Uma Vida de Hispanista: O Testemunho de Maria Idalina Resina Rodrigues

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO8

 Por ÂNGELA FERNANDES

Uma Vida de Hispanista: O Testemunho de Maria Idalina Resina Rodrigues

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Maria Idalina Resina Rodrigues em 1995

Quem procura conhecer as relações literárias e culturais ibéricas entre os séculos XVI e XX não pode deixar de se cruzar com o nome e com a obra ensaística de Maria Idalina Resina Rodrigues. Em 1988, descrevia‑ -se a si mesma como «docente encaminhada de há muito para as bandas de uma bem-amada (por alguns, como eu) ou mal-amada (por muitos, desafortunadamente) Literatura Espanhola, com gratas mas pontuais incursões nas letras quinhentistas portuguesas»1, e nestas palavras surpreendemos de imediato a consciência da peculiar situação dos hispanistas em contexto português, confrontados com gostos desavindos pelas literaturas do país vizinho.

Professora catedrática aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), Maria Idalina Resina Rodrigues (Lisboa, 1933) doutorou-se em Literatura Portuguesa e Espanhola pela Universidade de Lisboa com uma tese sobre Frei Luís de Granada, depois publicada em livro com o título Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en Portugal: 1554-1632 (Madrid, 1988). Durante mais de quatro décadas, de 1960 a 2002, ensinou Literatura Portuguesa, e Literatura e Cultura Espanholas na FLUL, sendo aí presidente do Conselho Científico entre 1993 e 1995. Desempenhou ainda funções no ICALP – Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (vice-presidente entre 1985 e 1990) e na Universidade Católica Portuguesa (directora do Departamento de Línguas e Literaturas de 1991 a 1999). É autora de diversos estudos sobre escritores portugueses e espanhóis dos séculos XVI e XVII, e sobre os cruzamentos literários e culturais na Península Ibérica, tendo preparado a edição de várias obras de Gil Vicente: Auto da Alma (Lisboa, 1980), Auto da Barca do Inferno (Lisboa, 1982), Auto da Barca da Glória e Nao d’Amores (Madrid, 1995). Do seus ensaios publicados em volume, destacam-se: Estudos Ibéricos: Da Cultura à Literatura, Pontos de Encontro, Séculos XIII a XVII (1987), De Gil Vicente a Lope de Vega: Vozes Cruzadas no Teatro Ibérico (1999), e De Gil Vicente a ‘Um Auto de Gil Vicente’ (2006).

Por detrás de um percurso académico que assim se descreve sumariamente, encontra-se uma vida de entusiasmada dedicação ao estudo e ao ensino das Literaturas Ibéricas, que pretendemos aqui evocar. A partir de algumas perguntas que pretendiam delinear uma entrevista, Maria Idalina Resina Rodrigues optou por escrever um texto que nos convida a seguir a rota do «seu hispanismo». Como facilmente se verá, o registo coloquial e afectivo destas memórias testemunha uma vívida entrega às experiências e às aprendizagens mais diversas, em conjugação com uma reflexão crítica sobre o que significou e o que significa ser hispanista em Portugal. Muitas das informações que aqui surgem, sobre práticas de ensino, programas de estudo, ou episódios da vida académica, permitem enquadrar e conhecer melhor a história cultural ibérica da segunda metade do século XX.

Eis o testemunho de Maria Idalina Resina Rodrigues, na primeira pessoa.

