado de ressonâncias herbertianas. Assim também a predilecção pela imagem e pela metáfora, escorada por um descritivismo que se coloca sob o pano fundo de um narrativismo que progressivamente se vai acentuando na sua obra.
     O traço mais saliente da sua obra é, no entanto, a propensão metapoética que a mesma sempre testemunha, a qual reivindica essa preocupação pela função e essência da poesia, que invariavelmente tendem para a perscrutação de uma transcendência propulsada pela materialidade banal dos factos imanentes. Não é pois ingénua a epígrafe citada de Roberto Juarroz, seleccionada pelo autor para Um Mover de Mão (“cualquier cosa puede ser otra / las manos son todo lo que son / y también algo más”), na demanda da revelação do “coração das coisas”, da “aparição da flor original”, como quem procurasse achar nas suas diversas desformalizações a forma originária, “palavras / com que se extingue a pele do tempo”.
     Por conseguinte, estão estes versos impregnados de uma retórica da atenção (“A penumbra cai em flocos / sobre a respiração atenta do dia”; “A paisagem move-se no poder / da observação”), procurando um modo próprio de dizer o mundo das imanências e de desvendar nele uma gramática da realidade, tão totalizadora como os grandes projectos da literatura modernista, de ecos românticos, como quem forçasse sistematicamente a língua até haver nela uma metamorfose que a levasse a dizer o que não quer, segundo a lição de Artaud, dizendo nisso o que importa. Esta espécie de hiperconsciência dá-se como procura, sem se resolver num banal tratado de costumes poéticos, é um discurso in fieri, desiderativo (“se ao menos eu sentisse totalmente”, “se me fosse permitida a amplitude /… / e eu não mais precisasse de trabalhar a atenção, / assim descalço sobre a realidade”), que propugna esse “agudíssimo sentido dos detalhes” como figura antropológica por definição: “o humano / não é senão um contágio da paisagem / uma tarefa da atenção / repara”.
     Há pois uma transparência sempre almejada nestes poemas tão fortemente centrados na sua própria matéria, caucionando a analogia derridiana do poema como um ouriço que, mesmo que enrolando-se sobre si próprio, encerrando-se numa massa inexpugnável, tem sempre os espinhos apontados para fora: “Entendo que cada coisa é um caminho para fora / de si mesma. Que são intermináveis / as coisas sucessivas.” Neste dobrar-se há pois um desdobramento, que veicula a simultaneidade do literal e do metafórico, conferindo aos ditos instrumentos um autotelismo estético que não esgota no entanto a referencialidade do discurso poético, que leva a língua a dizer a um tempo a realidade e o seu excesso: “A minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos, / comer aos gomos a paisagem / e limpar depois / a boca / à manga do espanto.” O que se revela é uma espécie de unidade primordial, “o traço comum”: “quero crer que tudo se faz de um só ventre, que tudo ocupa o tempo / sem diferença, que uma só voz pronuncia todas as palavras desde sempre. /…/ que se disser «nasci da ideia de um lírio» os meus pés firmarão / raízes nos rios e rebolarei a eternidade no leito dos campos, / internamente, / como se não me fosse estranha a vida da seiva”.
     Esta procura de uma transversalidade radica sempre no comum e não na cidade, para empregar a formulação dicotómica de Jean-Luc Nancy, recordando, com Deleuze, que a arte é, pela sua própria subsistência, resistência. Este traço torna-se cada vez mais nítido à medida que avançamos na leitura do volume e descobrimos a linguagem tacteante, a procura de uma ordenação (“A nossa situação é, no meio das avalanches, tentarmos um paisagismo”) que se tece pela própria textura da língua em permanente redefinição contra a fetidez do político - “Isto não é higiénico. Isto é para tentativas e escândalos. Isto é para sair daqui muito confuso”. Trata-se da já indicada propensão resistiva da arte poética em face do curso do mundo, na demanda de uma gramática do desequilíbrio, tal como definida por Deleuze, colocando a língua poética ao arrepio do discurso vigente: “O mundo reserva-nos uma língua que se usa por obstinação. Instala-se e é absoluta prioridade: vivemos para frequentar palavras lacónicas. Quereríamos deixar escrito um cântico, uma fábula, mas não – o nosso legado é um fragmento repetido na noite, corpo escaleno.”
