Mario Claudio – Úbeda

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO9

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MÁRIO CLÁUDIO

UBEDA

Ao termo da jornada, e ao cabo de canseiras e orações, surge-lhe Úbeda como cidade majestática, fermentada pela abastança dos palacianos de Carlo V, à frente dos quais se especa o soberbo ministro Francisco de los Cobos, promotor do levantamento da Sacra Capilla del Salvador, mausoléu dos de sua cepa. Povoação bafejada pela aristocracia de sangue, e pela fidalguia de virtude, aqui chega, auxiliando o que lhe serve de assunto de investigação, esse que vai prestar provas de exame num burgo do norte de Portugal. O santo-poeta, macerado por achaques de ordem variada, e pela melancolia que lhe resulta da perfídia dos irmãos, está quase a discernir a pedra onde pousar a cabeça. Aligeira-lhe entretanto as agruras do itinerário um achado miraculoso, e nada mais, nada menos, do que um molho de espargos trigueiros, largado em cima de um calhau, e inexplicavelmente fora de época, que o consola do apetite amiúde suspensivo do fastio de que sofre.
Acolhem-nos com emoção os monges mais jovens, exaltados de piedade, e com suspeita os mais idosos, irritados com quem quer que lhes inculque exemplos de conduta, e rigores de disciplina. Criaturas acostumadas à rotinice das horas canónicas, temem-se eles do homem pequenino que rejeita o missal ensebado, e que em silêncio lhes censura a anquilosada lavra da vinha do senhor. Condescendem porém em lhe oferecer, ao sujeito Guilherme que procede do futuro, e ao que redige o presente arrazoado, o caldo de parca substância, a bucha de sêmea, e a tarimba de estamenhas que disfarçam o vómito, as fezes, e o pus.
Roído por essa “inveja dos escolhidos por Deus”, sentimento de que Inácio de Loyola fala nos seus compêndios, o superior do convento de Úbeda não se poupa a artimanhas, no intuito de privar o pobre enfermo do fundamental da misericórdia cristã. A erisipela do pé direito assola-lhe as carnes, grassando como um rizoma de chagas enfurecidas, e frutifica num apostema no ombro do mesmo lado. Ao toque de matinas de 11 de Dezembro de 1591, e na vítrea claridade do frio, a alma do amante regressa ao peito do Amado. No coração do autor da absurda ideia de literatura comparada, e testemunha dos sucessos relatados, a sede coincide com a fonte.
Tudo consumado, Guilherme baixa pelas angustiosas escadinhas, ascendidas pouco antes, e com enorme dificuldade, pelo que se aproxima da morte. Deixa lá em cima frei João da Cruz, velado pelos da casa, os quais agem na expectativa de entoarem com o canonizado matinas no Paraíso. Muito dorido, o académico entra no oratório conventual, gelado no Inverno, e é como se o que voa agora nos revérberos da apoteose celeste se engastasse para sempre
no espírito do investigador. Retêm o cadáver pelo tempo bastante a que se realize um primeiro esquartejamento, e que se destina à recolha de umas quantas relíquias de oferta privilegiante, o que faculta ao homem do século XXI
a oportunidade de mais dilatada meditação.
Decidido a estender a sua felicidade até aos limites do possível, o doutorando obriga-se a aguardar compungidamente a inumação em campa rasa, e diante do altar-mor do modesto templo. No entusiasmo da vivência dos prodígio que não tardam a manifestar-se, e que envergonham o prior de Úbeda, enciumado das excelências daquele servo de Deus, voga a comunidade nos aromas etéreos que invadem já celas e corredores, refeitório e sala-do-capítulo. Deitam
o corpinho numa padiola, e transportam-no entre círios acesos e maviosos cânticos, coberto por um manto da imagem da Virgem, a ocultar-lhe o efeito das amputações. Por horas e horas rendem ao finado homenagens sempre aquém do que é justo, e tanto se encomendam à sua intercessão junto do Altíssimo como se dispõem a patrocinar-lhe sem desfalecimento a causa nas estâncias do Vaticano.
Seguindo de longe as compassadas cerimónias, o autor destas linhas presta também, e pela interposta pessoa de Guilherme, o seu tributo ao santo-poeta. A este fica a dever a iluminação para o livro que escreve aqui, a tenacidade que o assiste até à respectiva conclusão, e o sobressalto com que se afoita a publicá-lo. Quanto a Guilherme, e no mesmo instante, o sentimento que experimenta, hirto defronte do féretro do criador de hinos com tanto de bucólico como de seráfico, forma um nexo com aquilo que o ficcionista interioriza, implicado na empresa de desfecho à vista.
A transcendência dos cinco sentidos decalca pari passu a extática viagem do místico, e queda registada nos versos que a Humanidade entesoura. “Y véante mis ojos”, suplica ele, “pues eres lumbre dellos / y solo para ti quiero tenellos.” “Y colgué en los verdes sauces / la musica que llevaba,”, confidencia depois, “poniéndola en esperanza / daquello que en ti esperaba.” Segreda o caminhante, “Ven, austro, que recuerdas los amores; / aspira por mi huerto / y corran sus olores, / y pacerá el Amado entre las flores.” Murmura entretanto, “Y así, por toda dulzura / nunca yo me perderé / sino por un no sé qué, / que se halla por ventura.” Termina sossegadamente, associando a si o actual rabiscador deste romance, “/ ¡Oh toque delicado!, que a vida eterna sabe / y toda deuda paga.”
Apartados do tráfico das relíquias, e da ganância com que os frades se encarniçam em guardá-las, eis que repousam ambos, Guilherme e o subscritor da arenga que se desenvolve nestas páginas. Para inadiável conforto de Doña Ana de Peñalosa, a amiga devotadíssima, os monges cortam o dedo indicador da mão direita do finado, e embolsam os panos encharcados de abundante sangue que jorra no momento da ablação. Para o Convento de Úbeda, e decorrido novo período, mas antes da trasladação para Segóvia, reservam o pé que decepam, e que envolvem em tecidos sumptuosos. Com um punhadinho de ossos do pé esquerdo presenteiam as irmãs de Sabiote, e logo a ubíqua Doña Ana de Peñalosa, incapaz de se refrear, abotoa-se com um braço inteiro só para sua fruição.
Espavoridos de horror reverencial, os dois circunstantes, o que sustenta a improvável hipótese da incidência dos topos galaico-portugueses na lírica sanjoanina, e o que vai assinar aquilo que consta dos parágrafos que se lêem neste sítio, presenciam afinal uma cena inverosímil. A egrégia Doña Ana de Peñalosa ingressa no oratório, trazendo não o vaso dos bálsamos como Maria Magdalena em idêntica circunstância, mas um açafate de primores do seu jardim, e avança em marcha solene. São cravos brancos que a formidável senhora coloca sobre o túmulo, orvalhados pelas lágrimas que não consegue suster. Não espera cruzar-se entretanto, e nos termos do relato evangélico, com o hortelão que se refere aí, e que não suspende a labuta nos três dias que precedem a Ressurreição.