1 Lá Muito ao Longe

No meu tempo de muito jovem aluna liceal (1947-1951) não havia interesses culturais de pendor hispanófilo, muito pelo contrário: as desavenças de antigas querelas eram amiudadamente recordadas e as nossas vitórias (1640, por exemplo) desenquadradas e beatificadas. Claro que me pergunto se ainda hoje (e falo de Portugal em geral) não são demasiado visíveis estes traços de desconfianças peninsulares, mas a verdade é que no adentramento por uma disciplina de História, pelo menos, conviria reprimir um pouco a «exaltação patriótica». E tal não acontecia; se eu pensar na apresentação que nos era feita da dinastia filipina, tenho de insistir no erro de confundir a acção de Felipe I (II de Espanha), em vários aspectos positiva, com a dos seus sucessores, monarcas muito mais débeis tanto dum lado como do outro da Península. A propósito desta preponderante ignorância apraz‑ -me dar a conhecer a meditação que eu e muitas colegas fizemos a partir de uma conferência a que a Professora de Filosofia nos levou, nada mais nada menos, proferida por José Ortega y Gasset, então em Portugal como em outras ocasiões; a conferência realizou-se na velha Faculdade de Letras de Lisboa, em 1950, creio. Ficámos seduzidas pelo encanto pessoal de Ortega y Gasset, tivemos pena de não perceber algumas achegas, mas um aviso não esquecemos, aviso empenhado e forte exactamente sobre a responsabilidade do ensino da História no relacionamento entre Portugal e Espanha. Foram arrolados erros, mais e menos graves, e abertas linhas de reflexão sobre o que de positivo se podia e devia fazer para aproximar povos que tanto tinham em comum. Concordámos e aplaudimos. Depois, em conjunto, estudantes e docente analisámos os conselhos e fizemos promessa de os ter sempre em conta. Tudo isto recordaria mais tarde ao ficar sabedora de outras intervenções de Ortega y Gasset junto das nossas elites culturais. E, se bem que já me tenha debruçado várias vezes sobre os seus principais escritos (Meditaciones del Quijote, El Tema de Nuestro Tiempo, La Rebelión de las Masas, por exemplo) de vez em quando chega‑ -me à memória esta tão boa sugestão para estimular o companheirismo ibérico.

2 De Caloira a Assistente

Com a entrada, em 1951, para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (claro que ainda na Rua da Academia das Ciências, na cave do edifício da Academia; diziam, por troça, que era a única Escola onde se entrava descendo), despertou verdadeiramente o meu interesse pela cultura espanhola. Dois excelentes hispanistas para tal muito contribuíram: Lindley Cintra e Maria de Lourdes Belchior. Cintra estava ainda em Espanha preparando o seu doutoramento com recolha de saberes sobre A Crónica Geral de Espanha de 1344. Regressou a Lisboa no meu segundo ano e foi o meu grande Mestre da Filologia que, apesar de Portuguesa, também algumas achegas nos fornecia sobre laços com a língua vizinha; esta temática combinada sempre seria do seu agrado e conduziria à Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, trabalho que preparou para o concurso a Professor Extraordinário; ausente nunca estaria nas matérias que sempre ensinou no domínio das variadas Línguas da nossa Península.

Interessante e significativo foi o empenho posto na penetração na Gramática Comparativa das Línguas Românicas. Se, à partida, o título da cadeira poderia não nos motivar muito, a verdade é que, no jogo de aproximações e afastamentos, muito íamos progredindo nas raízes do Espanhol e nos seus encontros com o crescimento da nossa Língua. Além disto, Lindley Cintra contava muitas histórias que lhe tinham chegado através de amigos tão fadados no domínio do hispanismo como o celebérrimo Menéndez Pidal e os já suficientemente célebres Manuel Alvar e Diego Catalán, e organizava excursões dialectológicas que entravam em Espanha. E mais: nos anos sessenta preparou com Esther de Lemos para toda a Escola uma audição do Retablo de las Maravillas em que muito disse de Cervantes e de Manuel de Falla. Foi uma bela ocasião de alargarmos o campo do nosso saber normalmente muito circunscrito às Letras sem acompanhamentos.