     A partir de Napule, essa atenção a uma “Lacónica realidade”, no ensejo de transcendê-la, torna-se obsidiante, recordando que “Os lugares inóspitos, sobretudo / os nossos, quando abordados, são assim: / espezinhados, capazes de nos prometer / a noite reveladora”. É aqui que a poesia de Vasco Gato, na senda aliás do perfil poético que a leitura das suas versões de várias dezenas de poetas em Lacre (Língua Morta, 2016 e 2017) testemunha, revela a sua força maior, desenhando sempre esse movimento elíptico em torno de uma materialidade que surge à transparência, em vista de uma universalidade e de uma atemporalidade prementes, promovendo um salto significativo que indaga no concreto a sua transcendência: “as unhas cortadas / do puto // pequenas vírgulas / inquietas / no tampo da mesa // com que haverei / finalmente / de gramaticar o lixo”.
     É justamente à medida que a sua atenção se prende cada vez mais aos factos quotidianos e mesmo civilizacionais que a poesia de Vasco Gato se revela mais libertadora de um sentido de ressonâncias cósmicas, em sucessivos ressaltos que uma versificação mais sintética, menos grandiloquente, agudiza. Em A Fábrica essa contenção mostra-se particularmente capaz de apontar à visada transcendência, travejada sempre de um discurso analógico que é a base poética da sua visão: “Como um enxame, / o zumbido dos televisores. / Será assim / a noite inteira. / A luz difundida por esses ecrãs, / se somada, / daria para derreter milhares de corpos. / Mas este é o pior dos holocaustos: / sem grilhões, / sem divisas, / sem valas comuns. / Apenas o leito quotidiano. E retinas / para sempre escancaradas / na hipnose do merecido descanso.”
     Para este efeito, em muito contribui uma atenção aos afectos, não confessional ou egotista, inscrevendo-se no circunstancial para despoletar a partir dele uma visão simultaneamente epocal e universal. Fera Oculta concretiza este desígnio com particular eficácia, partindo do espectro do casuístico – Portugal como cenário de uma crise, sinédoque de uma contemporaneidade asséptica e disfórica – para reinventar um sentido para uma existência a vir – o filho esperado – para o sentido abrangente do humano que a poesia pode, na já referida simultaneidade do referencial e do simbólico que a mesma promove, deslindar: “Durante essa tua natação de fera oculta / há um papiro que se desdobra na minha boca / e nunca o futuro teve o sabor / de palavras tão sobejamente pronunciadas / família rapaz umbigo / palavras com que se poderia redigir / tão pouca coisa / se não fosse a reinvenção da tua chegada / inscrita no mundo como pedra preciosa”.
     São versos poderosos, no modo como entroncam nesse sistemático vaivém entre o concreto e aquilo que o excede, entre o particular e o universal, com um despojamento e mesmo uma desfaçatez vocabular, uma oralidade patente, que nunca se esgotam no comezinho, pois visam sempre o resgate de um sentido global: “Perdoa a falta de graça / o tom melancólico a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / para se levar ao forno da ambição / deu uma sova às pequenas respirações / - sim, intersticiais, subtis, difíceis – / sem as quais um corpo é apenas / um estorvo à sua própria morte / percebes isso?” É a própria luta em que a poesia de Vasco Gato sempre se encontra entre a condição limitante do aqui e do agora e o ensejo de uma relação umbilical com o universo na sua fluência mais imediata (não-mediada) que aqui se revela na sua mais alta qualidade.
     E assim se faz da língua poética crítica do real (“Que não te enganem / os que compram as horas por atacado / para do teu suor extraírem / a bandeira de um país que nunca será o da atenção / mas sempre e sempre / o território homeopático da extinção / em que os troféus são / joelhos vergados à condição de cera / para os soalhos do progresso / cujo verdadeiro nome é / despovoamento // Vender-te-ão o conforto/ a perseverança o brio / como se tivéssemos por fito / a acumulação do tempo / sem o fruirmos boca a boca / desesperadamente”), sem cedências à univocidade da crónica dos costumes em que a poesia dita social amiúde engasga, tendo sempre em vista “o sopro pleno / de um dia sem rodeios / um baptismo mais vasto e súbito”. Vasco Gato encontra enfim o poder sintético que a sua obra sempre procurou, na atenção e na absoluta não retenção no real histórico, no equilíbrio entre o privado e o comum: “Que se foda a época / digo-te já / que se foda a sépia dos futuros / eu quero aparecer no dia / do teu nascimento / desarmado como uma árvore / sem outra missão que não / amparar-te o susto / e dizer-te baixinho / bem-vindo ao continente dos frágeis / podes parar de nadar”. Estes versos são chegados, enfim, à matéria primordial do seu olhar, à relação da pessoa com o mundo e à poesia como acesso privilegiado a dita relação.