Quanto ao seu ensino da Literatura Espanhola, anterior à ida para Espanha, pouco sei, mas junto da sempre amiga Esther de Lemos pude ainda apurar que entusiasmava e exigia na apresentação de matérias como, por exemplo, o teatro espanhol do século XVII. A mim Lindley Cintra ajudou-me nos júris a que presidiu quando eu já era Assistente, depois de 1960. Recordo algumas lições como a de ironizar o meu pouco Cristianismo nos interrogatórios sobre S. João da Cruz ou o excesso de pessoalismo ao debater García Lorca com os alunos.

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Em 1956, professores e estudantes finalistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. De baixo para cima, reconhecem-se: Maria de Lourdes Belchior, Maria José Salema, Hernâni Cidade, Artur Moreira de Sá, Délio Santos, Joaquim Monteiro Grilo, Delfim Santos, Justino Mendes de Almeida, Maria Idalina Resina Rodrigues (a quinta a partir do topo da escada), José Terra e Raúl Miguel Rosado Fernandes

Foi, no entanto, com Maria de Lourdes Belchior que mais ampliei os meus conhecimentos de Literatura Espanhola. Ela regia a cadeira (então semestral, a par com a Literatura Italiana, no último ano do curso) desde há um par de anos e continuaria a regê-la ainda por algum tempo. Pelo que sei, os programas não variavam muito, o que é natural dada a sua carga horária muito elevada na Literatura Portuguesa e até na Francesa. Para sempre me ficaria o gosto pelo Cantar de Mio Cid cujas aventuras acompanhávamos ao mesmo tempo que íamos apreciando a linguagem e a estrutura do poema, sobretudo através das muitas e minuciosas achegas do já mencionado e inesquecível Menéndez Pidal. A repercussão da mítica epopeia por outros países não ficaria esquecida e seria até tema para trabalhos individuais. Pela minha parte, lembro-me de, nos primeiros anos de Assistente, me ter mantido fiel ao afamado guerreiro, a tal ponto que, da primeira vez que fui a Burgos (estava com estadia oferecida para uma lição na Universidade de Valladolid), fiquei largo tempo fechada junto do seu túmulo por não me ter apercebido de que a igreja onde estava sepultado o herói tinha encerrado na hora do almoço.

S. João da Cruz e García Lorca também eram oferecidos com entusiasmo; do segundo era muito particularmente o Romancero Gitano que líamos e entre nós, alunos, chegámos a recitar; admirávamos o Lorca poeta mas experimentávamos uma grande ternura pelo homem que tão injustamente fora, havia razões para assim pensar, assassinado. Em Granada, sempre visitei locais e exposições que o recordavam e adquiri novidades (livros ou pequenas lembranças) que cada vez mais o iam desvendando. Com S. João da Cruz havia algumas dificuldades de entendimento e só com a Professora e o auxílio de prosificações íamos apreciando o seu magnífico lirismo cristão.

Entretanto, ganhei uma bolsa e em 1955 fiz um excelente curso de férias em Santiago de Compostela, onde aperfeiçoei o estudo da língua castelhana (para ouvir o galego era então necessária a deslocação a remotos locais), que naquele tempo era facultativo em Portugal e muito poucos estudantes o procuravam. Ali aperfeiçoávamos os conhecimentos literários, como é óbvio, mas também nos divertíamos com danças e jogos, ao mesmo tempo que muito nos contavam sobre a belíssima Catedral e sobre os roteiros das peregrinações; demos um passeio por um deles, o que vinha de França, e durante ele fiquei a saber que nós não tínhamos o exclusivo da curiosa lenda do galo de Barcelos2.

3 Uma Assistente Feliz

Fiz a tese de licenciatura no quinto ano (sobre Tendências e Correntes do Moderno Romance Português ) e naveguei dois ou três anos pelo Ensino Secundário e por parte de um estágio, que detestei, batendo palmas quando fui convidada para Assistente da FLUL, em 1960, já no edifício actual, com especial ligação ao Professor Vitorino Nemésio. Ele teria gostado que me dedicasse à Literatura Brasileira, chegou mesmo a organizar para mim uma lista de temas para uma desejável tese de doutoramento, mas a dificuldade de frequentes deslocações para tão longe por parte de uma «casadoira» custaria muito a vencer. Aconteceu então que Maria de Lourdes Belchior se afastou para uma comissão de serviço em França e a regência da cadeira de Literatura Espanhola foi-me entregue com grande gosto meu.

Não significa isto que Nemésio se tenha desinteressado do meu percurso académico; muito pelo contrário, conversávamos sobre grandes autores como os da chamada Geração de 98, particularmente de Miguel de Unamuno, que ele visitara assiduamente em Salamanca no começo dos anos trinta, quando leitor na Bélgica, e mesmo a propósito das minhas lembranças de Ortega y Gasset cuja obra comecei a ler por empréstimo seu. Haviam sido amigos e partilhado uns serões culturais luso-espanhóis em casa de uma família Martins Pereira, cuja patrona ainda vivia e tive a honra de conhecer.

Nemésio ajudou-me a encontrar assunto para tese de doutoramento, tendo em conta a sugestão de Jacinto do Prado Coelho de escolha de um conteúdo afastado no tempo, já que para a licenciatura estudara a época moderna, e corroborando uma certa inclinação que ambos tínhamos para a espiritualidade literária. Foi então escolhido Frei Luís de Granada e a Literatura de Espiritualidade em Portugal ; o dominicano vivera e escrevera em Portugal no tempo do Cardeal Dom Henrique, era um simpático «progressista» a quem a Inquisição incomodou, obrigando-o à refundição de algumas obras e afastando-o de algumas actividades.

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Em Janeiro de 1974, no Doutoramento Honoris Causa de Marcel Bataillon na Universidade de Lisboa: Andrée Cabrée Rocha, Marcel Bataillon, Maria Idalina Resina Rodrigues, Maria Vitalina Leal de Matos e Maria Alzira Seixo

No entanto, o maior suporte para este trabalho veio‑ -me de um Catedrático de Madrid exilado entre nós (fugiu de Espanha num carro português) por anti-franquismo relacionado com uma profunda amizade pelo Conde de Barcelona, D. Juan de Borbón, de cuja subida a rei era fervoroso partidário. Trata-se de don Pedro Sainz Rodríguez, detentor de uma notável biblioteca e de uma enorme apetência para incentivar estudos luso-espanhóis (laços entre a sua pátria e o país de acolhimento), muito simpático e até divertido quando contava asneiras de «franquito». Defendido o resultado científico em tese de Doutoramento, em 1977, foi ainda ele que incentivou a tradução para espanhol e a publicação deste estudo pela Fundación Universitaria Española. A tradutora do trabalho foi María Victoria Navas, então Leitora de Espanhol na FLUL, juntamente com Miguel Viqueira; em ambos encontrei excelentes amigos, sempre prontos para iniciativas conjuntas e dispostos a ajudarem-me nas lides da língua.

Voltando a don Pedro Sainz Rodríguez, não resisto aqui à tentação de contar o que com ele se passou, ainda antes do meu doutoramento (em cujo júri esteve), em tempos de «fascismo ibérico». Tendo Alonso Zamora Vicente sido convidado para uma conferência na FLUL, estava indigitado para o apresentar o então Leitor, don Pedro Rocamora, pessoa mais velha e mais sabedora do que eu, na altura uma mais que incipiente hispanista. Às sete da manhã do dia combinado, batia o tal Leitor à minha porta para me passar a pasta porque na Embaixada se tinha sabido (imagine-se como a espionagem funcionava) que estaria don Pedro Sainz Rodríguez na assistência e um espanhol não poderia aceitar uma tal «companhia». Fiquei aflita e telefonei de imediato ao Professor Cintra que me aconselhou a dizer «umas graças literárias» e nada mais. Assim tentei desembaraçar-me de tal situação e não é que Zamora Vicente se divertiu e gostou… Ficámos a corresponder-nos, proporcionou-me idas a Espanha e, anos mas tarde, pôs-me em contacto com a sua neta Ana de Zamora, directora da Companhia teatral Nao d’Amores que muito desejava uma parceria com uma Companhia portuguesa. Pensei logo no Luís Miguel Cintra, que muito me agradeceu, e muitos passos vieram a dar os dois em conjunto até quase aos nossos dias.

Regresso à preparação para Doutora, com atenção às provas complementares, para contar que daqui nasceu o meu interesse pela novela picaresca. Entre outros pontos, estava o Lazarillo de Tormes que foi o que mais gostei de aprofundar e fantasiar. Mas, como ia dizendo, talvez porque o acaso me protegeu, veio ao meu encontro o pícaro de Tormes sobre o qual fui interrogada por Maria de Lourdes Belchior. Desde então vários pícaros me motivaram e ficariam incluídos nos meus futuros programas, já doutorada e inteiramente responsável pelas letras hispânicas. A título de mera recordação, penso na outra prova de pontos, por me ter também permitido um contacto afetuoso com o Húmus de Raul Brandão, um autor que pouco conhecia e que passei a privilegiar e recomendar aos meus alunos.

4 De Assistente a Regente

Viremo-nos então para os programas de Literatura Espanhola, obrigatória para a licenciatura em Filologia Românica e opcional para outros cursos, começando por salientar que a opção era bastante procurada, talvez, creio estar segura, por estudantes de Filosofia e de História. Após o 25 de Abril, alteraram-se os curricula e as designações das licenciaturas, e a Literatura Espanhola passou a ser em regra cadeira de opção para os cursos de Línguas e Literaturas da FLUL.

Deixando partir o Cid, fixei-me bastante no teatro do século XVII, variando embora os textos seleccionados, depois de uma passagem obrigatória pela Arte Nuevo de Hacer Comedias de Lope de Vega. Deste dramaturgo estudámos Fuenteovejuna, que viria a fazer parte das minhas preferências até hoje, passando pelas suas posteriores adaptações, El Duque de Viseo e El Príncipe Perfecto, com recapitulação da matéria portuguesa de que se ocupam. Seguia-se Tirso de Molina e El Burlador de Sevilla, com muitas ligações a obras que dele partiram, em especial o romântico Don Juan Tenorio que tantos «filhos» teve. O passo para Calderón de la Barca foi dado com El Príncipe Constante, a semi-história, semi-lenda do Infante Dom Fernando, cativo em Arzila para que Tânger não fosse restituída aos árabes. Outros textos se lhe seguiram, mudando de ano para ano, mas com alguma insistência em El Alcalde de Zalamea cujo argumento muito entusiasmava os alunos, focados como estavam em problemas de posturas socialmente correctas.

No ano de 2000 celebrámos, como em tantos outros países, o quarto centenário do nascimento de Calderón, com propostas para futuras investigações sobretudo na área temática do recurso a matérias portuguesas. Uma tradução portuguesa de O Príncipe Constante se representaria então no Teatro de Almada, com excelente interpretação de Júlio Martín3.

Para complementar estas adesões teatrais nas aulas de Literatura Espanhola, divulgavam-se gravuras dos corrales e analisava-se a sua constituição, tendo até sido possível organizar idas a Almagro em alturas de festividades teatrais, sobretudo com alunos de Mestrado para os quais era mais fácil encontrar subsídios e quem nos conduzisse de carro. Lembro-ma ainda de uma vez ou outra sugerir a leitura de um romance de aventuras de Pinheiro Chagas intitulado A Mantilha de Beatriz (1878) não por o considerar uma obra prima mas porque, ao abrir com um encontro em Espanha entre dois «cavalheiros» setecentistas, nos proporciona uma minuciosa descrição de um Pátio de Comédias e um encontro com Calderón de la Barca que, na narrativa do casamento de um deles, afirma ir inspirar-se para a conhecida obra Antes que todo es mi Dama. Por mera curiosidade adianto que a obra de Pinheiro Chagas foi aproveitada para um filme luso – espanhol de 1946 que atraiu o nosso público durante anos e ainda tive a oportunidade de ver4. Quanto a Fuenteovejuna, lá fui sozinha e de lá trouxe fotos que ajudavam a «sentir» as partes mais comoventes da comedia, fotos de esculturas que por lá abundavam mostrando o interesse da peça junto daquela comunidade, com especial relevo para os troços em que o povo ofendido mais colericamente se afirmava.

Persistiria também da minha parte o interesse na afamada Geração de 98 (com Unamuno na dianteira) sem esquecer as suas relações com Portugal, com visitas mútuas e convívio nas comemorações camonianas de finais de século. Estudámos narrativa e teatro (a Niebla, por exemplo, foi lida e discutida, a teatrologia de Valle-Inclán apreciada por uns e considerada demasiado «fantasista» por outros) mas demos muita atenção «aos passeios» de Unamuno por terras lusitanas; deles nos deixaria o interessante volume a que justamente deu o nome de Por tierras de Portugal y de España.

Chegou então a vez de García Lorca já atrás referenciado e, a seguir, a novelística contemporânea (daqueles idos); para além de muitos conselhos de leitura (Camilo José Cela, Carmen Martín Gaite, Torrente Ballester, por exemplo), a escolha para estudo variava de ano para ano e chegava aos autores mais jovens, o que sempre agradava aos estudantes.

Vieram à FLUL alguns conferencistas espanhóis, cujo nome já não recordo, e sempre com excelente aceitação, mas não muito focados nos meus programas. José María Pemán e Dámaso Alonso foram dois deles. Sobre o segundo, só queria insistir no seu especial humor que até o levou a pedir-nos a receita dos…pastéis de bacalhau que tão gostosamente ingeria. Foram estas visitas boas oportunidades de aprendizado para os dois lados, como também o foram os encontros com lusitanistas espanhóis. Entre estes saliento Pilar Vázquez Cuesta, Basilio e Elena Losada. Com Pilar as oportunidades foram muitas; ela veio várias vezes a Lisboa, onde aliás, recebeu o Doutoramento Honoris Causa, em 2002, e eu fui, por desejo seu, a Madrid, e a Salamanca, onde fiz o lançamento de um livro (Estudos Ibéricos: Da Cultura à Literatura, 1987) e mantive o envolvimento amigo e cultural já com ela em Santiago de Compostela, onde, como galega, quis regressar em 1991. Mais restrita foi a ligação com Basilio e Elena Losada, grandes especialistas de Eça de Queiroz, com os quais muitos pontos de vista troquei quando fui a Barcelona dar umas lições no nosso Leitorado; com eles visitei quer a Universidade de Barcelona, quer a Universidade Autónoma.

Recuperando os meus programas, adivinho uma pergunta: e do Quixote não se falava? Falava-se e selecionavam- se partes para comentário, mas escolher a obra toda impedir-me-ia o contacto com textos que muito apreciava e eram «quase» igualmente importantes. Se fiz bem, seguindo as minhas preferências, não sei, mas devo salientar que para penetração em Cervantes contei a partir de certa altura com o apoio da minha colega da Universidade Nova de Lisboa, Maria Fernanda de Abreu, especialista em Cervantismo. Não deixo, no entanto, sem uma referência a atenção dada às comemorações de 2005 que me levaram a Espanha e aos locais que Cervantes escolheu para as andanças do seu herói.

Regi também, embora por pouco tempo, a cadeira de Cultura Espanhola, já nos anos noventa, com uma carga de alunos muito inferior. Nesta tarefa confesso que tive algumas dificuldades; procurei ajudas especialmente no domínio das Artes Plásticas e tive a preciosa colaboração do saudoso Rui Mário Gonçalves não só com intervenções utilíssimas durante os tempos lectivos como em visitas ao Museu de Arte Antiga onde muito se explicava diante dos quadros. E, não esqueçamos, havia também o cinema de Almodóvar, que comentávamos entusiasticamente.

5 Para além das Aulas

Como é de esperar, as actividades de uma hispanista estão longe de reduzir-se à leccionação e ao contacto com os alunos e com colegas. Mas, antes de dar a vez a outro tipo de actividades, duas palavras entre as aulas e as «não aulas».

Colaborei activamente na década de 1990 na organização do curso de Línguas Estrangeiras Aplicadas na Universidade Católica, onde evidentemente o Espanhol tinha o seu lugar. Conheci o excelente ambiente da Escola, fiz proveitosos contactos, ajudei a seleccionar os novos professores e a elencar temas de trabalho. O balanço não poderia ser mais positivo.

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Em Olivença, em Outubro de 1985

Ocasiões para apoiar e aprovar iniciativas hispanistas não faltaram nem faltam; há, por exemplo, o acompanhamento das muitas actividades do Instituto Cervantes de Lisboa (desde 1992), onde frequentemente acorremos para ouvir conferencistas de renome ou participar em sessões de cinema, de apresentação de livros ou de troca de pareceres luso-espanhóis no campo das ideias ou das realizações sociais; há o interesse em seguirmos o movimento do ensino do Espanhol nas Escolas Secundárias (desde 1999) e como nele se pode fomentar o gosto por uma licenciatura nessa área. Tive a honra de ser recebida como Membro Honorário na Associação Portuguesa de Professores de Espanhol Língua Estrangeira (APPELE ) e procuro sempre estar informada dos seus projectos.

É verdade que ainda não criámos a Associação Portuguesa de Hispanistas, aliás muito incentivada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mas espero que ela chegará; já estudámos estatutos e propostas de outras congéneres estrangeiras e admitimos que ela possa ser particularmente útil para o impulso da investigação. É um dever de alguns hispanistas portugueses, entre os quais me conto, pois até tivemos a grata alegria de ser galardoados, na Embaixada de Espanha, com a Encomienda de la Orden de Isabel la Católica.5

Ainda não fizemos tudo, é certo, repito, mas muitas iniciativas já tomámos. Entre outras, sublinho as Acções Integradas possibilitadas pela Reitoria da Universidade de Lisboa, que, no meu caso, se saldaram por trabalhos conjuntos nas décadas de 1980 e 1990 com docentes da Universidade de Sevilha, ora se deslocando eles a Lisboa, ora nós à Andaluzia; trocávamos ideias entre nós, falávamos para os alunos, aproveitávamos a ocasião para frequentar boas bibliotecas. E, acrescento, fizemos boas amizades que ainda hoje gostosamente mantemos. Por cá aparece com frequência Mercedes de los Reyes Peña, sobretudo para acções no Centro de Estudos de Teatro da FLUL, onde José Camões mantém a sua atenção às iniciativas vindas do outro lado da fronteira e colabora regularmente com investigadores espanhóis. Lembro que Mercedes era especialmente trabalhadora e algumas vezes às oito da manhã já estava à porta do Hospital de São José, onde então havia um belíssimo arquivo de teatro do século XVII.

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Em Olivença, em Outubro de 1985

Houve também, ainda nos anos oitenta, a intenção de valorizar o passado histórico de Olivença, com ampla troca de livros oferecidos entre as bibliotecas e encontros culturais com larga participação de assistentes e a amplificação do estudo do Português numa escola em que leccionou o saudoso Professor Agostinho da Silva. Neste caso contámos com o apoio do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP) de que, por outros motivos seguirei falando.

Estive uns anos em comissão de serviço (1985- 1990), como vice-presidente, nesta Instituição, o que me deu a possibilidade de visitar Leitorados de Português por esse mundo fora. Foi particularmente agradável dar conta do bom entendimento entre os docentes ibéricos e receber convites dos espanhóis para que também dissesse algumas palavras nas suas aulas. Um caso que não esqueço foi o convívio em Pequim que começou à minha chegada ao aeroporto. O avião partira de Hong Kong com um atraso de cinco horas e, como não havia combinação de acolhimento, pensava dirigir-me sozinha à Embaixada de Portugal (levava a direcção em chinês). Pois assim não foi; na gare de espera estava um pequeno grupo em que se destacavam os Leitores de Português e de Espanhol e nunca perdemos o contacto.

Um convívio hispânico que nunca esquecerei foi o que resultou de um projecto da Fundación Duques de Soria (a Infanta Margarita, irmã do então rei Juan Carlos, e seu marido). Intentou-se cobrir várias áreas culturais e organizar colóquios em que se dava especial atenção a bem conhecidos vultos dos dois lados da Península. Recordo com especial enlevo aquele em que participaram os arquitectos Siza Vieira e Rafael Moneo, Com entrada livre, encheram-se as salas e um importante jogo de futebol transmitido pela televisão ficou sem assistência em Salamanca (em 1994, creio). Numa ou outra vez esteve presente o monarca que fez grande questão em falar português comigo; a Infanta fala a nossa língua como nós. Dos duques fiquei amiga e ainda agora trocamos mensagens pelo Natal.

Para terminar (apesar de não ser tudo) não pode ficar sem referência neste trajecto do meu hispanismo o convite que me foi feito para ser parte activa num importante centro de investigação da Universidade do Porto. Grande é a minha gratidão para com esse Centro Inter‑ -Universitário de História da Espiritualidade (CIUHE) de que faço parte desde a sua criação em 1993. Gratidão pelo contacto com os melhores hispanistas portugueses, em que distingo José Adriano de Carvalho, que desde os seus tempos de Leitor em Salamanca aos estudos ibéricos tem dado o melhor da sua investigação, e com colegas espanhóis que connosco têm trabalhado; e gratidão pela facilidade de continuar o meu adentramento na Literatura de Espiritualidade que desde a preparação para o Doutoramento tanto me vinha interpelando.

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Ângela Fernandes e Maria Idalina Resina Rodrigues em Novembro de 2013

A matéria das comunicações apresentadas nos encontros do CIUHE, para os quais com frequência contribuí particularmente com propostas de análise de autos peninsulares (comecei com Santa Bárbara), era cuidadosamente recomposta e compilada para uma revista, a Via Spiritus, cujo primeiro número veio à luz em 1994 e que ainda hoje perdura e pode já ser acompanhada na net. Fica o meu grande desejo para que se mantenha e cative os mais novos investigadores desta área.

6 A Fechar

Voltando ao início, ou quase, e recordando sempre a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, assinalo a consolidação aí do ensino da Literatura e da Cultura Espanholas, para o que contei com a colaboração de Fátima Freitas Morna, Cristina Almeida Ribeiro e, mais recentemente, Ângela Fernandes.

Os meus votos para mim vão no sentido de ainda poder dar alguma colaboração aos novos hispanistas, desejando-lhes uma rota tão gratificante como a que aqui procurei lembrar.

1 Maria Idalina Resina Rodrigues, «Vitorino Nemésio: Das Letras à Vida», Arquipélago – Línguas e Literaturas, vol. X, 1988, p. 119.
2 Referência à lenda do galo de Santo Domingo de la Calzada, localidade da comunidade de La Rioja.
3 Espectáculo encenado por Jorge Listopad, com texto traduzido por Ernesto Sampaio.
4 Referência ao filme La mantilla de Beatriz, realizado por Eduardo García Maroto.
5 Maria Idalina Resina Rodrigues foi galardoada em 1998.